O pai de Will havia voltado. Eles conversavam sobre assuntos banais, cheguei a pensar que o menino estava é me enganando, que ele não iria me tirar de lá. Mas me enganei, alguns minutos depois, o coelho abriu a porta me surpreendendo. Seu pai estava encolhido dentro de um pequeno vido batendo nas paredes sem poder escapar.

— Como... – fiquei confusa. Como um garotinho como ele saberia encolher alguém?

— Sempre estou com esse tipo de coisa – me mostrou um biscoito comum – Se ele comer isso, voltará ao normal.

Will me contou que estava sempre metido em brigas com outros animais da floresta. Ele era muito fraco pra combater e eles eram rápidos demais pra fugir. Então usava iscas com umas plantas estranhas que descobriu na floresta pra encolhê-los com comida. E então fugir. Exatamente como estávamos fazendo.

Corremos o mais silenciosamente  possível, tentando não acordar os dorminhocos, preguiçosos e incompetentes guardas das outras celas.

Entretanto, nem sempre dá pra fugir.

— Ei, o que essas crianças estão fazendo aqui?! – paralisamos de medo, fomos pegos.

Outros, três guardas correram em nossa direção. O que faríamos?

— Eu vou distraí-los então você foge e mata o rei, okay? – sussurrou Will decidido.

Afirmei com a cabeça pensando, precisava de uma arma também.

— Ah! Essa não é a traidora do rei?! – perceberam os homens ao chegar perto.

Tentei me esconder atrás de Will, mas era óbvio quem eu era.

— Você está fugindo? – riram tentando me segurar.

— Não! – negou Will me protegendo – Ela é minha amiga! Soltem-na! Seus sujos do rei!

Se enfezaram com isso. Mas pelo menos esqueceram de mim, não perdi tempo. Roubei uma espada e corri em disparada.

— Ela está fugindo! – ouvi a confusão deixada para trás.

Corriam ruidosamente pelos corredores escuros enquanto conversavam sobre coisas idiotas como “Ela roubou minha espada novinha” e “Por que o rei quer matá-la? Poderia se tornar um prostituta quando crescer”.

Ignorei tudo e corri. Mas chegaram mais guardas, me encurralando. Tive que usar a lâmina.

Eu já estava bem machucada e sem fôlego quando avistei o rei. Rindo embriagado numa mesa cheia de comida, com mulheres nojentas sentadas em seu colo e a seu redor.

Nojo. Eu só sentia nojo.

Ódio não é bem a palavra certa para a hora que corri em cima da mesa assombrando a todos, eu ria, ria como louca. E cortei a garganta do rei sem hesitar.

A onda de urros de pavor e confusão continuou por um bom tempo.

Me senti a maior heroína, uma pessoa que havia vencido a guerra. O rei finalmente havia sido derrotado.

Peguei sua cabeça caída do chão e murmurei.

— Cortem-lhe a cabeça.

Coloquei-a em cima da mesa enquanto os gritinhos nojentos das mulheres ensandecidas não cessavam.

— Bom apetite – lhes desejei me sentindo a pessoa mais poderosa do mundo – Eu sou a nova Rainha de agora em diante.

— Não, não é! – discordou uma pessoa em minhas costas.

Virei-me curiosa pra ver quem era o estúpido que me desafiava e tive uma grande surpresa.

— Largue essa espada – ordenou o homem com o menino como refém, uma espada posicionada pra cortar sua garganta – Largue ou eu mato ele.

Arregalei os olhos, confusa. O pai de Will. Por que estava fazendo isso?

Acontece que ele era muito amigo do rei, até demais e depois que seu amigo morreu é claro que iria querer se vingar de alguma forma. Mas é ridículo pensar em matar seu próprio filho pra me atingir. Como se eu fosse ligar se Will morresse... se eu ligasse, seria apenas uma menina normal.

— Você tem coragem de matar seu próprio filho? – olhei para o rosto assustado e choroso do pequeno coelho, suplicando pra que eu parasse e o ajudasse.

— Você duvida? – o olhar maníaco do pai desalmado me deu a certeza de que o amor é algo inútil mesmo.

Quando você ama você ama demais pra largar essa coisa. E isso é o mais difícil. E se essa coisa não te ama assim? Você se fere.

Will acreditou no pai, mas o homem só acreditou no rei.

— De que adianta matar seu filho? – ri indiferente ao perigo de meu amigo morrer – Eu vou te matar de qualquer jeito.

Foi rápido, bem rápido. Gritei “corre” pra Will e cravei a espada no peito do homem antes de sequer respirar. Ri com desdém me divertindo com todo aquele vermelho espalhado no chão. Joker iria se orgulhar. Uma criancinha que matou tanta gente num dia só, apenas com uma espada.

— Pare – gritou Will antes de eu cortar a cabeça de seu pai ainda vivo.

Tive uma ideia ainda melhor.

— Mate-o você – entreguei a espada pra ele, risonha com a ideia de um filho matar um pai traidor. Mas Will o amava demais ainda que.

— Não – negou-se afastando a arma e olhando apavorado para o guarda agonizando.

— F-filho... – murmurou o homem ensaguentado – Me ajude...

Chutei-o sem piedade e olhei no fundo dos olhos do menino assustado.

— Ele ia matar você, mate-o – falei.

— Não! – choramingou.

— Mate-o!

— Não!                           

— Pare de chorar, mate-o!

— Não! Não vou matar me pai!

Ignorei e parti para o sangue, irritada. Espirrou em seu rosto pálido como chuva e ficou certamente impregnado em sua memória, seu coração.

O garoto caiu de joelhos no chão avermelhado, chorando sem parar.

A garota riu melancolicamente dizendo:

— Neste mundo amor acaba assim, Will. É o preço de amar. Sempre acabará assim... cortem-lhe a cabeça.

— Você é um monstro – disse ele.

— Você é uma criança – retruquei.

Ninguém me negou como rainha depois disso. Ninguém ousou botar os pés no castelo a não ser que eu ordenasse.

Ninguém chegava perto.

Acho que o medo era maior. Porque fiquei com o péssimo hábito de atacar qualquer um que se aproximasse.

Eles corriam, eu matava. Era divertido.

Todos pareciam o rei. Todos eram nojentos e asquerosos. Eu os queria sem cabeça, queria seu sangue, seu medo, sua loucura...

Eu era mesmo um monstro, não?