Por Um Dia escrita por Carpe Librum


Capítulo 16
Segunda Chance


Notas iniciais do capítulo

Arthur é um homem ambicioso, ocupado demais para dar valor às pequenas coisas. Mas um acidente potencialmente fatal pode fazê-lo rever suas prioridades.



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− Eu não consigo entender por que o chefe não me deu aquele cargo, eu sou praticamente o cara perfeito para isso, entrego tudo no tempo, perco horas em frente ao computador fazendo listas, preenchendo formulários, mandando e-mails, e para quê? Para meu trabalho não ser valorizado. Minha vida é meu trabalho. – A raiva toma conta de mim, solto minhas mãos do volante e as volto no lugar batendo, isso faz o carro ir um pouco para a direita, mas logo retomo o controle. – Quando é que as coisas vão dar certo...

Meu tom de voz soa irritado e estressado, sinto vontade de gritar e bater em algo, estou há 7 anos no mesmo cargo, nessa mesma empresa, e não consigo mudar. Pensar em tudo isso me distrai do trânsito, noto que o farol à frente acaba de ficar amarelo. “ Vai dar tempo, vai dar tempo...”. O sinal fica vermelho e ainda estou há uns 15 metros dele, mas por alguma razão louca, decido não parar.

Tudo acontece muito rápido, uma luz surge à minha esquerda enquanto passo o cruzamento, apenas ouço o barulho dos pneus deslizando sobre o asfalto, esforçando-se para frearem o carro, não há tempo para reagir...

▪▪▪

Abro meus olhos e estou numa infinita escuridão, não sei há quanto tempo estou aqui, e não sei onde estou, mas é como se eu estivesse flutuando no nada. Onde será que estou? Eu estou morto?

− Tem alguém aqui? – pergunto, mas me sinto meio idiota fazendo isso.

− Olá, Arthur! – Escuto uma voz, não sei de onde vem.

− Quem está aí? – pergunto aflito.

− Eu sou Etrom – responde A voz.

− Você é tipo um deus ou algo assim? –questiono intrigado, nada parece fazer sentido, provavelmente estou sonhando.

− Não acho que essa seja a pergunta mais importante que você quer e deveria fazer. – A voz está certa, penso.

− Então... eu morri, é isso? – Depois que pergunto, percebo que não quero saber a resposta.

− Não... ainda – A voz me responde.

− Como assim, “não ainda”? – Estou totalmente confuso. “Tenho que acordar”.

− É complicado, eu estive olhando sua vida e não gostei muito do que vi. – “Olhando”? Como assim? – Você já viveu trinta anos e não fez diferença na vida de ninguém, vida não é apenas dinheiro, ter um bom emprego, vida é sentir, é marcar a vida das pessoas sendo quem você é – A voz continua a falar. Por um tempo fico calado, não tenho o que dizer, nem sei se deveria responder algo.

− De que adianta você me falar isso agora? Eu já estou morto mesmo – digo um pouco irritado.

− Eu tenho pena de você. – Essas palavras perfuram meu coração. Ninguém gosta de ouvir uma coisa dessas. – Mas você tem algo especial, e por isso eu decidi te dar uma outra oportunidade.

− Eu terei uma segunda chance? – pergunto esperançoso.

− Você retornará ao seu mundo, exatamente as 6h30min do dia em que você sofreu o acidente.

− No caso, hoje – digo.

− Não exatamente, estamos em outra dimensão, o tempo passa diferente aqui. Bom, voltando ao assunto, nem pense que você poderá voltar no seu corpo, nada é tão simples assim, você retornará no corpo de outra pessoa, e não poderá movê-lo por espontânea vontade, você apenas estará lá.

− Por quê? Não faz sentido – respondo com raiva.

− Porque minha intenção não é que você se salve do acidente, eu quero que você mude. Se você me provar que é capaz de mudar, seu destino será diferente, caso contrário, nos vemos aqui novamente.

− Você não pode fazer isso comigo! – grito o mais alto que posso, mas sinto que a voz já foi embora, estou sozinho. O que devo fazer agora?

▪▪▪

Perco a noção do tempo, ainda estou flutuando na infinita escuridão. Enfim, uma luz começa a surgir longe, é como se eu estivesse acordando, eu já devo estar no corpo daquela pessoa que a voz disse.

Depois que me acostumo com a luz, percebo que estou olhando para um teto, ou melhor, nós estamos. Em quem será que eu estou? Ficamos ali por uns segundos, até que viramos a cabeça e olhamos para o celular, de plano de fundo tem a foto de uma garota bem bonita, mas não faço ideia de quem seja, talvez uma namorada.

Levantamos da cama, os olhos ainda pesados, é estranho estar aqui, não estar em mim. Olhamos para o celular, a tela está apagando, lentamente, até que fica totalmente preta. Ficamos olhando para ela e demoro a notar, mas há um reflexo. O reflexo de uma mulher, os cabelos lisos embaraçados, os olhos escuros, a maquiagem borrada. Não! Não pode ser! Aquela maldita voz me mandou para o corpo de uma mulher. Se eu encontrar com ela de novo eu a mato!

“ Minha nossa! Já são 6h30min! Estou atrasada! Nossa! Não devia ter dormido tarde, se bem que não foi minha escolha, maldita ansiedade que não me deixa dormir. ”

É estranho ouvir os pensamentos de outra pessoa, mas a voz dela me traz uma paz que faz até com que eu deixe minha raiva de lado. No entanto não tenho muito tempo para refletir, a garota salta da cama, começa a se trocar rapidamente, ela olha o celular novamente. 6h35min.

“ Nossa! Isso é um recorde, cinco minutos. Agora tenho só vinte e cindo minutos para chegar na ONG, e se não tiver trânsito eu consigo chegar a tempo. Vamos, Fernanda! Corre! ”

Ela acaba nem tomando café da manhã, provavelmente alguma coisa importante vai acontecer hoje. Ela calça os sapatos e vai em direção à porta, no chão há um envelope.

RESULTADO EXAMES

Uma lágrima escorre do rosto de Fernanda. Começo a sentir algo ruim dentro de mim. Ela abaixa bem lentamente, suas mãos estão tremendo, ela pega o envelope delicadamente. Sinto calafrios. O que está acontecendo? A mente dela está vazia.

Depois de alguns minutos em transe, ela dá uma longa respirada, guarda o envelope sem abri-lo, abre a porta e sai em direção à garagem, entra no carro.

Inicialmente, ela vai devagar, mas aos poucos começa a aumentar a velocidade, mais lágrimas começam a escorrer por seu rosto, o sentimento é tão forte que o sinto e choro também. Infelizmente, não sei exatamente o que tem naquele envelope, mas não deve ser algo bom.

” Controle-se, Fernanda! Você não pode chegar no trabalho abalada. Você precisa ser forte. “

▪▪▪

Estamos parados em frente ao portão já faz cinco minutos. Fernanda acaba de enxugar as últimas lagrimas, põe um sorriso no rosto. Mas é doloroso para ela fazer isso, eu sinto.

“ Pensar positivo. O sorriso ainda é o melhor remédio! ”

Noto que isso está escrito abaixo do nome da ONG. “ Pensar positivo. O sorriso ainda é o melhor remédio. ”. Ela abre o portão.

− Tia Nanda, tia Nanda! – Gritam umas dez crianças ao verem Fernanda entrando.

− Oi, meus amores! Vamos entrar? – ela fala, com um sorriso no rosto, no começo era falso, mas ao ver as crianças, eu realmente senti que ela estava feliz, como se todos os problemas tivessem desaparecido.

Entramos na ONG e começo a perceber qual tipo de ONG é, vejo aparelhos hospitalares em salas, e muitas pessoas de branco. Fico assustado e curioso, realmente quero saber o que ela faz aqui.

− Oi, Fernanda – fala uma mulher ao se aproximar, com o tom de voz triste.

− Oi, Suzana. Está tudo bem? – pergunta Fernanda com a voz suave.

− É o Caio, o câncer tomou conta de todo o seu corpo, ele só tinha quatro anos... e...

Fernanda não diz nada, o silêncio toma conta. Suzana começa a chorar, as lágrimas voltam aos olhos do corpo em que estou. Assim como a felicidade se espalha facilmente, a tristeza assim também o faz, com a mesma intensidade.

Não há mais nada a fazer, aquela pobre criança se foi. Ambas se abraçam. Não me lembro da última vez que abracei alguém, é tão reconfortante esse sentimento, traz uma paz tão boa.

“ Pobre Caio, o mundo sentirá sua falta. “

Continuamos andando pela ONG, é incrível ver o sorriso de cada uma das crianças, será que elas sabem que talvez não vivam muito? Isso é tão triste, como elas conseguem estar sorrindo? Eu queria poder salvá-las, mas quem sou eu? A única coisa que tenho é um emprego, fora isso eu não sou nada...

▪▪▪

− E então, eles viveram felizes para sempre! – Fernanda fecha o livro rapidamente, o “para sempre” quase não saiu de sua garganta. Pobres crianças, nem entendem a mentira que estão ouvindo, não há um “para sempre” e para algumas delas não haverá nem muito tempo. Infelizmente, a vida não foi justa para elas, mas se não se pode dar um “para sempre” para elas, que possamos dar o “felizes”.

É isto que Fernanda faz, ela traz alegria, uma singela felicidade. Não sei por que, mas sorrio, um sorriso compreensivo. Não quero que estas crianças morram! Não entendo como posso sentir algo por elas sem ao menos conhecê-las. Etrom? Por que você não as salva? Por que você não salvou Caio? Meus pensamentos são interrompidos.

− Conta mais uma, tia! Por favor – pede um garotinho no fundo da sala. De todas as crianças que tem aqui, ele é um dos poucos que conseguem andar e vir para a sala das histórias. Fernanda também contou história para as outras crianças que estão de cama pela manhã, ver o sorriso delas me faz sorrir. Eu queria ter sua inocência.

− Desculpa! Mas tenho que ir, a tia tem um compromisso.

− Ah! – Todas as crianças respondem.

Fernanda levanta e vai em direção à porta, Suzana está parada ao lado do batente e quando elas se cruzam pergunta:

− Você está bem, Fer?

− Eu não sei. Tentei evitar pensar nisso o dia todo, mas estou ansiosa, nervosa, e se...

− Não se torture imaginando, o melhor é descobrir logo a verdade. Você tem 25 anos, tem muita coisa para viver ainda.

− Obrigada, Su. – Fernanda dá um sorriso meio torto.

Elas se abraçam novamente e eu novamente não entendo nada, o que será que tem naquele envelope? Sobre o que são os exames? Passamos por algumas salas e vejo mais crianças ligadas a aparelhos, lutando para sobreviver. Enquanto eu queria mais dinheiro, eles só querem mais um dia de vida.

▪▪▪

− Próximo?

Acabamos vindo para uma clínica, o envelope está úmido e amassado onde os dedos de Fernanda o seguram. Ela se levanta e vai em direção ao balcão.

− Nome? – a secretária pergunta.

− Fernanda Maia – ela responde cabisbaixa.

− A doutora está te esperando, pode entrar. Segunda porta à direita.

Fernanda caminha lentamente, como se demorando o problema sumisse. A porta está aberta e a doutora está sorridente.

− Boa tarde ou Boa noite! Já nem sei mais que horas são – diz.

− É boa noite já – Fernanda responde, a brincadeira a anima um pouco.

− Trouxe os exames?

− Sim.

− Ah, você não abriu? – A dra. pergunta surpresa.

− Não tive coragem. – Fernanda responde tudo com um tom seco, sinto que ela está apavorada.

A dra. começa a abrir o envelope, sinto a adrenalina dela, a ansiedade, o medo, todo o seu corpo está tenso. E então a médica começa a ler, e quando o sorriso dela some, eu e Fernanda sabemos que a notícia não será boa.

− Oh! Não! – sussurra ela.

E neste momento Fernanda se esvazia, não há nada dentro dela, é como se tivesse morrido. Ela fecha os olhos, tentando controlar as lágrimas, olha para cima e chacoalha as mãos.

− Querida, você tem um câncer de mama. Vamos precisar fazer mais exames para...

Fernanda para de ouvir, nada mais interessa agora, ela tem câncer e isso não vai mudar tão simplesmente. Começa a pensar em muitas coisas e não consigo entender nenhuma delas. Ela se mantém calada e então impulsivamente se levanta e sai correndo do consultório. As lágrimas escorrem incessantemente de seus olhos.

Ela vai em direção ao carro e entra nele estabanada, liga-o e sai correndo. Como o vento, sem rumo, noto que estamos em alta velocidade. Olho para o relógio e já são 19h33min.

Meu tempo está acabando, está se aproximando a hora do meu acidente, não sei o que devo fazer, não sei se há algo que eu possa fazer.

Noto que há um cruzamento a alguns metros à frente o sinal está vermelho, não há ninguém parado. E então o sinal fica verde, ela não diminui a velocidade e um carro aparece no cruzamento, semicerro os olhos e vejo que sou eu.

Tudo para.

− Olá, Arthur – A voz fala, ela voltou.

− Etrom? – pergunto assustado. – Eu vou morrer? Ou pior, eu vou me ver morrer?

− Não, na verdade não sou eu que decidirei isso, é você! Você consegue olhar para si mesmo e ver o que tem que mudar? Você acha que vale a pena salvar-se?

− Eu... é... – Travo, não consigo falar nada. Não consigo pensar em nada.

− Não responda para mim. Apenas para você mesmo. Você terá o controle do corpo de Fernanda a partir de agora. Quando o tempo voltar a rodar, você decidirá se salvará a sua própria vida. Não importa qual seja sua decisão, eu já sinto que fiz a coisa certa em escolher você.

− Quem é você? – pergunto uma última vez.

− Você deve me conhecer por Destino.

Eu sorrio. Começo a sentir o corpo de Fernanda. Enfim, tudo volta a se mexer lentamente. Reajo rápido e quando tudo volta à sua velocidade normal, eu piso no freio. Fecho meus olhos, não quero ver, ouço apenas o barulho dos pneus deslizando sobre o asfalto, esforçando-se para frearem o carro.

Quando abro meus olhos, sinto-me zonzo, foco minha visão e vejo Fernanda no carro dela, eu voltei para meu corpo, olho para mim e vejo que estou bem, estou vivo, olho para ela e vejo que está chorando, que está assustada. Minha porta está amassada, decido descer pela porta do passageiro e ir até ela.

− Você está bem? – pergunto, porém ela não me responde, apenas acena com a cabeça. – Venha, vamos tirar os carros daqui do cruzamento e conversar.

− Tudo bem – ela responde com a voz fraca. Ela é tão bonita.

− Hei, eu sou Arthur.

− Eu sou Fernanda.

−Oi, Fernanda, não se preocupe, tudo vai ficar bem...

Ela sorri.


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Notas finais do capítulo

Este último conto é de alguém que não é aluno da escola, mas que é membro do nosso grupo no Face. Foi uma grata surpresa você ter decidido dividir seu talento conosco, Lucas. Seu conto emocionou e quero que saiba que será sempre muito bem-vindo entre nós.



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