Amor de Estudante escrita por Joana Guerra


Capítulo 5
Silêncio e tanta gente


Notas iniciais do capítulo

Muito obrigada a toda a gente que comentou e ainda não desistiu da Cida :) . A música-tema é uma das minhas canções favoritas, o significa que é praticamente desconhecida, mesmo em Portugal: Silêncio e Tanta Gente, da Maria Guinot.



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 “Às vezes sou também

Um sim alegre

Ou um triste não

E troco a minha vida por um dia de ilusão

E troco a minha vida por um dia de ilusão

 

Às vezes é no meio do silêncio

Que descubro as palavras por dizer

É uma pedra

Ou um grito

De um amor por acontecer

 

Às vezes é no meio de tanta gente

Que descubro afinal p'ra onde vou

E esta pedra

E este grito

São a história d'aquilo que sou”

(Maria Guinot, Silêncio e Tanta Gente)

 

Coimbra, 2 de Abril de 2016

Só faltavam dois passarinhos azuis piando em sol maior em volta de Cida para completar o quadro de uma Branca de Neve do século vinte e um.

Sorrindo e cantando numa harmonia de voz e movimento enquanto acabava de varrer a cozinha, ela corria para acabar as suas obrigações matinais. Parecia que os sete anões iam irromper pela casa a qualquer momento.

Maria Aparecida tinha tido uma conversa séria com Isadora em relação ao excessivo peso das tarefas domésticas que a tinham feito assumir, mas a Sarmento a tinha feito se sentir culpada pelo que ela considerava ingratidão.

Isadora tinha feito questão de frisar o grau de dependência de Cida. Se ela se recusasse a cumprir as suas obrigações, Ernani e Sônia não teriam outra opção a não ser prescindir dos serviços dela, aquando do regresso ao Brasil.

Não só Cida se veria sem teto e sem fonte de subsistência numa casa que ela tinha considerado como sua durante tantos anos, como os Sarmento iriam exigir ser ressarcidos do valor do bilhete de avião que alegadamente tinham oferecido a Maria Aparecida.

Já não bastava não ter um tostão, Cida ainda teria uma dívida que não tinha forma de pagar. Pior, sabendo dos problemas de saúde da madrinha, como é que ela ajudaria ao seu sustento futuro?

O único beneficio daquela conversa difícil tinha sido o de, finalmente, começar a ver os Sarmento por quem eram. Se aquela tinha sido a sua família, Cida preferia continuar sendo órfã.

Continuaria presa a eles por amor à madrinha e por não ter naquele momento outra opção, mas um dia encontraria a chave para retirar aqueles grilhões que a puxavam para baixo e a humilhavam na sua dignidade de ser humano.

Saber que, naquela noite, ela teria a oportunidade de ser livre, um membro da sociedade com tanto valor quanto uma Sarmenta, a ajudou a encarar o futuro de uma forma positiva.

Dali a algumas horas, uma carruagem a estaria esperando para a levar a um metafórico baile no palácio real. Cida riu com o pensamento. Afinal, nem tinha sido necessária uma fada-madrinha que lhe oferecesse sapatos de cristal.

Arrumada a casa, só lhe faltava enviar um artigo para o jornal da universidade e teria o resto do dia por sua conta para se arrumar para a sua noite de Cinderela.

Maria Aparecida tomou o susto da sua vida ao ligar o computador e verificar que a palavra-chave habitual não lhe permitia aceder ao seu conteúdo. Que tipo de feitiçaria tinha sido aquela, que lhe tinha roubado o trabalho de muitas semanas?

Aflita, ela correu com o aparelho nas mãos até ao apartamento do lado. Talvez Danilo tivesse herdado algum gene Marra que lhe permitisse fazer um milagre tecnológico.

Ele ficou olhando pensativamente para o computador pousado em cima da mesa, de braços cruzados, sem se atrever a tocá-lo.

Cida deu mostras de estar ficando em sofrimento. Se não fosse possível recuperar os ficheiros vitais, ela teria que virar a noite naquele fim-de-semana para refazer tudo.

Com ou sem azares imprevisíveis, a revista da universidade começaria a ser impressa na segunda-feira de manhã às nove horas em ponto e ela não podia perder a oportunidade de ter o seu nome nas suas páginas. Demonstrando falta de profissionalismo, os editores da revista nunca mais confiariam nela.

Danilo continuava em silêncio, de sobrolho levantado, olhando para Elano num pedido mudo de aconselhamento. Ambos sabiam que se Cida não conseguisse aceder ao computador, ela teria que recusar o convite de Conrado e ficar em casa trabalhando.

— Cida, isso não me parece ter solução. – explicou o Marra, fingindo um diagnóstico de expert ao tocar em meia dúzia de teclas.

Ela entrou em desespero, com lágrimas aflorando nos olhos. A vida não lhe parecia nada justa, lhe retirando uma das poucas oportunidades de ser feliz.

Elano ficou sinceramente comovido com o estado dela. Para ele, a felicidade de Maria Aparecida estaria sempre acima de tudo. Ele amava demasiado aquela garota e não conseguia aguentar sequer a ideia de a ver sofrer durante um segundo. Esmagando a dor, o bom moço controlou a voz no momento de apontar uma ideia:

— Não, Danilo. Isso tem que ter solução. Liga para o seu primo para ele resolver esse problema da Cida.

O Marra ficou incrédulo com aquela atitude. O destino lhes tinha colocado a faca e o queijo na mão para afastar Cida de Conrado e Elano não queria aproveitar a chance?

Se era isso que ele queria, era isso que ele faria. Como se fosse perfeitamente normal, Danilo ligou para um dos maiores programadores mundiais para resolver um microproblema de informática.

Graças à diferença de fuso horário, Davi ainda esfregava os olhos para espantar o sono, inclinando a tela do computador para que os outros não conseguissem ver a namorada adormecida na cama atrás dele.

 Ele ficava sempre de rastos ao sábado de manhã, mas a verdadeira culpada era Megan, que descobria continuamente modos muito interessantes de ocupar as noites de sexta-feira deles.

O problema de Cida era fácil de resolver. Na noite anterior, alguém tinha acedido ao computador e mudado a palavra-chave. Quem o fez, fê-lo com requintes de malvadez.

Não só era impossível entrar no computador em modo de segurança, como tinham aparentemente apagado todo o conteúdo do disco rígido.

A sorte era que não existiam impossíveis para o nerd Reis Marra. Quem tinha feito o serviço era leigo porque, mesmo à distância, ele não teve grande dificuldade em restaurar tudo.

Suspirando de alívio, Cida compreendeu com as informações de Davi que, àquela hora, só duas pessoas poderiam ter feito aquilo com ela: Isadora ou Ariela. Maria Aparecida inclinava-se para a primeira opção.

Antes de terminar a ligação, o primo de Danilo tinha ainda uma dúvida a tirar com os garotos, sem chamar a atenção da garota:

— Gente, relativamente àquele outro assunto…

Elano suspirou antes de responder à pergunta não formulada:

— Davi, a gente agradece a sua ajuda naquela outra questão, mas você já pode parar com aquilo.

O nerd estranhou, recolocando os óculos na cara. Pelo que Elano e Danilo lhe tinham contado, o que ele vinha fazendo com as contas de Conrado era uma espécie de justiça Robin dos Bosques, mas sem roubar. Se era para parar, Elano lá devia ter alguma razão.

Depois de Davi Reis se consagrar como o herói do dia, Danilo e Elano se viram convertidos involuntariamente no Esquadrão da Moda pessoal de Maria Aparecida.

Ela parecia uma criança solta numa loja de doces, um passarinho alegre.

A indumentária para aquela noite tinha já sido escolhida na noite anterior, nos minutos entre Maria Aparecida deitar a cabeça no travesseiro até conseguir conciliar o sono.

O vestido velho de Isadora parecia novo no corpo de Cida. Ela mesmo tinha refeito a barra e ajustado as alças. Maria Aparecida estava habituada a agradecer aquelas esmolas e a fazer novo do usado.

Elano se tinha visto na situação ingrata de ser recrutado para ajudar a decidir qual a bolsa e os sapatos para compor o look.

Ele bem podia repetir o mantra “a felicidade da Cida acima de tudo” as vezes que bem entendesse, que não mudaria o que o bom moço estava sentindo. Algumas feridas expostas têm dificuldade em sarar.

A transformação de Cida ocorria como previsto. O cabelo comprido já estava penteado num entrançado que nada devia a uma Rapunzel.

Tinha sido surreal descobrir o talento de Danilo para a maquiagem. Se alguma vez lhe faltassem os seus milhões, ele poderia fazer carreira daquilo. Elano e Cida estranharam o à vontade dele em torno de sombras e batons, mas, brandindo um pincel como um artista de verdade, compondo uma obra de mestre na cara de Maria Aparecida, Danilo explicou o mistério:

— Não se esqueçam que eu sou primo de Megan Lily Parker Marra, babies.

Seria até cómico, se não fosse tão trágico. Maria Aparecida estava ainda mais bonita, mas eles preparavam um cordeirinho para ser sacrificado num matadouro ilegal.

Ainda a Chapeuzinho Vermelho não estava pronta, já Conrado lhe ligava incessantemente para o celular. O Lobo Mau estava com pressa.

Elano e Danilo acompanharam Cida até à porta do prédio, mas ela hesitou na hora de sair.

Maria Aparecida bem tinha visto como Elano não estava ele próprio naquele dia, transmitindo uma tensão que só se poderia cortar com uma serra elétrica.

— Está tudo bem, Elano? Você quer me dizer alguma coisa? – perguntou ela, pegando na mão dele como incentivo à resposta.

Ele bem queria responder, mas não teve como. Não quando ela tinha tanta alegria nos olhos quanto ele tinha tristeza.

Abanando a cabeça em tom de negação, o bom moço se encolheu enquanto Cida se despedia de cada garoto com um beijo.

Danilo também abanou a cabeça em negação, mas de estupefação com a cena. O seu amigo estava desistindo de tentar ser feliz?

Conrado já a esperava na rua, dentro de uma limusine. Menos não seria de se esperar. Werneck estava com urgência de fechar o negócio.

Ela ficou devidamente impressionada quando Conrado lhe veio abrir a porta do veículo, se voltando para trás para acenar a Danilo e constatar que Elano já tinha desaparecido. Werneck estava com ânsia de dar partida ao veículo:

— Vamos, minha linda?

Quando ela se acomodou no assento e olhou de relance para o prédio, viu uma luz acesa na torre nas águas furtadas. Sem que ela soubesse, quem ocupava aquele farol era Elano que, através de uma das janelas ovais, ficou só, a vendo partir com Conrado.

O bom moço se sentou sobre o chão frio, abraçando os joelhos, querendo o aconchego de se encontrar dentro de um casulo.

Elano tinha ajudado a criar uma noite de sonho para Cida, mas uma voz interior o continuava martirizando. Ele era Elano Fragoso, um lutador e não um desistente.

 De um pulo, ele desceu as escadas e correu até ao seu apartamento.

Com a raiva, ele tinha amassado e atirado os ingressos do teatro para qualquer canto da sala. Elano se colocou de joelhos sobre o chão, procurando os ingressos. Não era possível que tivessem ido muito longe.

Ainda de quatro no chão, ele teve um momento Eureka quando encontrou o que procurava no momento em que Danilo transpunha a porta. Se apoiando sobre um joelho, Elano aproveitou para fazer um convite. Seria mais fácil se não encarasse a fera sozinho:

— Danilo Marra, você me dá a honra de ir comigo ao teatro?

A pose de pedido de casamento fez com que o Marra recuasse com a sobrancelha levantada:           

— Cara, cê está me estranhando?

Não que Danilo fosse daqueles que precisavam reafirmar que eram machos para cacete perante a sociedade, mas aquela cena parecia pouco carregada de testosterona, já para não falar no fato de que, com a exceção da tia, todo o mundo sabia que ele não era grande fã de teatro.

O que não ajudou ao caso de Elano foi ter arrastado Danilo para o quarto, mas o Marra percebeu que o objetivo era só trocar de roupa rapidamente para poder sair e não levá-lo para debaixo dos lençóis.

Um táxi foi eficaz para levar o duo no teatro e, em poucos minutos, encontravam os lugares marcados, com alguma folga de tempo antes de se levantar o pano.

As magníficas cortinas que pendiam em pregas carmesim e douradas do cimo do arco do proscénio até ao piso de madeira do palco estavam cerradas e o auditório ainda a meia capacidade.

Sentado na primeira fila da plateia, com Danilo do seu lado direito, mesmo ainda sem plano definido, Elano já torcia o pescoço como se fosse o protagonista de “O Exorcista”. Onde é que o traste do Conrado tinha escondido Cida?

Do lado esquerdo dele, um casal resolveu demonstrar a sua intimidade em público. O bom moço defendia que ninguém deveria ter vergonha de mostrar afeto, mas aquilo já o estava incomodando.

Já não bastava o estudante de direito ter sido tocado por mãos alheias, perdidas do trajeto pretendido, aqueles beijos ruidosos já tinham chamado a atenção das primeiras dez filas da plateia.

Elano se encolheu no assento, sem coragem para se levantar ou para chamar a atenção daqueles adolescentes sanguessugas. A garota, particularmente, o estava incomodando.

O bom moço nunca tinha visto alguém beijar assim, como se fosse um aspirador Hoover de última geração, engolindo tudo no seu trajeto. O pobre do namorado iria sair dali mais amassado do que alguém que entra num ônibus em hora de ponta. Ainda bem que ele não tinha nada a ver com aquele assunto.

O mérito de acabar com aquela pouca vergonha foi de Danilo, que resolveu envergonhar o casal oferecendo uma camisinha e apontando para a saída do recinto. Ponto para o Marra, que os calou na hora.

Suspirando de alívio, Elano levantou a cabeça e encontrou a sua dama. Claro. Conrado tinha levado Cida para um camarote. Werneck tinha sempre que encarar a plebe de cima. Respirar o mesmo ar que o restante público deveria causar-lhe algum problema de urticária.

As luzes se apagaram, colocando o casal numa penumbra e os tornando invisíveis a quem se encontrava na plateia. A luz estava toda direcionada ao palco onde se começava a desenrolar a tragédia Shakespeariana.

Na metade do primeiro ato, Danilo já cochilava com a cabeça encostada no ombro de Elano, completamente imune a histórias de conflitos entre famílias rivais ou a tramas de amores impossíveis.

Quando as luzes se voltaram a ligar assinalando o intervalo, o bom moço deu uns leves estalos no amigo para que ele se recompusesse em público.

A peça "Romeu e Julieta" falava de corações partidos por partidas do destino, mas naquele teatro o único coração partido foi o de Elano quando viu que, no camarote, Conrado beijava Cida e ela se deixava levar com o abandono de uma Julieta apaixonada.

Excerto do diário da Cida

Coimbra, 2 de Abril de 2016

Ai, mãezinha,

Hoje o dia foi tão cheio de emoções. Quando parecia que ia acontecer um desastre, se deu um milagre e tudo ficou bem. Depois, ficou ainda melhor. Hoje eu fui a Cinderela, mãezinha. O Conrado me levou no teatro para ver Romeu e Julieta. Ele me fez sentir tão especial, me disse coisas tão lindas. Ele me ama de verdade, sabe? Saí do teatro como se caminhasse em cima de nuvens…


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Notas finais do capítulo

Relembro que esse é o mesmo universo de “Nós estamos juntos”. Como em qualquer universo coerente, Megan e Davi estão juntos :). Acho melhor soltar um spoiler antes que fique com as orelhas a arder: A Cida é inocente, mas o Conrado não vai ganhar essa aposta. No próximo capítulo: Cilano no sofá (e sim, mesmo que não pareça, o jogo começa a virar : )). Beijo para todos!