Lembranças de um futuro amor escrita por beehive


Capítulo 2
A mão invisível




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"Pelo resultado que agrava especialmente a pena, responde o agente que o houver causado sob o uso de quaisquer capacidades sobre-humanas, sendo ou não à ele inerentes.

Emenda ao artigo 19, de acordo com o tratado assinado pelos governos dos Estados-membros da Organização das Nações Unidas, na convenção sobre meta-genes e segurança nacional, em Londres, 13 de maio de 2029."

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Capítulo 2. A mão invisível

Coloco o meu pingente de coração prateado contra a luz, e ele brilha entre meus dedos com a força de um sentimento eterno. Eu contei a você sobre todos aqueles meus medos e para longe eles se foram, penso. Você deve ser mesmo forte, quando sente-se como um oceano sendo aquecido pelos raios de sol.

O reflexo da lua no mar cintila desgovernado com o movimento das ondas. Vejo contornos no horizonte, que é calmo mas escuro como breu. Então... isso é Jump City. X’hal, que vista gloriosa! Eu poderia acordar às duas da madrugada só para ficar olhando os lumes daquela ponte, que cruzam a baía como estrelas errantes. Exatamente como fazia na Torre da Liga. Seria minha forma de homenagem aos velhos tempos.   

Toco o vidro da janela com meus dedos. Fecho os olhos. O vento frio da noite, que sopra lá fora, tem um cheiro de dama-da-noite tão intenso que parece me trazer uma lembrança imprecisa.

Às vezes, como já falei, saio de madrugada para contemplar o momento. Não adianta explicar, será que você poderia entender? É que no alto da noite tudo está tão calmo e silencioso, que faz toda a pressa e vaidade do dia-a-dia não terem sentido nenhum para mim. É estranho como as pequenas coisas trazem consigo grandes significados, mas é isso… A lua, o silêncio, o céu noturno, e Órion girando bem devagar, já bastam para me renovar o espírito.

Eu só não consigo explicar, ao certo, como esse sentimento desaparece com o sol nascente. Ou talvez não desapareça? Talvez seja apenas sufocado pela vibrações intensas de uma cidade frenética que acaba de acordar.

Hoje é quarta-feira, quase onze horas da noite. Os titãs já deveriam estar na cama, e eu, nem se fala: não durmo direito à três noites, com os preparativos para invadir a torre de vigilância. Estou com olheiras de uma viciada em crise de abstinência. Robin saiu à pouco, digo, do salão principal da Torre T. Ele está lá dentro, arrumando um quarto para a nova hóspede. Deve ter muitas perguntas para me fazer. Não demora e terei uma peneira do garoto-prodígio.

Ouço o ruído de turbinas de um avião levantando vôo no céu escuro, pontilhado de luminescências. O rugido vai ficando, aos poucos, cada vez mais distante, até se confundir com um arrastar de mesa atrás de mim. Uma cômoda dobrável, caótica de objetos incertos, que ganha minha atenção. Garfield e Victor a pousam no centro e suspiram. Mutano é o último a se recompor. Sua, faz carranca. E é obrigado a limpar a testa com o dorso da mão direita.

“Ufa”, diz.

Cyborg nota que eu observo o metamorfo e sorri. Tio Victor sabia tudo sobre mim, embora ele mesmo ainda não saiba disso. Sorrio de volta. Sinceramente.

Reconheço alguns apetrechos na mesa: um say, meu arco recurvo, e outros badulaques cuja função não sei dizer. Será que Robin queria fazer uma reunião à essa hora da noite?, me pergunto. É bem a cara do menino-prodígio, porém, dessa vez, uma puta péssima ideia: estou acabada. Como nenhum dos dois se adianta para explicar o que era aquilo afinal, procuro formular uma desculpa fajuta para disfarçar a minha curiosidade. Mas não tenho tempo de dizê-la porque nesse momento Rachel vem da cozinha, trazendo o seu infalível chá, e também se junta ao grupo. Apesar do sono, a empata é uma das que eu mais desejava conhecer.

Asa já me contou histórias sobre cada um dos titãs, dos anos em que liderava a equipe. Alguns deles eu conheci pessoalmente: tio Victor, tio Garfield e ─ é claro ─ Koriand’r, a eterna. De Rachel, apenas ouvi histórias por alto, mesmo assim é impreciso dizer que não. Uma amiga querida é honrada na boca de seus companheiros. E sempre estará presente na memória deles.

“Você quer chá?”

Isso quem pergunta é a própria, vindo ao meu encontro receptiva. Depois percebo-a postada ao meu lado, segurando uma bandeja de oito lados, lindíssima, margeada por ambigramas douradas que delicadamente convergiam para o centro. Aproveito o momento para observá-la de perto. Impressionante, Rachel ainda é uma garota, praticamente. Meia altura, cabelos lisos e curtos, feições suaves, mas expressivas. Uma gema de coloração avermelhada pende dissimulada em cada uma de suas mãos, camuflada por um lenço improvisado de tebukuro.

“... bem, geralmente é Robin quem divide comigo. Ou Mutano” complementa a empata, tateando as palavras que saiam de sua boca. “... mas ele só...” conclui com um gesto doce, como se procurasse por uma palavra em especial.

“... tenta ser um cara legal?”

Rachel parece se surpreender com minha sugestão, não diferente de como fora no boliche. Mas por fim aquiesce, concordando, monossílaba. Olho-a de relance, me perguntando se seria possível achar um caderno de versos seus, no quarto dela. E não consigo conter um sorriso inocente com tal ideia.

É interessante como algumas pessoas se preocupam com a aprovação de alguém especial. O que vão achar, ou o que não ─ mas geralmente quando acontece, elas se armam de uma postura defensiva. É diferente de Tamaran, onde nosso povo compartilha tudo que sente uns com os outros, e sobretudo, se importa ─ até mesmo a realeza. Os humanos, nesse ponto, me parecem mais egoístas, atrasados, puxando o tapete de quem for. Há muita solidariedade falada, mas vejam só: ainda existem sem-tetos passando fome e frio nas ruas, não é mesmo? Um contraste de culturas, sem dúvidas.

Pensar nisso agora me faz lembrar de um certo meta-humano que teve importância fundamental para eu ter a chance de estar aqui hoje. Não posso dizer que nos demos bem em algum momento ─ e mesmo depois de tudo que aconteceu, até a apoteose das circunstâncias nos obrigar a batalhar juntos na resistência ômega, não consigo imaginar o que realmente pensava de mim. Dorado foi um dos mais difíceis que já conheci. Mas não posso negar que tenho uma dívida com ele.

Não é certeza, mas acredito que Dorado esteja nas ruas de Dakota, hoje, assaltando armazéns com uma intensidade fria, reforçada pela sensação de poder viciante, um poder além dos sonhos, de usar seus poderes meta-humanos em benefício próprio. A ideia não me agrada de todo, penso enquanto prendo a ponta do dedo mindinho entre os dentes, mas terei que verificar essa hipótese o quanto antes. É necessário.

Recebo a bandeja das mãos da empata, que sorri, satisfeita com a deferência. Ainda não nevou neste mês e já vi pessoas usando casaco e cachecol, quando voltamos do Garden. É natal, mas dezembro ainda está com uns ventos típicos de agosto. Desses que faz com que todos cancelem seus planos e prefiram ficar em casa, exceto aqueles que não tem mais para onde ir.

Acomodamos a singela relíquia por sobre o balcão de vidro, e minha amiga coloca os descansos de copo no tampo da mesa. Então, vejo Kory estirada no sofá. Uma legítima sereia inocente, folheando um exemplar da Modern Bridge com a televisão ligada.

“Ela está dormindo”, diz Rachel, referindo-se à tamaraneana, “não se preocupe”.

Kory é esbelta deitada no sofá. Acho que mais esbelta do que eu me lembrava. Ai, minha gravidez modelará o corpo tanto assim? Não pode ser... Usa somente um vestido jeans, de fino tom, e não está nem aí para o frio do ar-condicionado (assim como o frio do rinque de patinação, horas atrás).

Viro-me para Rachel, que pega o controle remoto para diminuir o volume da televisão.

“Você também é telepata?”, pergunto.

A empata me olha como se avaliando se valia a pena. Talvez esteja acostumada com a reação que causa nas pessoas.

“É complicado. Eu só… senti”, ela responde.

E mostra a palma da mão, como quando alguém responde uma dúvida dando de ombros. É verdade ─ assim que vi Kory, tive um ímpeto de chamá-la para nos acompanhar com o chá. Queria com isso relembrar as tardes preguiçosas que meus pais e eu passávamos na varanda de nossa casa em Seattle, como uma espécie de reverência à um passado feliz. Pensando bem agora, minhas emoções mais fortes tem sido perto de Koriand'r. Reflexo, possivelmente, daquela série de eventos desagradáveis que sucederam ─ e antes que chegasse o estopim, com o sacrifício da infectada pelo controle tecno-orgânico das máquinas. E Rachel, estando ao meu lado, também às estava sentindo.

X’hal, isso explica aquele nosso momento no shopping, à tarde, quase que instantaneamente intimista.

Continuo com uma cara de sonada diante da empata, enquanto mil e um pensamentos se alastram pela minha cabeça. Uma sequência de memórias e histórias antigas contadas, que começam a fazer sentido ─ na prática, pelo menos. E, aos poucos, minha expressão de dúvida vai se iluminando pelo brilho de uma singela descoberta.

Certa vez estive em Londres, à serviço da AMS. Objetivo: ensaiar o isolamento de segurança da assembléia internacional sobre o uso de capacidades mutantes. Era a primeira vez que governos políticos de diversos países se reuniam realmente incomodados com a falta de uma constituição clara para a classe insurgente de meta-humanos. Que eles acreditavam ser uma ameaça à “soberania das nações” ─ o que, na verdade, era uma forma de esconder o medo de serem derrubados do seu poder. A opinião popular se dividia, mas G. Gordon assumiria um papel importante na mídia, induzindo as massas intolerantes contra os “de-gene-rados” (como passaram a chamar, pejorativos). Assim, se confundiam o que era segurança dos cidadãos, do que era puramente jogo político, mas de qualquer forma havia a pressa na regulação do uso de “capacidade notáveis” porque a justiça, em qualquer país ou jurisdição que seja, nunca pode incriminar o que a lei não especifica.

Mas como eu cheguei semanas antes da tal irritante votação, pude aproveitar para conhecer a cidade. O seu charme, as suas pessoas. De certa forma, isso foi fundamental para o que viria a acontecer depois, mas não necessita ter pressa de contar o porquê. Por hora, podemos dizer que o meu “conhecer” não significa só conhecer o Big-Ben, o Parlamento, ou nenhum desses programas clichês de turistas enfadonhos preocupados unicamente em encher o facebook de fotos e check-in. Foi diferente. Eu queria andar, sabe? Andar, inspirar, digerir, ingerir, enfim. Sentir bater o coração de Londres ─ puta cidade fria, diga-se de passagem, mesmo para uma menina crescida no frio de Seattle. Tinha explicação: havia chegado na baixa temporada, sendo recebida por um frio impossível de ar gélido chicoteando meu nariz.

Não pretendia ficar mofando no hotel, porém. Resgatei do fundo da mala um velho cachecol do glorioso Chelsea, meio puído e desbotado, mas limpo e de resto desnecessário, dado o clima local, e me pus a andar quadras e quadras feito uma moto-maníaca. Conheci pessoas, ouvi histórias, contei histórias ─ sempre com aquele sotaque de americana mimada, inconfundível entre o inglês britânico, que puxa o “erre” como quem nasce lá pros lados da Irlanda ─ o que também ajudou a formar algumas amizades “de ocasião”. Uns descalibrados, a maioria. E, por isso mesmo, únicos.

Foi num desses dias de euforia turística que encontrei uma loja especializada em chás maravilhosos, à dois quarteirões a oeste do Chat. Nem sei que como entrei naquele lugar. Andava numa onda povoada de novidades, levada pelo vento insistente enquanto puxava o cachecol do Chelsea mais para a boca, quando notei-me dentro de uma casa de chá chamada Jarre de Thét. Era um octógono rosa achatado, com paredes inteiramente cobertas por espelhos, cada painel emoldurado em neon vermelho, e duas galerias abarrotadas de cubículos comportando seu portfólio. Um portfólio formidável, diga-se, que incluía diversos blends aromatizados (geralmente com frutas vermelhas) e, entre elas, uma pequena latinha de chá inglês que era uma promessa de felicidade. “Frutas do paraíso”. Jamais esqueci daquele sabor, e do aroma frutado que se espalhou por toda a minha casa ao prepará-lo. Algo indecifrável, que lembrava morangos felizes recém colhidos no jardim.

É estranho pensar nisso agora, já que a segunda vez em que estive na capital britânica, só pôde ser chamada de “feliz” por saber que nada mais de ruim poderia acontecer.

No dia seguinte, e antes das folhas oxidarem, levei imediatamente as “frutas do paraíso” para tomá-las com Dick e Kory, na varanda de um sobrado tranquilo onde morávamos. Aquela mesma varanda! Palco de histórias. De cadeiras de palha, e peitoril de madeira úmida, já com marcas escuras de infiltrações, onde os últimos raios de sol derretiam a chuva gelada, típica de Seattle, e faziam os líquens brilharem mais vívidos, em um tipo de espetáculo verde. Era o nosso mundo secreto. Que apenas nós três conhecíamos. E que nos envolvia com uma espécie de aurea de proteção, avessa à quaisquer preocupações externas. Avessa à qualquer tipo de energia que não fosse boa.

Hoje, nosso lugar secreto é apenas um lugar na memória, mas sei que vou protegê-lo do esquecimento. Para sempre. Esse é o meu presente de gratidão.

Lembro que naquela tarde especial, Dick me contou que passou a apreciar o chá com uma antiga amiga e colega de equipe, que cultuava e sabia muito dessa arte. Ravena. Lhe perguntei, então, se fora no tempo dos titãs. Ele respondeu que fazia um bom par de anos que não a via, que não sabia como ela estava, mas que ambos tinham um tipo de ligação; uma ligação “psíquica”. E eu o vi ─ os ombros largos abraçando o encosto da cadeira de palha em que, sentada, Kory aspirava, curiosa, o aroma da xícara ─ no exato momento em que me disse isso. Tinha no olhar uma expressão longínqua que me fez pensar que se encontrava o mais longe possível daquela pequena e enclausurada varanda, com a luz fluorescente trêmula, ligada no fim do crepúsculo, chão de madeira cendrada, e uma árvore solitária coberta de musgos no quintal. Foi aí que me perguntei: “quem era você, Ravena?”. Eu me perguntei como pôde estar tão viva nos olhos de meu pai.

Rachel é mesmo uma amiga valiosa e leal, digna de ser lembrada na memória dos seus companheiros. Não é difícil entender o porquê. Empatia. Você não sentiria o mesmo?

A pergunta que faço nesse momento é só pelo prazer de ouvir algo que já sabia.

“O que mais você sentiu?”

♥ ♦ ♠ ♣

Sabe, é muito bom compartilhar seu mundo com alguém que possa te ver como água cristalina e te entenda como você realmente é. Quer dizer, uma angústia entalada que te preocupa, ou uma felicidade que não se contém dentro de ti, compartilhada sem nenhuma palavra. É por isso que fazemos amigos. É por isso que precisamos tê-los.

Meu espírito ainda exulta como um pássaro feliz por ter reencontrado minha família, e um lugar para recomeçar. Imagino que Rachel fora a primeira pessoa a ter me decifrado depois daquelas três seguidas e cansativas noites de preparativos, em que, mergulhada em apreensão e expectativa, eu planejava, insone, a melhor maneira de mudar o curso da história, uma vez só. E isso é impressionante, porque não tínhamos trocado meia dúzia de frases, se tanto, naquele sofá.  

♥ ♦ ♠ ♣

A garota dos olhos índigo entrelaça uma mecha de seu cabelo entre os dedos, a levando para trás da cabeça.

“Bem, eu tenho que admitir que nunca é simples nomear um sentimento… mas eu te vi olhando pela janela e...”

“E?”

É nesse instante que as marcas douradas da chaleira conquistam toda a sua atenção, como se merecessem um exame cuidadoso. Sento-me no sofá e tento entender o que diz a jornalista, mas, naquele instante, sua voz é praticamente um sussurro. A sonolência pregava em meus olhos.

Rachel levanta a olhar e vejo que as sombras do quarto são manchadas com a sua luz.

“Parecia satisfeita…”, pontua. “Senti uma plenitude agradável me dominando…“

E com estas palavras, ela me conquistou em definitivo. O ar parece girar bem devagar, não sei se pelo sono que dominava meu corpo ou por tudo que tinha acontecido nos últimos dias... tudo tão rápido. Como um maldito efeito em cascata. De repente o silêncio se instaura entre nós e, francamente, eu desejava que continuasse assim. Queria apreciar aquelas lembranças passando como flashes na minha mente, pois acho que ainda não havia tido tempo para processar tudo isso. Mas então ao notar que ela hesitava, timida, procuro dar corda à nossa conversa. Apesar de não revelar tanto, o que escolhi dizer teve o peso de uma confissão:

“Há muito tempo não contemplo o brilho das estrelas. Não como deveria.”

Essas palavras saem da minha boca como um desabafo.

Em seguida, ofereço o bule à Ravena.

“Não, tem algo mais”, diz ela, enfim se acomodando no sofá. “Você gosta de apreciar a madrugada, não é mesmo!?”

Ok, com essa sim, Rachel consegue acender a chama da surpresa em cada centímetro da minha pele, admito. E a empata logo demonstra compartilhar dessa perspectiva, ela sabe que acertou, então não vai dar para esconder. Em quase dois anos, nunca alguém havia me decifrado em uma coisa tão tola e tão essencial para mim, de uma forma precisa. A não ser a garçonete do Jarre de Thet, quando desafiei-a a tentar imaginar o que eu fazia na terra da Rainha. Mas ela não conta. Era maluquinha.

“Sim, gosto muito”, confesso, “acho que podemos colocar nesses termos”.

Explico a Rachel que havia passado a gostar do silêncio e da introspecção, depois de uma noite de terrível desamparo e incerteza. Foi quando esse hábito atípico se tornou mania, quase obsessão, nas diversas noites refugiada em Kaindy, ao passo em que aumentava o número de baixas entre os resistentes à agenda Luz. O sentimento comum era o de um tipo  de enjôo que não tem nome. Como quando você só está esperando por algo ruim acontecer. Mas então, percebi que esses momentos de solidão na alta noite significavam algo diferente para mim, pois sentia meu espírito renovado. Minha dose diária de esperança.

Nada como esperar que o mundo se cale, para que possamos ouvir a nossa própria voz. Quem realmente somos. Mas isso não quer dizer, hoje, que rejeitaria um bom blues caipira enquanto contemplo as estrelas, e elas, por sua vez, contemplam o que há bem lá dentro de mim. Johnny Cash, ou Thom Yorke feito na hora. Música de raiz e da alma. Sem música, a vida seria um erro, diria Nietzsche. Sei lá, acho que a melodia certa traz consigo propriedades mágicas ao silêncio noturno. E, afinal, não é na alta noite, quando o mundo se silencia, que são confortadas as angústias humanas? Talvez, contemplar a madrugada não significa nada mais do que ouvir a única voz em todo planeta. A voz que vem do seu interior. E então poder expressá-la de verdade.

“Viu? Não parece tão excêntrico, não é?”

Minha amiga entra na brincadeira, assoprando as primeiras lufadas de ar quente que se desprendia desordenadas da infusão, antes de um gole.

“Se você está dizendo”.

O toque surge de repente, como de uma mão pousada no meu ombro. Não é Rachel, não teria como ser ela. Levanto a cabeça e dou de cara com Dick me observando.

“Espero que a vista do céu aqui seja do seu agrado.”

“É formidável”, respondo.

Ficamos nos olhando mais uma vez sem dizer nada. No entanto, minha cabeça virada para cima, encostada no topo do sofá não era das posições mais dinâmicas. Como se percebendo meu desconforto, Dick passa à minha direita, e pega uma almofada. O que ele não sabe porém, é que eu estou tentando decifrá-lo, como a empata me decifrou outras vezes. Vejamos: o cabelo revirado faz com que parecesse mais ousado. Vestia uma blusa verde cor de ervilhas enlatadas, enfiado num casaco cinza ébano e duas de suas olhadas discretamente se dirigiram à bela adormecida atrás da empata. Ahh… o primeiro amor.

Acho que estou pegando o jeito. Isto é, para uma novata.

“Desculpe pelo ombro”, começa ele.

Respondo que não havia problema, pois minha fisiologia me permite uma cicatrização mais rápida do que a normal. E movimento o meu braço esquerdo em volta da espádua para o tranquilizar. Isso também o deixa satisfeito ─ o sorriso de felicidade dele tem mais de um palmo. Seu olhar, outro tanto de alívio, ao resgatar na lembrança que teve uma pequena parcela de culpa quando entrou sem aviso na luta minha.

“Como era mesmo, ele?”

Era um cimek, mas não vai mais incomodar. Quanto a nós, vamos treinar juntos e acertar a sincronia. Isso eu poderia ter dito à ele, mas em vez disso apenas reclamei que estava muito acabada. E agora, com efeito do chá estava me deixando toda mole (faço o movimento de corpo mole com uma careta divertida).

“Podemos continuar, mas amanhã, ok!?”, proponho.

♥ ♦ ♠ ♣

O quarto de titã temporária para o qual Dick me levou não era exatamente novo. Mas em sua utilidade, era o que tinha de melhor disponível para a ocasião inesperada. Uma simples cama casal em lençóis azuis, um criado mudo prático, tapetes sob o piso de cerâmica frio e um guarda-roupa grande, contíguo à janela e um pouco afastado das venezianas ─ com vista para o nada, porém que, de dia, deveria servir para trazer alguma luz. Havia na parede um quadro de uma garota loira, de olhos azuis. Era a mesma que aparecia abraçada com Mutano, numa roda gigante, em outro retrato, sob a mesinha do criado-mudo. É basicamente só isso o que havia no quarto, mas tudo era, de certa forma, cativante. E também passava a sensação penetrante de que existia um significado agregado em cada canto ali. Um significado e um nome.

Já passava da meia-noite quando Dick me desejou “boa-noite”, e disse que poderia usar o comunicador com ele, caso precisasse de alguma coisa. “Qualquer coisa”, insistiu gentilmente. Fazia mais de um ano que eu precisava desse tipo de atenção. Aproveitei cada segundo, até achar o momento certo de fazer a pergunta. E Robin já estava no meio da porta, a caminho do seu quarto, quando eu perguntei:

“Por que você não fala com ela?”

Ele não responde. Prefere estudar minha expressão antes. Deve ter pensado mil coisas, todas sem grande ajuda. A natureza do amor não nos permite escolher por quem nos apaixonamos, é uma coisa meio louca, (aliás alguém deveria escrever um manual sobre isso) mas “há sempre um pouco de razão na loucura” (op cit. Nietzsche, de novo).

“Falar com quem?”

O olhar com que o respondo tem só um quê de ironia e desafio, que o deixa embaraçado.

“Acho que não tem. Uma resposta... pra isso. Tem?”

Então eu o desejo “boa noite” também, o liberando daquela devida saia-justa no momento certo. E isso foi a última coisa que lembro ter falado, até cair no sono, exaurida, sobre a cama, sem saber as surpresas que o brilho do sol me traria no dia seguinte.




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Notas finais do capítulo

:D



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