Gabriel escrita por Bella P


Capítulo 4
Capítulo 3




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ERAM 7:14 H DA MANHÃ,  e o sol terminava de nascer por detrás dos prédios da praça Navona, quando Carmem ligou ordenando que Lorenzo voltasse para o QG, pois os resultados tinham chegado.

Lorenzo, que estava acordado há horas, apenas colocou a calça por sobre a cueca, em seguida a camisa, tênis e jaqueta, recolheu carteira e chave do apartamento do aparador ao lado da porta e desceu até o porão do prédio, cuja porta de acesso era de ferro maciço e a tranca eletrônica além da identificação biométrica, ainda tinha uma sequência de código numérico que precisava ser digitada para assim ceder passagem.

Todos os prédios pertencentes aos Cipriani, ao redor da praça, tinham acesso ao QG subterrâneo através de seus porões. Alguns dos prédios eram moradia dos caçadores do clã, outros usados para fins de trabalho, como um que havia perto da entrada da praça, que era o escritório de contabilidade dos Cipriani e outro, ao lado da embaixada do Brasil, que era o laboratório da perícia dos Caçadores e cujo porão, além de acessar o subterrâneo, também era o necrotério.

O porão do prédio de Lorenzo era como o dos outros.

Grande e com as caixas de energia, referente a cada apartamento, enfileiradas em uma parede, um boiler ocupava boa parte do espaço junto com o aquecedor, canos de esgoto e água corriam pelas paredes, assim como alguns ratos que Lorenzo ignorou em favor da porta do lado oposto do porão, além das máquinas. Ela também era maciça e a prova de fogo, e com o mesmo sistema de segurança da primeira porta.

Lorenzo inseriu a leitura de mão e o código eletrônico e a porta abriu com um clanc, cedendo visão para um lance de escadas.

Lorenzo levou uns cinco minutos para chegar ao salão de conferências e não somente encontrou Carmem e Walter neste, assim como Hunter, Marcelo e Francesco, sendo que este último tinha o cabelo castanho apontando para todas as direções, estava pálido, com olheiras e bebericava um copo de café. Os Italianos eram apaixonados por café, mas Lorenzo sempre achou que o caso de Francesco era vício mesmo, reminiscência da faculdade de medicina, onde ele virou noites em claro estudando.

Nem todos os Caçadores nasciam com talento para a caçada mas, se eles não iam trabalhar em campo, teriam que ser úteis de uma maneira ou de outra para o clã, nem que fosse para trabalhar servindo mesas em um dos vários restaurantes que os Cipriani tinham. A utilidade de Francesco era ser um dos legistas da pequena equipe de três pessoas que eles tinham ao seu serviço.

— Os resultados saíram — Carmem falou — Francesco? — Francesco pulou no lugar e a sua expressão assustada mostrou que ele estava em seu próprio mundo antes de ser chamado. Isto, ou estava dormindo em pé e com os olhos abertos.

— Ah, resultados, sim, claro, espera — Francesco colocou o copo sobre a mesa, sobre um mapa, e Walter rapidamente tirou o copo dali antes que manchasse o papel. Aos tropeços, Francesco foi até um laptop na borda da mesa e Lorenzo chegou a se mover para salvar o irmão antes que ele fosse de cara no chão, mas Marcelo foi mais rápido.

Francesco deu um sorriso cansado para Marcelo e tapinhas no braço que o envolveu pela cintura, como forma de agradecimento pelo resgate.

Marcelo o soltou com relutância e, sem mais riscos de que Francesco fosse cair de cara no chão, ele chegou ao laptop e o tirou da tela de proteção. Havia um projetor plugado no aparelho e assim que a tela de proteção saiu, a tela do computador foi projetada na parede oposta, com gráficos e anotações em linguagem científica e que somente Francesco deveria compreender.

— O rasgo na garganta foi a causa da morte — Francesco começou em um tom cansado e didático — Mas não tinha traços de carbono no ferimento — ele apontou para um ponto no gráfico e isso Lorenzo compreendia.

Carbono era uma das substâncias que compunham as garras de um demônio e se a Química básica não lhe falhava, também era o principal composto do diamante. Por isso que as garras dos demônios podiam causar tamanho estrago em um único golpe: eram duras como diamantes e cortantes como uma espada japonesa bem afiada.

— Mas havia carbono no ferimento da barriga — Francesco continuou, mudando para uma outra página do PowerPoint — Embora esse ferimento não tenha sido extremamente profundo. Na verdade, a vítima teria sobrevivido a ele se não fosse o ferimento na garganta. E tem mais — mais uma vez ele passou o slide, desta vez para uma foto da necropsia, antes do corpo de Acqua ser devidamente aberto para exame — Vê o sangue? — o que mais Acqua tinha era sangue sobre ela. Não o vermelho vivo característico dos humanos. Algo mais ralo e mais claro.

Anjos tinham menos hemoglobinas no sangue, o que os tornavam mais leves para o voo, por causa dessa densidade reduzida. Por isso do sangue que mais parecia anilina vermelha diluída em muita água.

— A ausência de um sangramento mais intenso indica que o ferimento foi feito pós-mortem — Francesco completou. 

— Por que alguém iria querer causar um ferimento em um cadáver? — a pergunta de Hunter era válida.

— A minha suspeita? Para esconder que Acqua esteve grávida. As lacerações romperam com ligamentos musculares, mas quem fez isto não sabia que não é apenas a barriga de uma mulher grávida que se estende durante a gestação. A pele das costas também é puxada, os ossos são sobrecarregados diante do peso extra, os hormônios levam tempo para deixarem o corpo, mesmo após o parto. E anjos também ganham estrias devido ao esticamento da derme. Uma pessoa treinada em ver os detalhes consegue captar isso — Francesco explicou, passando para outro slide

— Mas você disse que não havia traços de carbono no ferimento do pescoço, o que significa que quem a matou não foi a mesma pessoa que tentou esconder a existência do bebê. Então, o que foi encontrado no pescoço? — Lorenzo perguntou.

— Uma mistura de ferro, crômio, níquel e molibdênio — Francesco explicou e a expressão de todos foi a mesma: incompreensão — Aço inoxidável — ele completou. 

— Aço inoxidável? — Lorenzo repetiu em um tom incrédulo e arqueou as sobrancelhas para o irmão — Usaram garras de aço para matar Acqua?

— É uma opção — Francesco respondeu com um dar de ombros, como se anjos estripados por garras de aço e largos em becos de Roma fosse algo corriqueiro, e deu outro clique no teclado do computador, passando a tela para outro gráfico — E sob a unha da vítima foi encontrado vestígios de atropona belladonna — Lorenzo não era tão bom assim em ciências, mas, aparentemente, Hunter era, porque ele grunhiu do outro lado da sala, torcendo o rosto em uma expressão que indicava que esta informação não foi exatamente bem vinda. Na verdade, parecia ser um prelúdio de uma puta dor de cabeça.

— Beladona — Hunter esclareceu quando Lorenzo lançou a ele um longo olhar.

Beladona era um entorpecente extremamente popular entre os demônios, pois como o álcool não fazia muito efeito no organismo deles, demônios costumavam adicionar a folha em versão em pó nas bebidas. Era uma mistura perigosa, se não fosse dosada corretamente, e que podia causar overdose.

E em Roma só havia um lugar que servia este tipo de bebida.

— O que um anjo, grávida, estaria fazendo em uma boate LGBT para demônios? — Lorenzo perguntou, sem desviar os olhos de Hunter. A reação do mestiço indicou que ele sabia exatamente de onde veio aquele traço de beladona

— Nada garante que ela esteve lá — Hunter defendeu. 

— E onde mais ela mexeria com beladona? Isto não é exatamente uma substância legal, e as autoridades só se fazem de estúpida por ela ser usada em bebidas, porque são demônios que a usa. Eles estão completamente fora da alçada legal humana — Lorenzo insistiu no assunto, pois o seu faro sentia que havia muito mais caroço nesse mingau do que Hunter deixava transparecer. 

— Ainda sim não faz sentido. Um anjo em uma boate para demônios, ela seria comida viva — Hunter sorriu com a falsa inocência de um cleptomaníaco que jurava de pés juntos, em frente ao papa, que não havia roubado ouro da Basílica de São Pedro. Porém Lorenzo não era aquele jovem idiota e deslumbrado de anos atrás, porém ele tinha a sensação de que Hunter ainda o via assim, para tratá-lo dessa forma, como se ele fosse uma criança idiota. 

— Eu acho tão meiga essa sua ingenuidade. Demônios que vivem entre os humanos, depois de um tempo, se desconectam de seu povo. Demônios são como uma alcateia, sozinhos são fracos, unidos são poderosos, mas sempre haverá um lobo desgarrado que quer expandir os seus horizontes, e quanto mais tempo ele ficar longe dos seus, mais enfraquecida essa conexão ficará a ponto deles não estarem nem aí se um anjo dançar a macarena na frente deles. Os instintos dele estarão enfraquecidos, praticamente anulados por causa da convivência com os humanos. Eles começam a considerar os mortais a sua nova alcateia e com isto absorvem os seus valores e instintos.

— Muito obrigado pela aula de biologia demoníaca — Hunter rebateu com escárnio, claramente não gostando do fato de que Lorenzo parecia conhecer mais sobre demônios do que ele, que tinha antepassados na espécie. Como resposta, Lorenzo deu ao mestiço um sorriso igualmente largo, igualmente falso, e absurdamente provocador, o que aprofundou a carranca no rosto bonito de Hunter. 

Os demônios que viviam muito tempo entre os humanos, ou perdiam as estribeiras e surtavam, porque não conseguiam se adaptar, e aí resolviam incorporar o seu serial killer interior, o que fazia caçadores irem atrás deles para cortar o mal pela raiz, ou praticamente se tornavam humanos. Uns vinham ao mundo mortal por escolha, porque toda a família tinha aquele que não se encaixava, porém nunca ficavam muito tempo na superfície para encerrar a conexão com o covil. Contudo havia os casos daqueles que subiam à superfície como punição, exilados no mundo humano a ponto de enlouquecerem, e outros vinham por despeito mesmo, para causar confusão, porque consideravam humanos inferiores e não merecedores dos vastos territórios que habitavam.

— Se Acqua esteve nessa boate, alguém tem alguma coisa a dizer sobre ela. Um anjo não passaria tão despercebido assim, mesmo entre demônios climatizados aos humanos. Lorenzo… — Carmem começou a tecer a ordem, quando foi bruscamente interrompida

— Segura as pontas aí vovó! — e lançou um olhar tão irado para Hunter, diante da interrupção, que ele recuou com medo de ser morto ali mesmo onde estava, e Lorenzo, Marcelo e Francesco tiveram que abafar as risadas com as mãos e transformá-las em uma tosse muito mal disfarçada.

Ninguém interrompia a Matriarca.

Ninguém!

— Er… — Hunter pigarreou, tentando recuperar-se da gafe com este gesto, em vão. Carmem ainda deixava transparecer pelo olhar que queria as entranhas daquele moleque abusado servido sobre a mesa, ao molho de alcaparras. Hunter engoliu em seco, juntou toda a pouca coragem que lhe restou, e continuou — O acordo era que eu comandaria esta caçada. Se chegar aos ouvidos de Estrela que é um Cipriani que está a frente de tudo, não somente eu estarei ferrado, mas todos nós. Ela vai esquecer as convenções e descer de seu ninho com toda a sua tropa e começar a dança das cadeiras, de quem ela mata primeiro na corte demoníaca, antes do prazo terminar.

— Prazo? Que prazo? — Lorenzo rapidamente engoliu as risadas mal contidas e jogou a pergunta no ar — Eu não estou sabendo de prazo algum — e lançou um olhar para Carmem e, pela cara dela, ela também estava de fora do assunto.

— Eu esqueci de dizer? Estrela me deu uma semana para encontrar o assassino de Acqua, ou ela mesma viria com a sua tropa e reviraria o mundo e o submundo atrás do culpado.

— Uma semana?! — Francesco guinchou ao ouvir a declaração de Hunter, com os seus olhos azulados ficando largos atrás das lentes de seus óculos.

— Seis dias, na verdade, já que o prazo começou a contar a partir de ontem — Hunter completou com a displicência de quem não estava com o futuro da humanidade nas mãos, se não resolvesse aquele caso sem causar mais derramamento de sangue. 

— Marcelo! — Carmem chamou pelo neto enquanto Lorenzo usava toda a sua força de vontade para não avançar sobre Hunter e esganá-lo. Agora que o maldito avisava que eles tinham um deadline para resolver isto antes que a merda fosse jogada no ventilador? E depois o sujeito ficava todo ofendido quando Lorenzo dizia que não confiava nele. Estava aí o motivo — Os médiuns! Veja se eles captam alguma coisa. Francesco, vá até a técnica, veja se eles conseguem rastrear os passos de Acqua nas últimas semanas, meses, o que for possível — ela disse isso tudo em um único fôlego e no tom imperioso de quem queria as ordens cumpridas para anteontem — Walter… — ao dirigir-se ao marido, o tom de Carmem ficou mais brando. Walter não era um dos moleques que ela comandava, ele era o seu parceiro e o seu igual dentro do clã, portanto merecia ser tratado com mais respeito. 

— Usarei de toda a minha politicagem — Walter disse, com um sorriso brando, compreendendo em uma troca de olhares o que a esposa queria. E traduzindo em miúdos, Walter tentaria de alguma maneira adiar a vingança de Estrela, porque ele era bom nesse negócio de envolver e manipular, mesmo que fosse fazer isto via terceiros, através dos contatos humanos dos anjos. E um deles vivia confortavelmente no Vaticano.

Era irônico ver um cardeal servindo aos anjos que tecnicamente não eram anjos.

— Então o Por Una Cabeza é nosso — Lorenzo declarou, já tomando o rumo da saída da sala, quando Hunter o parou ao segurá-lo pelo braço.

Lorenzo lançou um olhar para a mão em seu braço e em seguida para o rosto de Hunter. Os dígitos fechando sobre o filete exposto de pele do seu pulso, aquele pedacinho que usualmente a manga da jaqueta tinha dificuldade de cobrir por causa dos gestos do braço, não era apenas um incômodo por estarem invadindo o espaço pessoal de Lorenzo, mais do que isto, no momento em que a pele de Hunter tocou a sua, Lorenzo sentiu uma pequena descarga elétrica percorrer o seu braço por completo, causando um arrepio gostoso descer pela sua espinha. A mão abusada permaneceu segurando o seu pulso mesmo depois de Lorenzo desviar o olhar do membro, para o rosto de Hunter, dizendo neste gesto que o toque dele não era bem vindo, e sendo devidamente ignorado.

Será que o mestiço sentiu a mesma coisa que Lorenzo diante do toque, ou só permanecia o ‘molestando’ para testar a paciência do caçador? Deveria ser a segunda opção. Com certeza era a segunda opção. Contrariar Lorenzo era bem mais a cara de Hunter. 

— Pensei que fossemos parceiros neste trabalho — Hunter fez uma expressão tão falsamente inocente ao finalmente largar o pulso de Lorenzo, que este não conseguiu segurar a frustração e disse, ao virar-se para a avó:

— Posso atirar nele? — Carmem fez uma expressão de quem realmente estava considerando a proposta, antes de responder:

— Por enquanto não — ela respondeu

— Como assim ‘por enquanto não’? — a expressão de Hunter, agora, era de alguém genuinamente ofendido. Ele devia saber que Carmem não fazia piadas e que ela realmente estava considerando a proposta de Lorenzo.

— Eu não confio nem nas roupas que você usa. Você será apenas o testa de ferro nesta caçada, e Lorenzo tem autorização para abatê-lo se assim for o caso —  Carmem declarou e agora foi a vez Lorenzo sorrir de forma falsamente inocente, diante da expressão desgostosa que Hunter fazia — Agora vão!

 

oOo

 

LORENZO FREOU A SUA MOTO bem em frente a entrada do Por Una Cabeza e, ao lado dele, segundos depois, Hunter parou o seu fiel jipe de rali. 

Lorenzo considerava o carro pouco prático para circular nas ruas do centro de Roma, mas cada um com o seu gosto, não é mesmo?

— São oito e meia da manhã, será que tem gente no clube? — o caçador perguntou para Hunter, enquanto girava a chave, desligava o motor, colocava o capacete pendurado no guidão e descia da moto. Hunter bateu a porta do jipe e a travou com um clique do alarme.

— O proprietário mora em cima do clube — Hunter explicou e Lorenzo olhou para cima e viu que realmente havia um segundo andar no prédio, com janelas amplas de vidro e obscurecidas por insufilm, porém, se Hunter não tivesse comentado ser uma área residencial, ele suporia que na verdade fosse a área administrativa do Por Una Cabeza.

Hunter foi até a porta de entrada. Esta era de vidro fumê, com o logo do clube, e era protegida por uma porta externa de grades de ferro. Grades as quais Hunter começou a esmurrar enquanto gritava ao mesmo tempo:

— Ó de casa! — Lorenzo estapeou o rosto com a palma da mão. Hunter estava fazendo barulho o suficiente para acordar a vizinhança inteira. Felizmente, o clube ficava em uma área mais comercial de Roma, cujo movimento ainda estava fraco por causa da hora, mas não correria o risco de algum vizinho desgostoso chamar a polícia devido a balbúrdia. E só depois da quinta porrada que Hunter deu no portão de ferro, que eles obtiveram uma resposta.

Uma janela no segundo andar se abriu e um homem pôs a cabeça para fora, já berrando xingamentos em italiano para os seus visitantes indesejados. O cabelo do sujeito estava despenteado, a barba por fazer, a bochecha esquerda estava com marcas de lençol e ele piscava repetidamente os olhos contra a luz da manhã que batia em seu rosto pálido.

— Mas que diabos?! Quem é o maledetto figlio di una… — o desconhecido piscou mais uma vez e estreitou os olhos na direção de Hunter, que tinha se afastado da porta  o suficiente para melhor visualizar anfitrião deles, na janela do segundo andar, e que sorriu ao reconhecer o mestiço. – Hunter! – Lorenzo arqueou ambas as sobrancelhas para Hunter, diante do tom de familiaridade que aquele homem usou ao reconhecer o meio-demônio.

— O que foi? Isto daqui não é um puteiro, é um clube. Pare de me olhar dessa maneira julgadora, como se a minha vida girasse em torno do submundo do crime — bem, do jeito que Hunter era, Lorenzo não duvidava que ele também tivesse amigos até na máfia italiana. O mercenário usava os recursos que tinha, e como esses não eram muitos, e ele não tinha a Inteligência dos Caçadores o apoiando, com certeza não obtinha as coisas de maneira legal.

Ele era um sem clã. Portanto, nem o auxílio das autoridades ele teria, não sem usar uma boa mentira que provavelmente não colaria. Ao menos não em Roma.

Com a polícia romana e do Vaticano quem geralmente lidava era Marcelo, e se alguém que não fosse ele aparecesse pedindo por informações em nome dos Cipriani, os policiais rapidamente entrariam em contato com o clã para a confirmação da identidade. Talvez em outras cidades italianas Hunter tivesse mais sorte, os Cipriani estavam espalhados por toda a Itália, mas o seu território de influência era Roma. Em Milão, com certeza, Hunter não conseguia nada, pois lá os cabeças da sociedade dos Caçadores eram os Benedetti, justamente a família da qual a mãe de Hunter foi expulsa.

O sujeito que os tinha recebido sob xingamentos havia saído da janela e minutos depois Lorenzo e Hunter viram uma sombra por detrás do vidro fumê e ouviram o barulho de um molho de chaves, seguido do som de trancas se abrindo. A porta de vidro foi aberta e em seguida o portão de ferro. E assim que este terminou de se abrir, o homem, que usava só uma calça de algodão e chinelos, se atirou sobre Hunter, o abraçou pelo pescoço e sapecou um beijo nos lábios entreabertos do mestiço.

Lorenzo não sabia quem era esse desconhecido, mas só a cara dele lhe deu vontade de arrancar-lhe os olhos a unhadas..

— Percebo que a amizade de vocês tem história — Lorenzo comentou com azedume, porque além do desejo de sangue, o sangue daquele homem, ele também sentiu algo estranho revirar na boca de seu estômago, algo que ele resolveu ignorar, só por segurança, ou completa negação. Provavelmente era fome, com certeza era fome, já que tudo o que tinha comido naquela manhã foi um bolinho dormido e um copo morno de café velho, antes de ter sido convocado por Carmem.

O estranho largou Hunter, não sem antes dar um último beijo nos lábios perfeitamente desenhados do mestiço. Esses não eram muito cheios, mas também não eram muito finos, apenas na medida certa e de um rosa pálido, e que agora brilhavam por causa da recente troca de saliva.

Não que Lorenzo tenha reparado, ou que esses lábios vez ou outra surgiam em suas fantasias durante um momento mais íntimo. Não mesmo. E negação não era um estado ótimo para se viver nesta vida? Pois é.

— Lorenzo, este é Bee — Hunter os apresentou. E Bee? Que diabos de nome era Bee?

Lorenzo percorreu os olhos por Bee, e nada ali o agradou, para ser sincero. 

A criatura era magra, pálida e mais baixa que Lorenzo alguns centímetros. Bee tinha uma tatuagem de uma roseira que ia do ombro esquerdo até o pulso, piercings nas orelhas e o cabelo loiro que era raspado nas laterais e longo no topo da cabeça. Os olhos azuis de Bee, quando miraram Lorenzo, deixaram claro que a vontade dele era a de experimentar o caçador como uma iguaria, ali e agora. A luxúria praticamente se projetava deles, Lorenzo não sabia se ficava lisonjeado, enojado, ou tentava proteger a sua não existente virtude.

— Hunter… Quem é o seu amigo? — Bee foi na direção de Lorenzo, balançando os quadris em um gesto tosco de sedução, e o caçador recuou um passo, preparando-se para o ataque, mas antes que Bee pudesse dizer ou fazer alguma coisa que acabaria com ele estirado no chão e imobilizado por Lorenzo, Hunter o chamou.

— Precisamos conversar, Bee. É sobre um caso em que estou trabalhando. Tem como? — Bee piscou os seus olhos azuis uma última vez para Lorenzo, e depois virou com um sorriso enorme para Hunter.

Mi casa, su casa — declarou e fez uma reverência exagerada, com um braço dobrado sobre a barriga e o outro esticado na direção do clube, e Hunter rolou os olhos e entrou no estabelecimento. Lorenzo o imitou e Bee fechou o cortejo, trancando a porta atrás deles assim que entraram.

O interior do Por Una Cabeza era uma mistura de clube e bar.

No centro do enorme salão havia uma pista de dança que se destacava por ser alguns centímetros acima do nível do chão, assemelhando-se a um palco arredondado de tamanho mediano e cuja borda possuía de luzes de néon que, quando acesas, deveriam dar-lhe um ar psicodélico sob a pouca luminosidade do clube. À direita, no alto, tinha um mezanino que era isolado por vidros - área VIP, óbvio - e à esquerda estava o bar, com alguns bancos e, ao longo das paredes, havia jogos de sofás e pufes que circulavam algumas mesas baixas.

A decoração eram quadros com imagens pin-up e uma versão gráfica de posters de grandes filmes lançados da década de noventa para trás. Bee os guiou até um dos conjuntos de sofás, onde cada um se acomodou no espaço vazio mais próximo.

— Você é o dono do clube? — Lorenzo perguntou com curiosidade. Pelo que sabia, aquele clube existia desde antes dele nascer e Bee parecia ter a mesma idade que ele, senão alguns poucos anos a mais.

Bee riu.

— O meu pai é o dono. Eu apenas gerencio e uso o espaço no segundo andar para descansar a minha carcaça —  Lorenzo franziu as sobrancelhas diante desta resposta. Pelo que se lembrava da história do Por Una Cabeza, o dono e fundador deste era um demônio.

Bee gargalhou mais uma vez, provavelmente lendo da expressão de Lorenzo a pergunta que pipocou em sua mente.

 — Sou como Hunter, uma preciosidade  — rebateu com uma ponta de orgulho e Lorenzo rolou os olhos diante da arrogância do outro homem. Os mestiços não eram incomuns, mas a regra era que os seus lados demoníacos sempre vinham por parte de pai.

Em uma breve explicação sobre como funciona a reprodução dos demônios, a coisa acontecia da seguinte maneira:

O espermatozóide dos demônios eram compatíveis com o útero da mulher humana, mas o inverso não acontecia. O útero de uma demônio não casava com um espermatozóide humano. No entanto, mesmo com esta compatibilidade, isto não significava que existiam incontáveis mestiços pelo mundo, apenas o suficiente para eles não serem tão incomuns assim.

A gestação de um mestiço era extremamente exaustiva para o organismo da mãe, e se um aborto espontâneo não acontecia no primeiro trimestre, mãe e filho geralmente morriam antes do bebê nascer.

Claro que havia casos onde mãe e filho sobreviviam, mas um ou outro não durava muito tempo depois do parto. E, normalmente, este era o bebê.

A medicina humana não estava equipada para tratar de demônios, ou meio demônios, e a maioria dos médicos nem sabia que essa raça existia. E um bebê mestiço, quando nascia, sempre era prematuro. O organismo da mãe nunca aguentava carregar a criança por nove meses e a expulsava antes do planejado.

Talvez tenha sido isto o que tenha acontecido com Angelina Benedetti: ela não sobreviveu ao parto, mas Hunter, milagrosamente, sim.

Entretanto, Bee não dava para ser reconhecido como um mestiço, pois ele era muito… Normal. Não que Lorenzo conhecesse muitos mestiços, na verdade, até agora, ele só conheceu Hunter e por isso este sempre lhe foi um ponto de referência para os outros mestiços que viesse a encontrar. E, aparentemente, a beleza dos demônios não era o gene dominante. Bee era jeitoso, mas não tinha a beleza deslumbrante dos demônios que fazia as pessoas virarem a cabeça e observar, quando eles passavam na rua. Não tinha a beleza de Hunter, que chegava a hipnotizar em um primeiro olhar. 

— Mas vocês falaram de um caso — Bee os mirou com uma expressão curiosa e Hunter remexeu dentro de sua jaqueta, de onde tirou um pedaço retangular de papel e o colocou sobre a mesa, na frente deles. Este era uma foto de Acqua, quando ela ainda estava viva.

— Conhece este anjo? — Hunter perguntou e Bee pegou a foto, franziu as sobrancelhas e deu um riso nervoso.

— Amor, um anjo? Prefiro ficar longe deles ou mantê-los longe daqui. Não faz bem para os negócios, sabe — ele devolveu a foto para Hunter.

— Ela foi encontrada morta há dois dias e sob as unhas havia traços de beladona — Hunter falou, guardando a foto novamente dentro da jaqueta.

— E por que você veio aqui? Só porque eu sirvo bebidas batizadas, subitamente eu comecei a abrigar anjos?

— Não. Vim porque nós dois sabemos que você não usa a beladona apenas para batizar o álcool. Ou eu devo ignorar o clube dos viciados que você sustenta com a sua plantação particular? — o rosto de Bee contorceu-se de uma maneira que Lorenzo rapidamente perdeu a imagem de gay afetado que estava criando do outro mestiço. Bee pareceu crescer quando levantou do sofá e inclinou-se sobre Hunter.

— Quem é você para chegar aqui e me acusar? A polícia? Não se esqueça que os podres que você sabe sobre mim, eu também sei sobre você. Agora, se vocês não se importam, a noite passada foi movimentada e eu ainda não tirei o meu sono de beleza — Bee apontou para a porta e Hunter levantou diante do convite silêncio para retirar-se, porém Lorenzo permaneceu no lugar.

Estava claro que Bee sabia de alguma coisa, pois ele evadiu muito rapidamente do assunto, e toda a sua postura era de alguém que escondia algo. Este algo sendo provavelmente a resposta para aquele caso

— Lorenzo? —  Hunter o chamou e Lorenzo o mirou com teimosia. Dali não sairia até obter respostas, mas o olhar que Hunter lhe deu dizia: ‘aqui não’, e isto fez Lorenzo levantar e segui-lo até a saída, mesmo que a contragosto. 

— Ele estava mentindo — Lorenzo disse quando chegaram aos seus veículos.

— Eu sei — Hunter respondeu, enquanto destrancava o seu carro.

— Então vamos voltar lá e arrancar…

— Lorenzo — Hunter o interrompeu, virando-se para o caçador com uma expressão séria. Lorenzo calou a boca em um instante — Entre no carro — ordenou.

— Não — Lorenzo respondeu com petulância. Primeiro Hunter o tirava do Por Una Cabeza com apenas um olhar que desarmou todas as defesas de Lorenzo, depois o calava com um tom de ordem subentendido ao dizer o nome do caçador, e agora dava uma ordem clara para ele? Lorenzo tinha limites, então não, ele não entraria no carro. Por que o faria? E deixar o seu bebê, a sua moto, conquistada com sangue e suor, para trás? Nunca! Ele deu duro para conseguir aquela Kawasaki.

Os caçadores recebiam um salário, mixuruca, era verdade, mas recebiam. E bônus por caçadas difíceis bem sucedidas. Lorenzo teve que juntar os bônus, mais o salário e mais um verão inteiro trabalhando em um dos restaurantes da família, para comprar aquela moto, e ele não iria embora e deixá-la para trás, e muito menos permitiria que outra pessoa a pilotasse de volta ao QG.

Hunter cruzou o curto espaço entre eles em apenas duas passadas e segurou Lorenzo com força pelo braço.

— Entre no carro! — repetiu a ordem entre dentes — Agora! — e puxou Lorenzo para longe da moto, um segundo antes desta ser transformada em uma bola de fogo após um estouro ensurdecedor.

— Mas que… — Lorenzo xingou todos os xingamentos que conhecia, em todas as línguas que falava, quando viu a sua amada moto tomada pelas chamas.

— Lorenzo! — Hunter gritou, com claro tom de urgência em sua voz.

— Eu sei, eu sei, entre no carro! — e desta vez Lorenzo não protestou, apenas entrou no carro e bateu a porta deste enquanto Hunter engatava a ré e saía da frente do Por Una Cabeza, bem a tempo de evitar uma nova bola de fogo que estourou justamente onde o jipe estava.





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