Caderno de ideias escrita por Benihime


Capítulo 7
O Legado




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/675982/chapter/7

 

Largo a caneta e passo os dedos por entre meus cabelos. Cabelos escuros e cacheados, exatamente como os de minha mãe.

Não consigo parar de pensar nela desde o funeral. Levanto da escrivaninha onde ela costumava escrever e vou até a janela, apreciando a vista familiar das colinas verdejantes, com algumas árvores de copas frondosas. É uma bela vista, e agora entendo por que mamãe gostava tanto de ficar aqui.

Volto a me sentar e pego a caneta novamente. Não é algo que eu realmente queira fazer, é uma promessa. Minha mãe me fez prometer.

Aproximei-me da cama de minha mãe e peguei sua mão, que agora estava esquelética devido à doença.

— Oi, ma petitte. — Disse, abrindo um pouco os olhos.

Ela estava fraca, e eu sabia que não tinha mais muito tempo. Seus olhos cor de violeta, que sempre me impressionavam, agora estavam sem brilho.

— Oi, mamãe. — Respondi, tentando conter as lágrimas que já ameaçavam cair. Ela sempre fora tão forte, tão cheia de vida. Matava-me vê-la tão fraca.

— Gabrielle. — O fato de ela ter dito meu nome deixou-me tensa. Mamãe nunca me chamava de Gabrielle, era sempre Gabby. — Quero que me prometa uma coisa.

— O que a senhora quiser.

Um pequeno sorriso cruzou seus lábios, apenas uma sombra do que costumava ser.

— Prometa que irá escrever. Contos, poemas, crônicas ... Qualquer coisa. Jure por seu coração.

Eu não pude mais conter as lágrimas.

— Eu prometo, mama. Vou escrever sempre.

Agora, estou com uma dor de cabeça colossal e simplesmente não consigo achar um jeito de escrever nada. Mamãe fazia isso parecer tão fácil, tão bonito. Ela falava como se escrever fosse algo divino, além de qualquer coisa que pudéssemos ter na Terra.

— Por que gosta tanto de escrever, mãe?

Era nossa noite do filme, mas mamãe nem ao menos olhava para a televisão. Ao invés disso, escrevia em seu caderno de anotações. Ao ouvir minha pergunta, ela ergueu levemente o rosto.

— Não é questão de gostar, baby. É questão de precisar. Quando não escrevo, não consigo me sentir bem. Por melhor que seja meu dia, é como se sempre houvesse algo faltando.

Eu a observei escrevendo por algum tempo. Ela parecia completamente absorta, com um brilho misterioso nos olhos e um sorriso doce nos lábios. Ela parecia absolutamente em paz, quase como um anjo.

— Deve ser maravilhosa, essa sensação. — Comentei. 

— É, sim. Escrever é algo ... Maravilhoso. É incrível ver as palavras fluindo, dando vida a um novo mundo, um mundo todo seu. Quando você escreve, tudo é possível, e você tem um mundo novo em suas mãos, apenas esperando por você. Quando escrevo, o mundo desaparece, e é o único momento em que consigo ficar a sós com meus pensamentos. Nada é mais forte do que a satisfação de terminar uma nova história. Escrever é meu destino, meu talento, parte de quem eu sou. Essa é a minha magia.

 Olho-me no espelho pendurado a um canto da sala. Ali, na pouca luz, eu posso ser minha mãe. Apesar disso, eu não sou como ela. Não tenho aquela facilidade mágica com as palavras, nem aquele brilho de mistério no olhar.

Eu costumava achar que minha mãe era algo mais, não apenas humana. Um sorriso curva meus lábios ao pensar naqueles dias em que ela estava ao meu lado, me protegendo, cuidando de mim.

Vou até a prateleira em que ela guarda seus livros. Essa, sim, era a linguagem que ambas entendíamos, uma paixão que compartilhávamos, além do piano.

Ao acaso, escolho um livro e olho o título. É Frankenstein, o favorito de minha mãe. Abro numa página ao acaso e uma folha de papel cai. Com o coração aos pulos, abaixo-me para pegar. Eu conheço aquela caligrafia floreada e delicada, como a das damas do século XIX. Leio rapidamente a pequena carta:

Ma Petitte,

Se achou essa carta, é porque realmente está cumprindo sua promessa. Estou muito orgulhosa de você por ter tido a coragem de fazer isso. Não são todos os que tem a coragem de deixar tudo de lado e dedicar-se a algo tão solitário quanto a escrita.

Tenho certeza de que sua história vai ficar tão incrível quanto estava destinada a ser, ou ainda melhor. Afinal, é a nossa história. Mesmo que agora esteja enfrentando alguns problemas para concluí-la, como eu tenho certeza que está.

Não se preocupe, isso acontece com todos. Acontecia comigo, às vezes, e eram os dias em que eu não conseguia fazer nada direito. Quando não conseguia escrever, começava a duvidar de meu dom, e esse foi meu maior erro. Não cometa o mesmo erro que eu, Gabby. Você tem um dom, confie nele e siga-o aonde ele te levar. Só assim será feliz.

Com todo meu amor

Mamãe

P.S: Sempre vou amar você, ma pettitte.

Ao terminar a carta de minha mãe, estou com lágrimas nos olhos. Com cuidado, pego o colar em meu pescoço, descansando o pingente na palma de minha mão. É um diamante azul, com o símbolo do infinito gravado por dentro, juntamente com uma palavra que eu nunca consegui compreender. Sorrio comigo mesma, lembrando da primeira vez que vi esse colar, quando tinha quatro anos. Mamãe prometera que, na hora certa, eu saberia o significado daquele estranho símbolo gravado no colar, mas até hoje não descobri.

Subitamente o sol brilha, entrando num pequeno caminho de luz, diretamente sobre a mesa de minha mãe. Parece até que ela está tentando me dizer algo.

Vou até a janela e, como já a havia visto fazer, ergo o colar na luz do sol poente. De repente, a palavra dentro do colar brilha como uma estrela, e finalmente consigo entender. A palavra é magia. A palavra favorita de minha mãe. Ela sempre dizia "Acredite em magia, e a magia acontecerá".

— Obrigada, mamãe. Sussurro, voltando para a escrivaninha.

Largo a caneta, abro a primeira gaveta da escrivaninha e tiro de lá os papeis do último livro de minha mãe. Ele foi guardado porque ela não sabia como continuar, mas eu sei.

Pela primeira vez na vida, sinto uma necessidade enorme de escrever. É algo tão contagiante que não entendo como poderia parar. Coloco as folhas na velha máquina de escrever que minha mãe costumava usar e meus dedos voam pelas teclas. 

Escrevo sob os últimos raios do sol e sinto, pela primeira vez em dois anos, que minha mãe está novamente ao meu lado. Essa sensação me traz uma paz ainda desconhecida, e uma enorme felicidade.

Horas depois, finalmente termino o livro e, ao fechá-lo, dou um suspiro de satisfação. Viro-me para o espelho com o livro recém terminado nos braços.

— Eu terminei, mamãe. Terminei a nossa história. Digo para meu reflexo.

A lua cheia brilha intensamente e reflete em meus olhos, fazendo-os parecerem do mesmo tom extraordinário de violeta que os de minha mãe. Agora entendo seu segredo.

Eu pensava que ela era mágica, e ela realmente era. Escrever era sua mágica, e esse sempre foi seu destino. Agora é o meu também.

Pela primeira vez, olho o título que minha mãe escolheu para sua última história: O Legado. Isso me faz sorrir. Esse é o nosso legado, algo de que todos vão lembrar pela eternidade. Eu, pelo menos, sei que jamais vou esquecer.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Caderno de ideias" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.