Chocolate Amargo escrita por mikaheeel


Capítulo 2
O pronome




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A semana, como sempre, passou lentamente. Meus dias se resumiram a acordar, encontrar Charlie, estudar, dormir. Porém, neste dia eu tive uma motivação extra para levantar da cama sedutora. Era sexta-feira.

Fiz o esforço de levantar mais cedo, arrumar o cabelo de uma forma diferente e menos bagunçada e escolher uma roupa que não pareça tanto um pijama. No meio do caminho parei. Qual o motivo de eu ter feito isso tudo, já que nunca nem se quer me importei com meu cabelo bagunçado? É por causa daquela pessoa que nem o nome sei? Qual o motivo de eu estar sendo tão preocupada com aparência? É, talvez seja por causa da pessoa que nem o nome sei.

Enfiei a roupa em meu corpo, arrumei o cabelo da melhor forma que sei, comi uma salada de frutas e fui ao encontro de Charlie, que já estava na porta da minha casa.

 

— Tu sempre chega cedo. Até parece que não dorme. - A cumprimentei, fechando a porta da casa.

— Alguma vez eu te disse que dormia? - Charlie respondeu com uma risadinha de canto – Bom dia!

— Verdade, mas como não tens olheiras achei que dormias perfeitamente bem. - Respondi com outro sorrido de canto – Muito bom dia.

— Colocasse perfume?

— É, acho que sim.

 

E, como sempre, seguimos conversando até chegar ao prédio onde estudávamos. Charlie certamente notou que eu estava mais arrumada do que o normal, porém fez questão de não me envergonhar perguntando o motivo. Ela estava casual como sempre: usava um moletom cinza com uma ilustração preta na frente, calça jeans azul solta e um tênis preto bastante normal. Eu adorava como o cabelo rosa pastel dela ficava sob a luz da manhã.

Eu não sabia bem o que pensar sobre aquela sexta, afinal, eu tava indo para a tal exposição por causa de uma pessoa que nem o nome sabia. Que patético, não? Talvez eu estivesse sendo, mesmo. Mas eu precisava ao menos trocar uma conversa com essa pessoa... Mesmo que pequena.

Neste dia não teríamos aulas como sempre temos, pois os horários ficaram livres para irmos visitar as exposições dos alunos do quarto ano. Charlie realmente estava indo pra fazer isso, já que a mesma pegou até os panfletos explicativos sobre cada exposição. Ela era muito esforçada e isso me motivava a ser também, porém isso sempre acabou em frustração.

Chegamos ao prédio e o adentramos. Havia muita gente, tanto estudantes, como professores, como pessoas de fora do curso de Design. O ambiente estava barulhento mas também estava bem organizado e bonito. Haviam até salgados e bebidas. Charlie empolgou-se e pegou uma bebida e foi andar pelo salão para explorar as exposições. Todas aquelas cores, pessoas e enfeites me encheram os olhos, e logo fui pegar um salgado para também explorar o lugar. Charlie me abandonou totalmente, o que eu via era apenas seu vulto rosa passando de uma sala de exposição à outra. Soltei um pequeno sorriso quanto a situação e decidi que faria o mesmo, e com meu delicioso companheiro, o salgado, fui visitar as exposições.

Haviam várias pequenas salas do prédio que foram ocupadas especialmente para as exposições. Fui caminhando de uma a uma e observando cada detalhe da composição dos trabalhos dos estudantes. Haviam desde Design de ambientes, de sites a obras de Design interativo. Nunca tinha atravessado tantas vezes aqueles corredores como atravessei naquele dia. Suspirei, cansei, me sentei. Estava dentro de uma sala que possuía tapetes com almofadas para nos sentar, já que o trabalho era um vídeo de mais ou menos vinte minutos que ficava sendo reproduzido na parede branca. Aproveitei a oportunidade para, além de observar o trabalho, descansar.

O ambiente estava escuro – pois, assim, poderíamos observar com clareza o vídeo –, apenas iluminado quando alguma cena do vídeo possuía luz intensa. Aquelas cenas passando, o som minimalista e a escuridão formaram ingredientes perfeitos para que o sono me visitasse e logo me acomodei entre algumas almofadas e, por fim, cochilei. Não sei por quanto tempo dormi, mas sei que foi tempo suificiente para ter uns seis sonhos diferentes. Acordei, lentamente abrindo os olhos e me erguendo já que estava praticamente deitada entre as almofadas. Ouvi o som de respiração e olhei ao redor, logo avistando uma figura semi deitada nas almofadas.

 

— O vídeo é tão chato assim?

 

Aquela figura, sem tirar os olhos do vídeo, me fez uma pergunta e eu, reconhecendo aquela voz, apenas pateticamente paralisei. Era ele... Por que tinha que ser ele? Só me fiz pensar na vergonha que eu sentiria pelos próximos dias, afinal, fui pega dormindo em uma exposição. Para não parecer mais patética do que já estava parecendo, forcei uma resposta, tentando parecer confortável com a situação.

 

— Não, de forma alguma. Inclusive penso que eu ter dormido possa ser ententido como uma outra forma de apreciar o trabalho, já que meus sonhos tiveram como temática as cenas que passam no vídeo. - Enrolei da melhor forma que consegui.

— Hm, gostei dessa reflexão. Espero que ao menos os sonhos tenham sido bons. - O tom da voz me fez imaginar que aquela pessoa estava sorrindo.

— Fico feliz que tenha gostado. Foi o melhor que consegui pensar para me desculpar pelo cochilo. - O respondi com outro sorriso e com as bochechas mais vermelhas do que a própria cor vermelho.

 

Não tive coragem de me levantar e simplesmente sair, pois como a sala estava escura, imaginei que ele pudesse nem estar vendo meu rosto e não me reconheceria nos corredores no prédio. Me acomodei novamente nas almofadas, sentando e abraçando minhas pernas e ali pretendia ficar até que aquela pessoa saísse do ambiente. Mas novamente aquela voz chegou a mim, me congelando internamente. O som que saía da boca dele era frio, suave, rouco e andrógino.

 

— Tu és do primeiro ano?

— Sou, sim. E tu? - Minha voz saiu um pouco arrastada e trêmula.

— Aham. Felizmente só tenho mais um ano por aqui. - A voz saiu em tom de sarcasmo.

— Fico feliz por ti e também com inveja. - Soltei um sorriso de canto que seria impossível de ser notado – Tu moras aqui? Teu sotaque parece ser de outro lugar...

— Nasci na Capital, porém vim pra estudar aqui. Alguma coisa me diz que tu também não é daqui.

— Acertou! Mas sou de perto, da cidadezinha aqui do lado. - Me surpreendi que em pouco tempo eu já estava acomodada a situação e falando normalmente.

— Ha, que legal! Eu já a visitei, é pequena e agradável... Aquela praia é linda!

— Sim, é verdade. Sinto falta de lá, da calmaria e de passear de bicicleta na praia.

— Lá é muito querido, mesmo. Aqui também é uma cidadezinha agradável e se não fosse pela falta de emprego na área de Design, eu ficaria.

 

Ficamos conversando dentro daquela sala escura por mais ou menos quarenta minutos. Quarenta minutos que pareceram dez, de tão rápido e bom que estava ali. Ele perguntou se eu não estava com fome e se não o acompanharia ao saguão para buscar um lanche, e nesse momento lembrei imediatamente de Charlie e de como eu a abandonei. Recusei o convite me desculpando e ele entendeu, logo levantamo-nos e fomos em direção à saída da sala. Minha vergonha e meu plano de ficar na sala até aquela pessoa sair foram abandonados, ou melhor, esquecidos e nós dois saímos em encontro a luz artificial do corredor – que iluminaria meu rosto e pro resto do meu ano ele se lembraria de mim como a menina que dormiu em uma exposição. Olhei para aquela rosto branco com piercings e sorri me despedindo, logo indo procurar Charlie. Não a encontrei e me dei por vencida em meia hora de buscas, logo chegando a conclusão de que seria melhor ir pra casa logo.

No momento em que decidi ir embora, uma frase arrombou minha mente “ Tu não perguntou o nome dele”, e nesse momento eu revirei os olhos e não acreditei na minha patetice. Aquela frase repetiu incontáveis vezes na minha mente e eu certamente não iria dormir se não soubesse ao menos como aquela pessoa se chama. Então fui atrás de pessoas que eu sabia que estavam no quarto ano, para, de forma desinteressada, saber o grandioso nome. Avistei uma moça que eu sabia que poderia ser colega dele, e me aproximei perguntando até que dia as exposições ficariam.

 

— Até quinta-feira, senhorita. - A moça de cabelos loiros me respondeu de forma simpática.

— Entendi! Eu pretendo trazer alguns amigos para visitar, sabe... Um deles inclusive conhece uma pessoa que provavelmente estuda contigo e que está expondo aqui. Ele quer muito vir olhar a exposição dessa pessoa. - Enrolei com um sorriso desajeitado.

— Ah, que bom! Quem é essa pessoa que teu amigo conhece? É do quarto ano?

— Sim, acredito que seja. Eu não sei o nome... Só sei que é alto, magro, muito branco, cabelo preto, pierc... - Fui interrompida pela voz risonha da loira, que reconheceu a pessoa do qual eu falava.

— Ha, já sei! É a Antônia, e ela é do quarto ano, sim.

Fiquei muda por alguns instantes, confusa. Não estava confusa sobre a possibilidade da loira ter confundido de pessoa – pois só existia uma pessoa com aquelas características naquele prédio -, mas sim, com o pronome “ela”. Essa palavra ficou girando, saltitando, passando em loop infinito pela minha mente. Dei de conta que eu estava hipnotizada olhando sériamente para a loira e a única coisa que saiu da minha boca foi a pergunta:

— … Ela...?


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