Lembranças de um futuro amor escrita por beehive


Capítulo 1
O começo, depois do fim


Notas iniciais do capítulo

Foi uma surpresa para mim, ter lido na wikipedia que, em o Reino, HQ de um U.A da DC, é revelado que Nightstar tem medo da morte, interesse em botânica e um relacionamento com Damian que o pai desaprova. Foi quase por essa linha que construi a personalidade dela, nesta fanfic, nos momentos em que Mar'i/Gina questiona a inutilidade da existência.

Ela precisa achar alguém que a traga de volta para a vida.



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Capítulo 1. O começo, depois do fim

Eu me movo lenta e constante, mas eu me sinto como uma cachoeira, deixando no passado aqueles que eu costumava conhecer. E aquilo que eu procurava entender, ficou para trás, em algum lugar escuro da minha mente, como uma arca vazia enterrada. Mas eu nunca me senti tão melhor.   

Ajeitando no nariz, o óculos de armação preta, a haste esquerda colada com uma pequena fita crepe, enrolada delicadamente, o menino galga devagar os primeiros passos no ringue de gelo. Então se apoia no parapeito, segurando a mão de Kory, com alguma dificuldade para se equilibrar sobre as lâminas dos patins. Observo a cena. Rachel, que sentada à mesa comigo, levava à boca uma xícara de chocolate com a mão direita, enquanto a esquerda segurava um livro aberto, ligeiramente inclinado para dar foco a vista, eleva os olhos.   

“Aconteceu alguma coisa?”, ela pergunta, ligeiramente interessada. E, no olhar, sustenta uma receptividade repentina de amigas cúmplices de um mesmo segredo. Seu lábio inferior teima em se armar num risinho de quem já sabia a resposta, de alguma forma. Já não era a mesma Ravena séria e taciturna, que falava frases soltas, sem expressão. Umas frases neutras. Sem vida. Foi uma surpresa para mim, vê-la assim, e acho que ela também percebeu no meu olhar.    

Depois que minha mãe morreu nas montanhas Kaindy, onde refugiaram-se os rebeldes da resistência contra “a agenda luz”, eu senti que perdia uma parte importante do meu coração, do desejo de viver. E mesmo assim, procurava forças para confortar ao meu pai, pois eu sabia que ele carregava uma dor ainda maior, elevada pela culpa. Talvez também pela responsabilidade… digamos assim, por enquanto…  a responsabilidade do fato.  O que importa agora, é que o fato, marcou uma segunda vida dentro de mim mesma, uma vida como se minha mente tivesse virado ao avesso, e a loucura tivesse atingido o meu senso de existência. Imagine acordar todos os dias questionando a inutilidade de sobreviver. Mais. Imagine isso em meio à guerra devastadora contra máquinas inteligentes, assassinas perfeitas e implacáveis, em um mundo à beira do colapso, com três das suas pessoas mais queridas depositando suas esperanças unicamente em você. Insanidade impossível?   

Mas eram dúvidas em mim.   

É um alívio enorme estar de volta ao passado, e poder sentir como era tudo mais simples na nossa época amena. Eu quase não acreditava que Richard J. Grayson estava aqui do meu lado na mesa, e simplesmente não consegui deter uma lágrima, que teimosa, percorreu no meu rosto. Ravena havia sentido a minha emoção, foi inevitável.   

Provavelmente agora eu deveria dizer-lhe que estava feliz por ter encontrado um lugar para recomeçar, só isso. Mas não era a hora, e eu sei que haverá o momento certo. Então eu apenas me volto e, encarando suavemente seus olhos, seu cabelo liso dividido até a altura do ombro e sua rubi no seu rosto quase redondo demais, eu sei que também posso senti-la.    

“Você fica melhor quando sorri, sabia?”.   

Rachel ouve as palavras no ar. E, ao ouvi-las, por um instante, desvia o foco de sua atenção para o aço cinzento do tampo da mesa. Eu fico com a impressão de que vai me dar uma expressão de desdém, mas no momento seguinte, retomamos o contato de nossas janelas da alma, e então pude ver que ela não deixou se perder o sentimento daquele segundo. Um efêmero especial contido na sutileza da frase e do gesto igualmente afetivos em sua semitransparência.   

“Não tenho muitos motivos para sorrir”, ela fala.   

E inclina as pálpebras dos olhos de volta as páginas de seu pequeno livro, como se quisesse retomar o trecho que estava lendo antes de ser interrompida. Mas consigo perceber que ela ainda permanece atenta; com o canto dos olhos procura estudar a minha reação. E isso era um bom sinal ─ não havia maiores razões para Ravena persistir na defensiva, senão achar que deprê é o novo cool. Ou talvez uma falta de coragem de mudança que, por mais ou por menos, tentava esconder uma certa carência de atenção. Vejo um pouco de mim mesma, de quem eu era, no passado, presenciando agora estas mesmas atitudes. Éramos crianças duronas, dizendo que a vida é inútil. Porém, nos nossos sonhos mais profundos, ainda estávamos gritando e correndo pelos jardins.   

Reviro os olhos com um doce de ironia nos lábios. Não sei porquê, penso, mas me parece ser a resposta mais cuidadosa para tal. A linguagem mais precisa que sempre existiu está no olhar ─ a nossa janela da alma. Foi o que descobri no Natal de oito anos, um dia único que os humanos se reúnem religiosamente em suas casas, para celebrar, em família, o espírito de gratidão. Meu pai serviu um magnífico pernil de cordeiro, acomodado em ramos de alecrim, aos nossos convidados. Minha tia, Bruce (um homem reservado, meia-idade, grisalhos, a quem me ensinaram a chamar de avô, mas ele não era) e uma mulher ─ Oráculo ─ que era em muito parecida com minha mãe. Esta me pegou no colo, mostrando-se muito encantada, havia gostado de mim. Me contou várias histórias de heróis, com aquela voz besta ─ e cheia de paixão ─ com que os adultos conversam com as crianças, enquanto os outros se perdiam no torvelinho das conversas, esparramados no sofá de veludo espanhol amarelo. Disse-me que eu iria crescer, e me tornar a mais forte dentre os super-heróis. Disse por dizer. Que eu iria salvar o mundo.   

Mas hoje nós sabemos que isso não vai acontecer. Os humanos, todos eles, são apenas diferentes, todos iguais dentro de si. Errantes em um mundo muito longe de casa, procurando uma forma de bem viver, e eu não acho certo que uns estejam muito mais satisfeitos do que aqueles que lambem a poeira na miséria. Eu só gostaria de acreditar que ninguém está fadado a jamais encontrar.   

Pouco depois, quando as conversas já não aquietavam a fome despertada pelo aroma de assado, os adultos deixaram a comodidade do sofá de veludo pelas duras e ásperas cadeiras de palha da cozinha. Eu ajudara a organizar a mesa, toalha, talheres, copos e descansos, antes e depois, enquanto minha mãe ainda preparava a salada, endívias salpicadas por sementes de papoulas e mostarda, berço para postas de salmão defumado para depois do jantar. À tudo fui observadora, curiosa como sempre, porque não era comum termos visitantes no nosso apartamento, mesmo mais tarde, quando “jõao-pestana salpicava areia nas garotinhas amadas” (sendo essa, eu lembro, uma das histórias). E adentrando a madrugada, quando já nem ânimo tinham para tocar no garfo, a rua coberta de branco, os carros congelando lá fora, uma leve culpa, ressaltada por uma ou duas taças de álcool, se imiscuiria no som das palavras que já não podiam pedir perdão a própria irmã ou dizer o quanto tinha orgulho do filho. Ou só que queria muito ser mãe.   

Como poderia eu salvar o mundo, sem salvar todas pessoas? E eu não tenho esse poder. Mas, se você realmente gosta de alguém, como uma gaivota gosta do vento, ela já teria descido da árvore, e o resto de sua vida já teria se saído bem.   

Aponto a capa do livro que Ravena segurava na mão. Era um livrinho verde com detalhes em mosaico, que eu já tive a oportunidade de vê-lo outras vezes com ela, na torre. Tinha um símbolo no centro, um círculo, no interior do qual se enrolava uma serpente numa espécie de punhal. Um grimório.   

“O que você está lendo aí?”, pergunto, imitando o foco de uma míope. Gracejo.   

Ravena não tem tempo de responder porque neste momento aparece Mutano, pulando em cima da mesa, general que tem pronunciamento de guerra para a linha de frente na batalha. Sinto a mesa oscilar, por um momento desequilibrada. À minha frente, vejo um solado, cinza e roxo, antes de ouvir a voz acima de nossas cabeças.    

“Então?! Quem vai me bater no boliche?”.   

Eu me viro e eis que dou de cara com um Mutano que não era aquele que outrora eu vi abandonado e solitário. O que havia se isolado do mundo, depois do desaparecimento de uma companheira querida, e do rompimento da equipe. Agora, os cabelos verde-musgo estão um pouco mais compridos e ele sorri de um jeito bem diferente. Seu ar era de alguém vitorioso, nos apontando três dedos, contando o polegar, enquanto a outra mão apoia a pose na cintura. Se eu tivesse de o descrever hoje, diria que era como alguém que, sem medo, vai até o microfone e nomeia todas aquelas coisas que ama, todas aquelas coisas que detesta, sem se preocupar tanto com o que pensam as outras pessoas. Gente bem a vontade com todo mundo. Gente apenas cantando sua vida, seja ela com ou sem sentido. Seja ele coadjuvante ou protagonista, antes que se fechem as cortinas no palco e chegue o momento de ir embora.   

É incrível como, às vezes, uma pessoa pode quebrar, em todos os sentidos possíveis da palavra, quando arrancada de seu antigos amigos.   

Vi que Cyborg nos observava do amplo salão, ao lado de uma das prateleiras. Na mão, movimentava uma bola de boliche, fazendo-a parecer que tem o peso de uma borracha.   

“Quem perder, paga a pizza” ─ desafia, depois de espichar a vista de um lado e do outro. Então olha para mim atrás de apoio para o seu jogo, mas eu toco um dos meus fones, atenta em ouvir o final da música. The bronze, um clássico das rainhas. Que eu tinha pausado enquanto, absorta, espiava Estelar no ringue de gelo, novamente me apaixonando pela vida.   

A atenção de Ravena se detém em Mutano. Seus olhos de repente parecem escuros, mas não consigo vê-los direito da minha posição. O certo é que sinto o ar elétrico por um curto momento, e se arrepiam finos fios castanhos do meu cabelo. Não tenho tempo de me assustar, porém, já tendo ouvido, de Robin, por alto, indicações resumidas sobre os poderes da empata.   

“Não sei quem”, fala Ravena, a mais obscura dos titãs de Jump City. “Mas se não descer daí agora, Mutano! Melhor você ter a cabeça dura!”.   

Robin, que à tudo estava alheio nesse momento, é quem tem a ideia de dar uma força ao homem-máquina. Ele descruza os braços, estirando um deles na cabeceira do sofá. Então sorri do seu jeito comedido-confiante.   

“Eu topo”.    

E propôs um torneio de duplas, onde o Mutano e eu jogávamos contra Estelar/Ravena e, sobrando eles portanto, formariam o terceiro time. Achei fantástica sua divisão, pensando na compatibilidade de entrosamento dos duos, embora Ravena não tenha se animado tanto, receando a ausência de Estelar, que continuava patinando. Foi por isso que Rachel se propôs a àrbitro.   

Ajusto o volume no meu ipod. Estou ouvindo o trecho em que Josh se ocupa em definir o quanto está perdido fora da estrada, sem nenhuma direção para ir. Digo definir por estar cantando a estrofe no meio de riffs e batidas que começam serenas e se tornam excitantes. É o tipo de música que não precisaria ter letra, a melodia já entrega tudo. Mas Homme sabe o que faz e menciona perfeitamente que todos os dias senta-se para tentar lembrar de onde foi que começou a partir. Que nem eu.   

Eu tenho andado perdida por cada estrada que sigo por aí no mundo escuro, no meu caminho para casa. E percorreria todas as estradas da terra, até gastarem-se completamente os pneus. As calotas. Só para ver a cidade esta noite, e ver o brilho das luzes com Richard e Kory, mesmo que não tenhamos nada para fazer. Eu não ligo quando estou com eles.   

Não duvido nem um pouco disso.   

Eu sei, parece clichê. Mas eu só percebi, desesperadamente, o valor que tem um momento, quando o perdi. Em uma sala vazia, amuada, pra baixo, sozinha, martelando o momento que me deixou, fora, em um segundo quando as nuvens pareciam pesadas como chumbo. Um segundo em que a verdade caiu como chuva na terra dos meus pensamentos. E eu percebi que aquilo jamais voltaria.   

São momentos intensos como esse, intrínsecos à todos os humanos, que nos mostram algo um tanto pungente transcrito na essência de nossas existências. Esperar que, um dia, simplesmente  tudo se acabará.   

(Silêncio).  

Pensar nisso agora me faz perceber que eu nunca estive de fato preparada. É loucura dizer isso, afinal quem eu era? Uma espiã de elite, capaz de agir sob qualquer imprevisto, preparada para qualquer situação. E que fora treinada pelos melhores? Mas não é esse o ponto. Havia um problema: acreditar que eu era super, invencível. E que no final tudo  estaria bem. Não foi assim, porém, quando a morte veio apenas para mostrar que eu estava errada. Eu não era super. Eu não era invencível. Nada é para sempre;   

Eu não sou nada mais do que humana.   

É difícil conhecer a existência; a maioria de nós apenas  não quer saber, e então acredita conhecer. Mas estamos todos errados. Lá fora, as folhas mortas, todas elas voam.   

Antes de morrerem, haviam árvores para manter suas esperanças.  

♥ ♦ ♠ ♣

Nas montanhas do lago Kaindy, houve uma batalha que dizimou os rebeldes da resistência contra a tirania da agenda luz. Koryand’r estava entre eles. Não lembro direito o momento em que o vente leste levou-a para longe de mim. Talvez eu tenha enterrado essa lembrança em algum lugar escuro da minha mente; quem sabe, para nunca mais revivê-la? É o mais possível. Sei que passei três dias trancada em seu quarto, isso eu me lembro. Fiquei deitada em sua cama, coberta por sua manta de seda anil, que ainda carregava o seu cheiro. Então, abraçava o travesseiro, fechava os olhos e tentava fingir que ela adentraria aquela porta a qualquer momento, trazendo klarina ─ uma sanfona de tamaran, numa das mãos, e nos chamando para um dos raros minutos gloriosos que poderíamos ter naqueles tempos de guerra.   

Mas quando eu abria os olhos, me deparava com a realidade cruel que eu não poderia mudar, por mais que a negasse. Tudo que me rodeava, cada pequeno ponto que eu podia olhar, estava encharcado de sua violenta força de vida, de sua coragem, e me fazia lembrar de algum comentário seu. Essa mania de ver o lado bom das coisas que me faria muita falta.   

Mas já era tarde demais para ligar.   

De todos os meus talentos, tudo que eu podia fazer era ir pra cama e esperar acordar pela manhã. Totalmente impotente, eu estava aprendendo a lidar com a condição inerentemente humana. Ser super agora não adiantava nada, se eu realmente não tinha como trazê-la de volta. O que significava viver, se um dia tudo estará acabado? E como eu deveria lidar com isso? Será  que um dia poderíamos simplesmente resolver... apenas gritando e berrando... Estive perdida por um longo tempo, procurando saber.   

Como eu disse: apenas humana.  

♥ ♦ ♠ ♣

Nesse momento, Ravena se levanta e leva à boca, o resto da xícara de chocolate quente de uma só vez. Acompanho-a com o olhar. Apesar das correntes de ar-condicionado excepcionalmente frias e secas que roçavam a minha pele, nas partes não cobertas pela roupa, eu só percebi que a ideia do derretido doce e fumegante era muito bem-vinda quando senti a primeira lufada de ardência gelada atingir o meu nariz, como um grande puxão de orelha de mãe. “Não esqueça o casaco. Ponha um cachecol, filha, você vai pegar um resfriado”. Sermão chamativo, sim, mas certamente doce e instrutivo. Não esquecerei novamente.  

Retiro os fones, e no momento seguinte, estamos reunidos todos, de maneira prosaica e bastante natural, num match de boliche amador. Não consigo esperar nada mais do que reviver o passado, uma outra vez, mas isso já é mais do que suficiente. Há uma dança de azul e amarelo nos luminosos do hall, onde ao fundo se estende o salão de jogos, que faz eu me sentir aconchegada, como se tivesse acabado de chegar em casa depois de um dia de revolução. Aquele era o primeiro boliche com Dick e os outros desde que eu fora enviada ao passado, até aquela época.   

(Isso soa engraçado de se dizer, a maioria das coisas que faremos agora será como na primeira vez. E eu vou fazer com que muitas delas sejam dignas de serem eternizadas. É por isso que agora, eu não sei como contar à eles aquilo que gostaria de contar, sem antes envolvê-los em um lençol puro, como uma áurea de proteção contra qualquer tipo de energia que não fosse boa. Eu só preciso  garantir que eles estejam acolhidos e possam, por escolha, se permitir ter a sensação de que vão lembrar de cada momento em que estive com eles. Com saudosismo).    

“Mutano, não olhe para a câmera… oh, chegue Ravena, por favor. Cyborg!”  

Em uma miragem efêmera e passageira, o flash engole o ar. Creio que sentimos ele, todos ao mesmo tempo, e eu demoro um segundo para entender o que se passava. Richard segura a minha mão e só então é que posso entender. Fui a primeira a quem ele decidiu mostrar a foto. Ele sabia o que eu estava pensando, mesmo não falando nada. Ele sempre sabe.  

Pego o celular e examino de perto.  

“Você nunca avisa quando vai tirar uma foto?” 

“Gosto delas espontâneas.”, responde Dick. 

Glorioso!, pensei. A foto que eu tinha nas mãos não era só boa, era formidável. A câmera pegou o momento em que Mutano, abocanhava uma bomba de chocolate, tentando olhar para trás, e Cyborg levantava um polegar convicto com uma das mãos, enquanto a outra segurava a bola. Ravena, alheia, aparecia em segundo plano comigo, encostada no braço do sofá, mas sou capaz de apostar que a maga sabia o que estava acontecendo, pois ela o olhava de soslaio, tentando segurar um riso, sutilmente.  

Sinto meu rosto aquecer. E não sei se era vergonha ou a verdadeira alegria de valorizar os gestos simples. No quintal da minha casa, havia uma árvore, cujo tronco permanecia coberto de um tapete verde de musgos que brilhavam mais vívidos ao serem atingidos pelas primeiras gotas de chuva, entre as infiltrações de umidade na madeira. E apesar de irrelevante para os adultos, com exceção de algum poeta inclinado a apreciar a doce melancolia levemente acentuada nos seus caules secos, ela se tornou cenário das brincadeiras dos meus cinco anos. Isso quando não chovia, o que era comum no nosso clima temperado, e meu pai coruja me segurava na varanda, às vezes contando histórias sobre como conheceu minha mãe, às vezes tentando tirar alguns acordes de klarina ─ a gaita, (mesmo ele nunca tendo sido tão harmônico como Koryand’r, diga-se). 

Mas era quando a chuva estiava, e as nuvens cinzas abriam nos céus de verão, que eu podia enxergar um mundo novo. Descobri que a beleza não estava no dia mais ensolarado ou na noite mais chuvosa. Ela estava no crepúsculo, nas tardes nubladas. Nesse meio tom. Cada momento que, quando eu olhava, parecia pausar tudo ao meu redor. Como uma música de folclore cantada por nós três, em uma tarde pastosa na varanda. E mesmo que, aos cinco anos, eu não soubesse direito a letra da canção, simplesmente o fato de estarmos todos ali, balbuciando qualquer coisa juntos, já valia a pena por qualquer bonobice que estivéssemos fazendo. A alegria se expressava nessas coisas simples, quando valorizamos o que existe em nós. Ninguém ia se arrepender. 

Ravena se aproxima e põe a mão sobre meu ombro. E fica visível que se incomoda com o que vê. Cyborg estende a mão, mostrando que também desejava conferir o resultado.  

“Mutano estragou a foto”, ela fala, entregando à ele, o cellbyt.  

“Desculpe?”, eu digo. 

Do que ela estava falando? A foto tinha ficado ótima. Um dos luminosos do spot azulado incidia atrás do sofá, como se fosse um facho de sol entrando pelas falhas no telhado de uma casa em ruínas. Aquilo destacava a naturalidade da imagem.  

“Ih, olha só!”, Cyborg comenta, “A Ravena está…” 

“NÃO ES-TOU! TÁ-BOM?”, a feiticeira impõe, categórica. E quando me viro, dou de cara com Rachel de braços cruzados, fazendo pose de “sou indiferente à isso”, mas ela não parecia muito convincente com o fato de Mutano ter estragado os nossos planos de eternizar um instante espontâneo. Será que…? Rachel crava em mim um par de olhos ametista, advinhando meus pensamentos. Meu Deus! Que luz extraordinária o seu olhar. 

“Ok, ok, vamos tirar outra foto, então.” Robin propôs, tomando de volta o celular nas mãos de Victor. Noto o interesse de Rachel ao ver o objeto sendo trocado de mãos, enquanto Cyborg comenta algo do que eu não estava a par, naquele dia.  

“Gozado, sabe do que essa foto me lembrou?” 

Robin disse: “Sei”, deixando escapar uma risadinha inocente. E ele já estava selecionando a imagem para excluir, quando falei: 

“Adoraria ter uma cópia”. 

Dick congela o dedo de exclui-la no smartphone, vira o rosto e me estuda por um momento, como se avaliando se eu tinha mérito suficiente para receber o que pedia. Sustentar aquele olhar foi uma experiência diferente. Fico com a impressão de estar sendo vista de verdade pela primeira vez na vida, só que isso já havia acontecido antes, até então.  

A ideia  surge na hora em que ele sorri, como se tivesse me aprovado no exame a que me submetera, e nomeia a imagem para me presentear. Nem paro para refletir, apenas coloco a ideia em prática. 

“Não é essa foto que eu quero”, eu digo. 

“Então?”, ele pergunta. 

“Robin”, falo abraçando-o com uma mão. Com a outra, pego o seu smart e posiciono para eternizar uma lembrança em nossos corações. Ravena continuava do meu lado, e agora Mutano e Cyborg se espremiam apertadinhos para caber no retrato. A atmosfera estava positiva o suficiente para que tudo o mais ao redor girasse bem devagar.  

Diga: xis!”

♥ ♦ ♠ ♣

Klobatz!, penso pela segunda vez naquele dia. A preocupação havia consumido a minha energia quase até o final, durante a infiltração à torre da liga, e creio que se não fosse a esperança, alimentada dia após dia restante por Cyborg, de usar o cronotraje para consertar o passado, eu já teria sucumbido em ruínas devido aos sacrifícios que sucederam naquela operação. Porém esta manhã, acordei em um mundo completamente diferente. Eu sinto meu coração descansar na relva verdejante dos campos elísios, depois de toda destruição; depois de proteger a quem eu amava nos escombros do mundo. Kory patina no gelo, tranquilamente, alegre como só ela quando descobre uma nova coisa divertida e curiosa no planeta terra.  Richard, despreocupado, tem amigos que o desejam bem, tem um lar para onde voltar todos os dias, e onde  pode encontrar um rosto familiar. Isso me deixa feliz. Acho que deve ser assim que se sente alguém que recebe o presente de reviver o amor outra vez na sua vida. Só o fato de estarmos ali, convidando Ravena a ignorar seu receio de que não sabia como jogar  ─ sendo que nenhum de nós sabia direito ─, e simpatizar com a competitividade interminável entre Cyborg e Mutano, ou até mesmo zoar de qualquer besteira menor que falamos, já basta para fazer o mundo girar bem devagar. Para mim, é um alívio de fonte de águas puras repousantes. Que reanima minhas forças para concluir a missão à que fui destinada nesta época.    

E eu estou pronta para começar.   


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Notas finais do capítulo

Meu muito obrigado por ter lido até aqui.



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