Gabriel escrita por Bella P


Capítulo 2
Capítulo 1




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VAMOS ESCLARECER ALGUNS PONTOS IMPORTANTES antes de começarmos esta história:

O ano é 2022, o século é o XXI e o planeta é a Terra. E os seres vivos inteligentes que habitavam a Terra dividiam-se da seguinte forma:

Humanos;

Humanos sobrenaturais (feiticeiros, médiuns, simpatizantes, hippies, o que fosse);

Criaturas sobrenaturais (lobisomens, vampiros, chupa-cabra, Papai Noel, o que preferir);

Demônios;

Anjos.

Humanos sobrenaturais e criaturas sobrenaturais não era bem uma grande surpresa eles existirem. Histórias são contadas sobre esses seres há gerações. Mitos, lendas, muitas com mais verdade do que fantasia em seu enredo. Estudadas e disseminadas fossem por histórias boca a boca, fossem pela internet, por livros, por contos, cinema, televisão, por qualquer meio de comunicação possível.

Mas e os anjos e os demônios?

Bem… Esses eram, literalmente, uma outra história.

A primeira coisa que sempre precisa ser esclarecida sobre este assunto é:

Quando falamos de anjos e demônios, não nos referimos aos que são mencionados na Bíblia.

Lúcifer e a sua batalha épica contra o Arcanjo Miguel e o Apocalipse? Não, não se encaixava muito bem neste contexto. E se este tipo de anjo existia, não dava realmente para saber porque ninguém nunca os viu. Ou se viu, não foi levado a sério. É irônico como o ser humano afirma ser uma criatura crente, que aceita a existência de Deus, mas chama de louco aqueles que dizem falar ou ver Deus.

Vai entender.

Mas voltando ao assunto: anjos e demônios.

A nomenclatura na verdade era um padrão fonético. As raças em si não eram chamadas desta forma pelos seus, porém os seus nomes originais eram impronunciáveis em qualquer língua humana e, por isso, com o tempo, e de acordo com as suas características, eles acabaram sendo rotulados conforme as criaturas bíblicas. Mas é preciso entender que as suas origens não são bíblicas. 

Os demônios não eram frutos das almas torturadas dos humanos imorais que foram condenados ao Inferno. Longe, muito longe disto. A sua existência na verdade era bem mundana. Eram de carne e osso e sangravam vermelho como qualquer ser-humano, faziam sexo e reproduziam-se também, como qualquer ser-humano. A sua origem, no entanto, era desconhecida. Se eles eram uma mutação, uma variação do DNA humano quando este dividiu-se de um ser unicelular para pluricelular, não sabia-se. A concordância geral era que esta era a teoria mais válida, apesar do ódio que eles possuíam da raça humana que, em tese, eram os seus parentes. Mas nenhum humano que conhecia a existência dessas criaturas conseguiu provar até hoje o parentesco, a biologia demoníaca era uma área da ciência ainda pouco conhecida e difícil de ser estudada devido a ausência de voluntários.

O mesmo podia se dizer sobre os anjos. 

Por que a nomenclatura anjos? Provavelmente porque esses tinham asas, literalmente asas, e viviam em comunidades isoladas e de difícil acesso por terra, que chamavam de ninhos. Quanto mais alto para eles, melhor.

Os seus ninhos eram geralmente construídos no cume de montanhas, cidades inteiras erguidas com o uso de gelo, concreto e pedras. Anjos eram criaturas que não gostavam de interagir com os humanos (provavelmente porque não conseguiriam esconder a sua verdadeira natureza dos desavisados, as asas os denunciaram de pronto). Na verdade, os desprezava por completo, os considerando seres inferiores. E como não podiam escapar do fato de que tinham que dividir este planeta com eles, aos menos encontraram um meio de ignorá-los. Por isso dos ninhos em cordilheiras e sobre os picos mais altos do mundo, de difícil acesso, exceto se você tivesse a capacidade de voar por conta própria, porque nem mesmo aviões conseguiam chegar no local. Não havia área de pouso, o local era gélido e sempre sob neblina, o que causava o risco de bater contra uma rocha, e portanto era a camuflagem perfeita para os olhos curiosos.

Demônios, no entanto, eram outra história.

Eles conviviam com os humanos, conseguiam misturar-se a eles, e, às vezes, para se divertirem, os torturava e os estripava. Demônios eram seres de moral duvidosa e nenhum apego a vida alheia, especialmente a vida humana, possuíam um lado animal extremamente instável e eram seres movidos pelo instinto, sendo o principal deles o de conquista de território. Eram predadores alfas e como tais precisavam ser superiores a tudo e a todos. Não era uma regra todos os demônios serem propensos psicopatas, mas também não era uma exceção. 

Diferentes dos anjos, os demônios preferiram o subterrâneo, viviam em comunidades que chamavam de covis, porque eram sensíveis às variações de temperatura da Terra, mais especificamente ao calor absurdo causado pelas mudanças climáticas, e portanto preferiram esconder-se sob a terra onde esta variação era quase inexistente. Afinal, cavernas tendiam a ser frias, não o contrário. Por isso da denominação peculiar dada pelos humanos às duas raças:

Demônios estavam nas profundezas. Anjos, quase chegando ao céu. E cada um com as suas particularidades, como toda raça que habitava este planeta.

Ao menos era essa a conversa para boi dormir que era contada nas escolas, disfarçadas sob o véu dos mitos, pelos humanos ignorantes sobre a existência do mundo sobrenatural.

Lorenzo sabia diferente. Lorenzo havia sido educado de forma diferente.

Anjos não eram tão angelicais quanto o nome dizia ser e demônios não eram assim tão demoníacos. Na verdade, as duas raças eram duas crianças mimadas que não conseguiam conviver.

Anjos e demônios existiam desde que o mundo era mundo, e desde que o mundo era mundo eles estão sempre brigando um com outro, pelas razões mais fúteis. Eram os próprios Montecchio e Capuleto da vida real. Tudo era motivo para conflito, a razão do por que da rivalidade entre as duas espécies foi perdida há eras e agora era mais uma reação automática, o desprezo que eles sentiam uns pelos outros, codificada em seus DNAs, do que qualquer outra coisa. Anjos eram irritantemente moralistas e seguidores de regras, sendo muitas dessas incrivelmente arcaicas do ponto de vista humano, e eram soberbos ao ponto de causarem náuseas em qualquer um que os conhecesse. Eram absurdamente inteligentes, assustadoramente fortes, não apenas fisicamente como também no quesito poderes sobrenaturais, e Lorenzo desconfiava que eles só não tentaram conquistar o mundo porque eles, em comparação aos humanos, estavam em menor número. Logo, sairiam perdendo não importava o quão fortes fossem.

Demônios também eram arrogantes, eram fortes fisicamente e sobrenaturalmente, também eram soberbos, a sua moral era duvidosa e eles não eram tão seguidores assim das regras. Na verdade, eles viviam para quebrá-las, pois viam neste ato um desafio extremamente prazeroso. Muitos não eram assim tão inteligentes, mas todos eram poderosos. E o dito Apocalipse quase aconteceu por causa da picuinha entre as duas espécies. Talvez tenha sido daí que tenha vindo a história de Lúcifer e Miguel. O avô de Lorenzo sempre dizia que a Bíblia era uma boa fonte de pesquisa sobre as duas raças, porque havia descrições codificadas sobre elas nas antigas escrituras.

Outra coisa que o avô de Lorenzo disse foi que a raça humana alcançar o ápice da evolução (saindo do homo neanderthalensis e chegando ao que hoje era conhecido como homo sapiens) bem no meio da briga eterna entre os anjos e os demônios foi o que causou a existência deles.

Existência de quem?

Caçadores.

Caçadores não eram humanos sobrenaturais, não eram mestiços (porque vez ou outra um demônio relevava o seu desprezo por humanos e resolvia se relacionar, mesmo que brevemente, com um) não eram nada de especial a não ser humanos bem treinados e bem armados.

Os Caçadores eram uma família fosse pelo sangue, fosse por agregados provindos de uniões legais, fosse por pessoas adotadas dentro do clã, com um único líder para cada clã, o Patriarca ou a Matriarca, vários vice-líderes e diversos soldados. Eram uma força paramilitar, porém que não atuavam sob nenhuma bandeira, sob as ordens de nenhum Estado, e não estavam ali para proteger território, mas sim pessoas que em sua ignorância sobre a existência daquele mundo, usualmente eram as primeiras vítimas daquele mundo. Proteger as pessoas e o segredo sobre a existência do sobrenatural. A humanidade nunca reagiu bem com coisas que não sabia explicar, era um fato. 

Os Caçadores tinham as suas próprias regras, o seu Código de Caçada, o que era a sua lei.

O treinamento de um futuro Caçador começava cedo, aos sete anos de idade, e quando este era completado havia uma caçada de estreia onde o jovem aprendiz era jogado em campo, sem supervisão, e tinha que ser bem-sucedido em sua missão ou morreria, literalmente, tentando. Isto acontecia, geralmente, aos dezesseis anos. Se vitorioso, o adolescente era emancipado legalmente e solto no mundo para trabalhar como aquele responsável em manter o equilíbrio.

Porque era isto o que os Caçadores faziam: manter o equilíbrio.

Caçadores não iam somente atrás de criaturas sobrenaturais (até porque essas, milagrosamente, causavam poucos problemas) apenas para garantir que a raça humana fosse a superiora na Terra. Não, a função deles era garantir que os demônios e os anjos não começassem outra guerra, como várias outras que ocorreram no passado, e que foram de proporções apocalípticas.

Porque, como dito antes, anjos raramente conviviam com os humanos, mas os poucos que se arriscavam a descer de suas montanhas se tornavam presa fácil para os demônios.

Fora de seus ninhos, perambulando sozinhos por aí, anjos eram mais vulneráveis do que aparentavam ser e demônios viam nisto a oportunidade de caçá-los e matá-los, apenas para irritar outros anjos. E era aí que os Caçadores entravam.

Os Caçadores iam atrás desses demônios e os matavam antes que a legião ao qual o anjo pertenceu resolvesse buscar vingança e começasse uma guerra em território humano, criando assim um círculo vicioso. Um demônio mata um anjo, os anjos em busca de vingança matam o demônio, os amigos desse demônio decidem se vingar e então a briga não teria fim até que o último anjo ou demônio caísse, que viesse primeiro, e depois de destruir metade da Terra e boa parte dos outros seres vivos que nela habitava, incluindo a raça humana.

Anjos e demônios poderiam estar em menor número em relação a humanidade, contudo eles tinham um grande poder de fogo ancorado em seus poderes sobrenaturais e, como explicado antes, humanos não reagiam bem ao lidarem com o desconhecido. Eles entrariam na briga para se protegerem e tendiam a ser dramáticos quanto a isto (leia-se bazucas, tanques, até chegarem a armas nucleares). E então, quando todos se dessem conta, a devastação já teria acontecido por causa de um demônio cabeça quente que arrumou uma briga de beco com um anjo perdido.

Sim, era exagero este cenário? Poderia ser. Mas os caçadores viviam de construir cenários apocalípticos, para assim evitá-los. 

Caçadores também iam atrás de demônios que matavam humanos de forma vil e apenas por matar, apenas por diversão, porque as leis e prisões humanas não seriam suficientes para detê-los, porém raras eram as vezes que um demônio sucumbia ao seu instinto de predador e isto acontecia somente quando ele estava a beira da loucura. Demônios tinham certas peculiaridades que se desenvolviam quando ficavam muito tempo longe de seus bandos (também conhecido como família), mas isto era um fato para ser discutido mais tarde.

Veja bem, Lorenzo não sabe dizer quando, exatamente, este acordo de equilíbrio começou. A lenda era a de que alguma força superior, cansada da rixa entre as duas raças, nomeou os humanos como o contrapeso da balança e, por algum milagre divino, demônios e anjos respeitaram essa decisão. Os Caçadores surgiram quando grupos específicos de humanos foram escolhidos, sabe-se lá sob qual critério de avaliação, para carregarem o fardo deste acordo lavrado com magia em um livro de regras qualquer que ficou perdido no tempo.

Lorenzo só sabia que desde que se conhecia como gente era assim que as coisas funcionavam:

Se um anjo ou demônio ameaçasse o equilíbrio, um caçador ia lá resolver o problema.

Lorenzo perdeu as contas de quantos anjos e demônios já despachou para sabe-se lá qual pós-vida esperava por eles. Quantas vezes quase ficou à beira da morte por enfrentar um deles, quais as cicatrizes em seu corpo equivalia a qual batalha, quantos ossos já quebrou neste meio tempo, quantas cabeças já estourou com a sua fiel PUMP. A única coisa que Lorenzo não tinha perdido era a capacidade de dormir depois de uma caçada.

Moral nunca foi um problema para Lorenzo. Sentimento de culpa? Ele já havia esquecido há tempos o que era isto. Sentir-se culpado era garantia de morte lenta e dolorosa durante uma caçada. O clã os treinava desde cedo para entenderem que esta era a sua missão, que o que faziam era o certo, que o Código devia ser seguido à risca, mas a consciência vez ou outra aparecia para dar um olá.

Demônios e anjos não eram exatamente preto no branco. Um deles não era o mocinho e o outro o bandido. Na verdade, eles eram uma versão bizarra e sobrenatural dos humanos. Eles poderiam ser bons, poderiam ser maus, poderiam ser qualquer coisa se evitassem o instinto básico de aniquilar um ao outro.

O seu avô dizia que anjos e demônios eram energias opostas e, ao mesmo tempo, iguais. Eles se repeliam por causa do ódio que sentiam pela outra raça e se atraíam involuntariamente por causa deste mesmo ódio. Eles não toleravam a existência um do outro por pura regra da natureza, eles eram predadores e presas um do outro, e sabe-se lá qual força do Universo os trouxe à vida com o único propósito de se matarem. Mas, quando não estão querendo se extinguir, dentro de suas respectivas comunidades, eles eram normais, longe de serem os monstros usados nos velhos contos de fadas (antes da Disney vir e glamourizar tudo) para assustar criancinhas desobedientes.

Lorenzo sabia disto porque teve que estudar muito, pesquisar muito, aprender muito sobre as duas raças para assim poder caçá-las quando fosse necessário, sem cometer erros tolos que levassem a sua morte ou a fazê-lo matar um demônio ou anjo por motivos errôneos, e várias coisas ele aprendeu sobre esses seres:

Anjos eram criaturas de família. Para eles, a legião era tudo.

Demônios poderiam viver em paz com outras criaturas se assim quisessem, bastava ignorar os seus instintos territorialistas e aprenderem a conviver longe da conexão com os covis. Mas havia sempre aquele momento, aquele único segundo, em que todo o bom senso fugia de suas mentes quando um anjo encontrava um demônio, ou um anjo resolvia deixar a moral de lado ou um demônio cedia aos seus instintos. E então vinha Lorenzo ter que ficar à espreita, no meio da madrugada, com a sua espingarda carregada, apenas esperando a sua caça e não dando a esta nem tempo de pensar antes de lhe estourar os miolos.

Como dito antes, nem todos os anjos eram angelicais e nem todos os demônios eram ruins.

Lorena era um bom exemplo disto.

A bela Lorena que estava deitada sobre a cama como uma obra de arte, com o seu corpo nu iluminado pela luz da lua crescente que entrava pela janela.

Demônios eram de fácil identificação entre os humanos conscientes do sobrenatural, devido a beleza surreal que eles possuíam, desde a sua máxima perfeição física aos seus olhos de cores nada convencionais. Em seus estados normais, sem as garras e as presas que usavam para estripar e outras coisas mais, eles eram como estátuas de deuses greco-romanos, esculpidos em mármore, de tão belos. O que era irônico. Os Anjos, pelas histórias, deveriam ser belos, mas os Anjos na realidade eram apenas seres alados com aparência comum e extremamente antissociais. E o conceito de beleza deles estava em suas asas, não em seus corpos.

Mas, voltando ao assunto, o caso de Lorenzo com Lorena era antigo, embora não tenha começado de maneira sexual, e ele sabia que não passaria disso: um caso. Assim como sabia que se alguém do clã Cipriani, a sua família, soubesse deste relacionamento fora das regras, no mínimo iria lhe dar uma surra.

Demônios não eram confiáveis, ainda mais perto de Caçadores. Muitos já tentaram os seduzir, descobrir os segredos dos clãs, destruir a rede de caça perfeitamente montada que eles tinham, eliminar o contrapeso da balança para assim ficarem livres dessas regras tolas. Como dito antes, demônios viviam para quebrar regras. Fracassaram, obviamente, mas entraram na lista de criaturas não confiáveis. Não que alguma delas fosse, e nisto Lorenzo estava propositalmente generalizando a situação.

Caçadores eram paranoicos por natureza e às vezes não confiavam nem uns nos outros.

Mas, como foi dito antes, Lorena era um caso passageiro e mesmo que Lorenzo quisesse torná-lo permanente, receberia uma risada de escárnio na cara como resposta a sua sugestão. Demônios não se apegavam, pois prezavam a liberdade mais do que tudo e, para eles, um parceiro era sinônimo de amarras. Talvez esta fosse uma das razões dos anjos os detestarem. Demônios eram vistos como criaturas promíscuas e sem caráter aos olhos deles. Lorenzo, no entanto, preferia não julgar ninguém, porque ninguém era perfeito.

— Lorenzo… — Lorena virou sob as cobertas. O seu cabelo negro descia em ondas sobre o seu ombro esquerdo, contrastando perfeitamente com a sua pele morena. Os seus olhos eram dourados, como ouro puro, e o seu sorriso era sempre largo e sedutor. Ela realmente era uma visão de tão perfeita — Venha para a cama — disse com um ronronar.

Lorenzo bem que queria, mas depois de uma caçada a adrenalina demorava horas para esvair de seu corpo, o que lhe tirava o sono por completo e abafava o seu cansaço. Era por isso que ele sempre recorria a Lorena para descarregar essa energia, a usando como válvula de escape. Pessoas de fora poderiam considerar a atitude de Lorenzo mesquinha, mas Lorena não se importava. Pelo contrário, ela adorava quando um Lorenzo vibrando com energia contida vinha bater em sua porta, para não dizer nem mesmo um oi quando esta se abria, e já ia entrando no apartamento, a arrebatando em um beijo e começando a tirar as suas roupas.

— Não, é melhor eu ir — Lorenzo desceu do parapeito da janela, onde observava a rua deserta durante aquela madrugada, no subúrbio de Roma. O melhor mesmo era ele se vestir e partir antes que…

Um celular tocou no quarto, o seu celular, e Lorenzo levou ao menos uns dois minutos para encontrar a sua calça e retirar o aparelho do bolso dela, o atendendo.

— Eu não sei quem você engana Lorenzo, mas eu sei que está com a vadia da Lorena.

Lorenzo abriu a boca para responder, talvez defender Lorena que, com certeza, ouviu o singelo ‘elogio’, mas quando ele olhou para ela sobre a cama, Lorena apenas sorria como se ofensas fossem uma coisa corriqueira em sua vida e ela era superior demais para abalar-se com as mesmas.

— Venha para casa agora, tenho trabalho pra você! — e o som de ligação desconectada soou antes mesmo que Lorenzo pudesse dizer qualquer coisa como resposta para pessoa que o ligou.

— Quem era esse doce de criatura? Sua esposa? — Lorena disse em um tom provocante, espreguiçando-se sobre a cama como um felino, e provocando Lorenzo de maneira deliciosa com as suas longas pernas, os seus seios fartos e o seu sorriso sacana. Lorenzo sentia que estava ficando animado com aquela visão, mas ordem havia sido ordem.

— Muito engraçado — Lorena sabia que Lorenzo não era o tipo de homem que planejava constituir família no futuro. Até porque, qualquer esposa que ele fosse escolher teria que vir de outro clã de Caçadores. Um humano normal jamais aguentaria a vida que eles levavam.

Claro que havia exceções. Havia Caçadores que vez ou outra fugiam das convenções e escolhia um civil para desposar. A sua mãe foi uma dessas exceções e o casamento dela só durou tempo o suficiente para ela ter os cinco meninos que dariam continuidade a linhagem de sangue dos Cipriani. E dois anos depois do divórcio a sua mãe morreu durante uma caçada e a avó materna de Lorenzo, Carmem, dizia com um desprezo desmedido na voz que isto foi culpa do maldito Carlo, seu pai, que partiu o coração de Giuliana, sua mãe, a deixando sem cabeça para se concentrar no trabalho.

Lorenzo tinha dez anos quando Giuliana morreu. Marcelo, que era o mais velho dos irmãos Cipriani, oito anos a mais que Lorenzo, foi quem pediu, junto com Carmem, que Carlo abrisse mão da guarda dos irmãos mais novos e menores de idade. Giovane tinha quatorze anos e já estava quase no final de seu treinamento, Francesco tinha oito anos na época e Alessandro apenas três.

Carmem dizia que os irmãos jamais sobreviveriam no mundo como jovens normais, tendo nascido no clã Cipriani. O nome tinha peso, tinha força, e por causa de seu trabalho nenhum Caçador era exatamente amado por anjos, demônios ou qualquer outra criatura sobrenatural. Eles teriam um alvo na testa para sempre, mesmo que abdicassem do sobrenome da mãe e adquirissem o do pai, o que Carmem recusava que acontecesse.

Ao entrar para um clã de Caçadores a pessoa adquiria o nome daquela família. Eram as regras que poderiam não ser escritas, mas eram devidamente conhecidas. Às vezes, somente o nome do clã causava mais temor nos monstros do que as armas que os Caçadores carregavam.

Mas nem sobre o meu cadáver decomposto!” Carmem gritou para Carlo quando ele sugeriu a mudança. “E a mudança do nome em nada impacta nesta situação. Está no sangue deles. As criaturas sobrenaturais conseguem farejar um Caçador de longe, mesmo que este não viva mais na caçada. Mesmo que este não carregue mais o nome de um clã!

Lorenzo não achava que ele tivesse um cheiro diferente de qualquer outro humano, mas, mesmo assim, era treinado para escondê-lo de suas caças. Alguma coisa relacionada a uma lenda estúpida de que a entidade maior, a mesma que escolheu os humanos que serviriam de contrapeso da balança, havia abençoado as famílias de tal maneira que qualquer criatura sobrenatural podia reconhecer pelo cheiro o seu status de Caçador.

Lorenzo desconfiava que na verdade era o cheiro da pólvora, do metal, do material de limpeza e lubrificação para as armas, e do sangue, elementos constantes na vida de um Caçador, que os distinguia dos outros humanos.

Ah! E Lorenzo já mencionou que Caçadores também lembravam a máfia, com conexões e dinheiro? Porém a diferença era que os negócios da família eram devidamente legais. Suas conexões? Nem tanto. E foram esses mesmos negócios que os tornaram ricos e influentes. Influência que geralmente se estendia sobre um único território, normalmente o território de origem da família, e que estava sob a proteção desta. Os Cipriani inicialmente tiveram como território a ilha de Chipre, por isso do nome, mas durante a expansão do Império Romano, a maioria de seus antepassados foi parar no continente e montou base em Roma, cidade que hoje era o território deles.

Os Cipriani tinham uma matriarca: Carmem, a avó de Lorenzo, aquela que tinha acabado de ligar dizendo que sabia o que ele estava fazendo e com quem e que era para ele voltar para casa imediatamente. A lembrança foi o suficiente para fazer a animação de Lorenzo desaparecer, o que facilitou dele vestir a sua calça.

— É uma pena, eu estava pronta para a segunda rodada — Lorena comentou coquete, entreabrindo as pernas em um convite silencioso, e Lorenzo engoliu em seco e colocou a camisa — Parece que eu vou ter que continuar essa brincadeira sozinha — o que realmente é uma pena, Lorenzo pensou enquanto calçava as botas e em seguida colocava a jaqueta de couro negra e surrada pelo tempo, e que era a sua fiel companheira.

— Pense em mim enquanto estiver brincando — Lorenzo provocou, debruçando sobre Lorena na cama e capturando os lábios úmidos com os seus em um beijo longo e cheio de promessas, que teriam que ser cumpridas em um outro dia.

Lorena riu quando ele se afastou e ainda lançou mais um beijo seguido de uma piscadela quando Lorenzo recolheu o seu capacete e deixou o apartamento, rumando minutos depois na direção da Kawasaki Ninja estacionada sob um poste de luz.

A moto sempre era a melhor amiga de um Caçador, ainda mais em Roma, onde o centro da cidade era de ruas absurdamente estreitas e a atividade sobrenatural irritantemente grande, o que sempre ocasionava uma perseguição ou outra. Lorenzo era rápido se precisasse correr a pé, mas existiam criaturas sobrenaturais que pareciam uma cruza do Papa-Léguas com o Ligeirinho, a ponto de nem mesmo Usain Bolt ser capaz de alcançá-las. Por isso da Kawasaki. O único problema das motos era que elas tornavam complicado carregar muitas armas em sua garupa. E mesmo se fosse possível, estas chamariam muita atenção.

Criaturas sobrenaturais andavam entre os humanos, mas nem toda a humanidade tinha completo conhecimento da existência dessas criaturas. O pior ignorante era sempre aquele que não queria ver e Lorenzo achava que esses eram os mais felizes de todos. O problema era que dentro desse grupo de ignorantes estavam algumas autoridades. Leia-se: a polícia.

Não se enganem, os figurões sabiam sobre esse submundo sobrenatural, sobre os demônios, anjos e caçadores. Quando se deparavam com crimes fora de sua alçada, eram eles que contatavam os clãs informando sobre um ataque fora do normal, eram aqueles que estavam no nível operacional que eram o problema.

Um problema que os caçadores gostavam de evitar. Lorenzo não tinha paciência para usar as mentiras de praxe do livro de desculpas padrões dos Caçadores para humanos ignorantes quando tinha que explicar o porquê de estar carregando uma escopeta em plena luz do dia, dentro das ruínas do antigo Fórum Romano, entre um bando de turistas. E a polícia entrando no meio de uma caçada, sob a justificativa de estarem investigando um crime que eles acreditavam ser padrão, um assassino qualquer (o que na verdade não era), atrapalhava mais do que ajudava.

Felizmente, no problema armas a serem carregadas, Roma tinha buracos o suficiente, remanescentes do antigo império, para servir como esconderijo de armamento para os caçadores, entre outras coisas, e foi para um desses buracos que Lorenzo apontou a sua moto e disparou a toda velocidade.


oOo

 

A PRAÇA NAVONA ERA UM dos pontos turísticos mais visitados de Roma pela manhã, e os seus prédios antigos e com restaurantes tipicamente romanos no térreo eram uma atração à parte, além das belas fontes. Mais da metade daqueles estabelecimentos pertencia a família Cipriani, assim como o prédio em que estes se encontravam. Mas se você pensa que eram nesses prédios que estava o quartel-general dos Cipriani, se enganava. Este era a praça. Literalmente a praça.

Ou melhor dizendo, embaixo da praça.

Poucos sabiam que havia uma Roma sob Roma, assim como poucos sabiam que a antiga Roma ainda persistia sob a nova Roma. Arqueólogos acharam que as ruínas do antigo império não mais existiam, até que um projeto de implantação de metrô os fez descobrir esta cidade sob a cidade. Obviamente que o metrô foi esquecido e pedaços de Roma tornaram-se verdadeiros sítios arqueológicos a céu aberto, outras partes ainda estavam sendo procuradas e, se possível, escavadas. Mas a praça Navona era uma exceção.

Quando o processo de busca por mais ruínas começou, os Cipriani usaram de sua famigerada influência para afastar os pesquisadores da praça, porque se eles conseguissem chegar ao seu subterrâneo, aí sim eles teriam orgasmos múltiplos ao descobrirem a maravilha que se escondia embaixo de Navona e estendia-se bem além do limite dessa.

Sob a praça o que havia não eram ruínas, era uma construção muito bem preservada de salas, câmaras, salões e túneis, descoberta e usada pelos Cipriani há gerações.

Uma pesquisa dos próprios integrantes do clã os fez chegar a conclusão de que aquele lugar foi uma velha universidade que provavelmente foi abandonada diante da queda do império, e cuja estrutura permaneceu milagrosamente intacta, mas não exatamente confiável.

Hoje a velha universidade tinha as paredes reforçadas pela arquitetura moderna, a eletricidade foi instalada através de cilindros que seguiam ao longo dos corredores, acompanhando os rodapés, e levando a fiação para todos os cantos. Os arquitetos que reforçaram a construção durante a última reforma não quiseram arriscar abrir buracos nas paredes, portanto as tomadas e as luminárias eram todas externas. O local também possuía vários e enormes salões que provavelmente foram usados como refeitórios ou bibliotecas, e cuja função foi restaurada pelos Cipriani.

Quatro de nove grandes salões foram descobertos intactos, e um agora era usado como o refeitório do clã, outro como a  biblioteca, um era usado como ginásio de treinamento e o quarto era usado como sala de conferência. Era um complexo de qualidade militar, disfarçado de relíquia histórica, e que daria inveja até mesmo aos militares. Algumas câmaras eram usadas como escritórios e Lorenzo deu um ‘oi’ para Marcelo assim que passou pela porta da câmara dele.

Cinco, das vinte e duas antigas salas de aulas, eram onde se concentravam os gênios da computação, pois nem todo Cipriani possuía vocação para armas e punhos e uma caçada sempre envolvia mais do que tiros. Na maioria das vezes havia todo um trabalho de investigação a nível policial, porque eles simplesmente não podiam confiar na palavra de um demônio ou anjo, ou uma testemunha humana traumatizada que não sabia exatamente o que viu. E algumas vezes a morte de anjos ou demônios não estava exatamente relacionada a animosidade entre as raças. Às vezes um demônio ou anjo eram mortos em outro tipo de confronto sobrenatural, mas as suas famílias sempre preferiam colocar a culpa em seu inimigo natural.

Se os caçadores fossem atrás dos culpados apenas porque um demônio ou anjo os apontou como culpados, o equilíbrio teria sido destruído há muito tempo. E mortes por causa de outras rixas sobrenaturais estavam fora da alçada deles. Caçadores só iam atrás de lobisomens, vampiros e afins se esses matassem humanos pelo puro prazer de matar ou se as mortes se transformassem em um problema que corria o perigo de sair do controle e expor o mundo sobrenatural. Fora isto, que os anjos e os demônios resolvessem este problema sozinhos.

A sala dos gênios da computação era iluminada com luz econômica, com mesas e baias com cadeiras ergonômicas, e sempre tinha alguém trabalhando independente do horário, pois nem sempre a polícia contatava os caçadores quando havia um assassinato suspeito, simplesmente porque eles não eram treinados para encontrarem os menores sinais que fossem de que aquela morte envolvia o sobrenatural. Os técnicos estavam ali para isto, para monitorarem a polícia e alertar ao clã sobre qualquer propenso caso que estivesse na alçada deles.

Lorenzo também deu um ‘oi’ aos médiuns ao passar em frente a uma das salas que eles usavam. Esta não tinha baias ou mesas, fios ou computadores ronronando baixinho em um trabalho frenético e ininterrupto de pesquisas, mas sim tapetes, velas e incensos.

Caçar o sobrenatural não era fácil. Cada espécie tinha um meio peculiar de se locomover sem precisar usar exatamente as pernas, ou algum transporte humano. Os médiuns ajudavam a apontar uma localização aproximada de onde a caça surgiria, ou ao menos indicar um rastro que o caçador pudesse seguir. Eles também ajudavam a montar as armadilhas mágicas que os caçadores usavam, pois balas e punhos nem sempre eram o bastante.

Lorenzo passou por um dos salões de treinamento, onde quatro caçadores usavam sacos de areia para descontarem as suas frustrações, e finalmente chegou ao salão de conferência.

Este não era grande coisa. Era menor que os outros salões, mas maior do que as câmaras e velhas salas de aula. Tinha uma enorme mesa de mogno em formato oval no centro, cadeiras empilhadas a um canto e sobre a mesa havia mapas, fotos e várias pastas de papel pardo abertas com folhas A4 impressas com informações que Lorenzo não conseguia ler, não sem dar pinta de que estava lendo.

Carmem estava debruçada sobre a mesa. Walter, o seu segundo marido após o primeiro, o avô de sangue de Lorenzo, morrer em uma caçada há vinte e sete anos, estava ao lado dela. Walter era um caçador vindo do clã Camden de Londres, um homem que com apenas um único olhar impunha respeito. Ele era uma lenda entre os caçadores e ainda estava em plena forma no auge dos seus setenta e cinco anos. Negro, alto, olhos escuros e penetrantes, de cabelo raspado, ombros largos e expressão sempre séria, quando Walter olhava para uma pessoa parecia que estava desvendando todos os segredos dela com apenas aquele olhar.

Walter também era um verdadeiro lorde inglês, sem trocadilhos, porque Lorenzo tinha a certeza de que havia um título de nobreza perdido entre os Camden, e ele era o completo oposto de Carmem que era a típica mulher italiana: geniosa como só ela poderia ser.

E, do outro lado da mesa, estava alguém que fez as mãos de Lorenzo tremularem em um gesto reflexo, quando ele queria alcançar a sua arma.

— Hunter — Lorenzo praticamente cuspiu o nome, como se este fosse amaldiçoado, e Hunter retribuiu a ofensa subentendida com um sorriso sacana.

— Cipriani — Hunter respondeu, sem que o sorriso diminuísse uma fração que fosse em seu rosto. E antes que a história continue, é necessário deixar uma coisa bem clara aqui:

Lorenzo odiava Hunter.


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