Guertena escrita por KyonLau


Capítulo 10
A Dama de Vermelho


Notas iniciais do capítulo

Aposto que ninguém pensou que eu ia atualizar tão rápido, né? ha-ha-HÁ ò3ó
Pois é, nem eu.... :v

Soundtrack: "Dining Room"
https://www.youtube.com/watch?v=pOd0UitwhUY



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Quando Ilka saiu para fazer as compras para o almoço, estava se preparando mentalmente. Este seria o dia em que finalmente acertaria as contas com aquele pseudo artista idiota e seu reinado de desorganização caótica. Seu discurso estava preparado e seria ouvido a qualquer custo naquela tarde. Nada mais de bagunça ou chegar na hora que bem entendesse para o café da manhã e ela nem queria começar a falar sobre chama-la pelo nome errado.

Enquanto ia caminhando de volta da feira matinal, via que as nuvens de um tom cinza-chumbo pareciam se acumular cada vez mais, trovejando esporadicamente, anunciando a chuva que estava por vir. O grosso da multidão já se fora há muito, deixando para trás estandes de madeira praticamente vazias, com pouco ou nenhum alimento comestível. Cascas, ossos e restos não identificados se espalhavam pelo chão lamacento e atraía a presença dos vadios e moribundos, ansiosos para pescar algo que pudesse lhe encher os estômagos. O resto era silêncio.

Como que repentinamente, a moça sentiu-se extremamente cansada. Parou, olhando para o alto, sentindo o peso exacerbado das sacolas carregadas em cada mão puxando-a para baixo com veemência. Sentiu como se o céu pudesse desabar naquele instante e ninguém ligaria a mínima. No entanto, com um suspiro profundo, ela retomou a caminhada, descendo uma ruela e deparando-se com uma cena que a obrigou a derrubar as sacolas que quase se rompiam no chão, fazendo com que seu conteúdo se espalhasse pra todos os lados.

Vários policiais rodeavam o lugar, tentando afastar a multidão que se aglomerava cada vez mais com gestos preocupados e gritos retumbantes. Passavam uma faixa para impedir que as pessoas se aproximassem mais, isolando o único ponto colorido em meio à todo o cenário cinzento. Vivo, vibrante e absolutamente horrendo.

Caída na soleira do grande portão de ferro de seu pobre hotel, esparramada como se fosse uma boneca de trapos caída da cama de uma criança, uma mulher jazia no calçamento de pedra sem se mover. Paramédicos a rodeavam, mas todos sabiam que já não havia nada que poderia ser feito.

Avançando alguns passos cambaleantes e ousados, Ilka acabou por reconhecê-la. Ela usava o seu vestido de musselina branca e babados que, de todos os outros, fosse o azul, o verde ou mesmo o amarelo, sempre fora o seu favorito, como adorava lhe comunicar toda vez que se encontravam pelo corredor. Entretanto, infelizmente, ele estava sendo gradualmente tingido e, de um momento para o outro, o branco alvo como neve fora substituído por um vermelho-sangue brilhante.

Um grito estrangulado subiu pela garganta da moça, que foi tomada por uma sensação de enjoo. Enquanto isso um homem alto, cuja figura ela reconhecia muito bem, foi retirado do prédio de aparência frágil e encardida pelos policiais que o seguravam pelos ombros. Não parecia alterado. Tampouco com medo ou enojado.

Apenas olhava fixamente para o corpo, como se precisasse gravar todo o cenário em seus mínimos detalhes.

Apesar de certamente se sentir mais aliviada com a companhia de Ib, Iza não podia deixar de acha-la aborrecida. Não trocaram mais que alguns monossílabos, muito embora a companheira mais jovem estivesse com a língua coçando para despejar mil e uma perguntas em cima da mais velha. Logo, Iza já estava bocejando despreocupadamente enquanto caminhava logo atrás de Ib.

— Afinal, você sabe onde estamos indo? — perguntou a mais jovem por fim, incapaz de manter o silêncio por mais tempo.

— De alguma forma...

— Como assim, “de alguma forma”? — Iza ergueu uma das sobrancelhas, desconfiada.

— É. Não é o mesmo com você? De alguma forma, você acha que é por um caminho, e por esse caminho você vai.

— Então você só está adivinhando.

Iza achou que não valia a pena brigar por isso. Afinal, ela própria estava fazendo exatamente a mesma coisa, então não era como se estivessem regredindo.

As duas viraram para a esquerda, em uma bifurcação e começaram a descer uma escadaria estreita onde Ib precisava abaixar a cabeça para continuar andando sem se machucar. Iza era mais baixa e por isso continuou sem problemas logo atrás.

— Mas como você chegou aqui? — perguntou ela finalmente, vendo-se incapaz de segurar a curiosidade.

Ib demorou uns segundos para responder e, quando o fez, não se virou para sua inquisidora.

— Tinha um peixe no chão. Foi por ali.

A sua companheira ficou pensando sobre isso. Não era certeza, mas então, provavelmente, todos precisavam entrar por lá. Percebeu, um tanto quanto tarde demais, que jamais fizera pergunta alguma à Galli e ficou se perguntando o motivo de aquilo jamais ter-lhe ocorrido antes. Talvez estivesse ocupada demais pensando em si mesma quando se encontraram e tal pensamento a fez ficar vermelha de vergonha.

— Você sabe por quê fomos parar aqui, então? — tornou a indagar.

Ib apenas balançou a cabeça em negativa.

Finalmente chegaram ao final da escada e ela pode se erguer novamente. Iza começava a ficar realmente chateada. Se esquecera do quando aquela mulher a irritara, quando ainda estavam na outra Galeria.

Caminharam até chegar num corredor bem mais largo, com algumas portas que pontuavam aqui ou ali. Não havia nada mais, além de um quadro não muito grande de uma moça de longos cabelos marrons, usando um vestido vermelho contra um fundo totalmente preto. Ela mantinha um sorriso um tanto quanto afetado e os braços cruzados na frente do corpo, como que descansando.

Ib pareceu ignorá-la completamente, mas Iza resolveu lançar uma olhada mais profunda.

Ela era bonita, apesar dos traços simples e depois de tanta coisa amalucada que a menina viu, achou que era uma pintura muito estranha para ter sido feita por Guertena. Debaixo dela, a tradicional plaquinha indicativa. Lia-se “A Dama de Vermelho”. Enquanto se aproximava para ler direito o título, Iza pode jurar que a tal Dama piscara os olhos em sua direção.

Uma mão a tocou no ombro, assustando-a, mas ao olhar para trás, deu de cara com Ib.

— Vamos — disse — É por ali...

— Esse cheiro...

Ib olhou inquisidora para Iza.

— Disse alguma coisa?

Foi a vez de Iza franzir o cenho pra a outra.

— Eu não disse nada...

Uma risadinha suave ressoou nos ouvidos das duas, que finalmente olharam na direção do ruído.

A Dama de Vermelho arreganhara um sorriso para as duas à sua frente. Seus olhos estavam arregalados de uma maneira quase selvagem e refletiam cobiça. Sua mão foi na direção da tela e pressionou-se contra ela, como se estivesse por uma janela.

— Que cheiro bom... — ela resmungou e parecia entusiasmada.

Instintivamente, Iza deu alguns passos para trás e, vendo que Ib não se mexia, puxou-a para perto de si. Enquanto isso, a Dama parecia se mexer dentro de sua moldura, irrequieta. Parecia estar fungando muito profundamente, tentando capturar o máximo de oxigênio possível, o que era uma loucura, visto que quadros não podiam respirar.

— Essas rosas... Podem me dar? São tão cheirosas — ela inclinou o nariz para a direção das flores que as duas seguravam com firmeza e então fez uma careta — Bom, nem todas. Tem uma aí bem fedida, hein? — e tornou a rir — Mas eu quero as cheirosas...

Iza não entendeu nada do que aquela moça na pintura queria dizer, mas achou que seria melhor se afastar bem depressinha dali. Pegou Ib pelo braço e começou a puxá-la na direção de uma das portas. Vendo isso, a Dama de Vermelho soltou um tal berro que fez as duas pararem e olharem assustadas para a pintura.

Seus olhos brilhavam de raiva e sua tez pálida estava contorcida numa feia careta.

— Me entreguem essas rosas!

E então Iza viu algo que nunca pensou que aconteceria. A Dama começou a pressionar contra a tela as duas mãos. Pareceu fazer uma força imensa até que do nada seus dedos longos e esmaltados começaram a transpor a barreira entre tinta e realidade. A adolescente ficou olhando apavorada a Dama de Vermelho passar os dois braços para fora da moldura, seguidos por sua cabeça e cabelos que caíam como se estivesse simplesmente passando por uma janela. Quando todo o seu tronco ficou do lado de fora, o quadro pareceu não aguentar mais o peso e caiu da parede, jogando a mulher no chão.

 Isso não a impediu de se reerguer e logo Iza percebeu, por causa de seus movimentos desengonçados, que ela só podia sair do seu quadro até a cintura.

Achou, portanto, que estariam seguras se se afastassem logo dali. No entanto, antes mesmo de externar o que pensava sobre isso, Iza sentiu o seu pulso ser agarrado com uma força descomunal e então puxado numa velocidade que a surpreendeu e as duas saíram em disparada para longe da Dama.

Iza só pode capitar de relance uma imagem que a fez agradecer imensamente por Ib ter sido mais perspicaz: a mulher se arrastava pelo chão numa rapidez assustadora, fincando as unhas dos dedos no chão e usando-os para puxar o resto do corpo. Na velocidade em que estava, não era surpresa que suas unhas estivessem se dilacerando, pintando seus dedos de vermelho. Apesar disso, ela não parecia dar a mínima para aquilo, e continuava avançando obstinadamente, os olhos fixos nas rosas de suas vítimas.

— Por aqui! — Ib gritou no momento em que abria uma porta qualquer.

Iza foi jogada para dentro da sala e antes mesmo de se virar, ouviu uma batida escandalosa que indicava que Ib também entrara e fechara a porta atrás de si. No mesmo instante a porta passou a receber vários murros violentos misturados a gritos para que abrissem passagem.

Nenhuma das duas se atreveu a dizer uma palavra durante as tentativas de arrombamento. Iza sequer respirava direito e não movia um músculo, os olhos arregalados e fixos na única coisa que impedia sua morte.

Depois de um tempo, as batidas foram sossegando até finalmente não haver nada além de silêncio.

Vendo que estavam a salvas, Iza se deixou cair no chão, incapaz de aguentar de pé por mais um segundo que fosse. Ib também escorregara de costas pela parede até sentar-se ao chão, igualmente cansada e assustada. Assim, a mais moça teve a oportunidade de olhar em volta.

Felizmente não havia sinal de quadros ou estátuas em qualquer canto daquela pequena saleta quadrangular. Em vez disso, havia uma porta do outro lado e várias estantes de madeira escura, que se dispunham aqui e ali. Em suas prateleiras, alguns livros se achavam caídos e empoeirados.

Aquilo despertou a sua curiosidade, afinal. Sem dar atenção à mais velha, que ainda se recuperava, abraçada aos joelhos, o rosto escondido entre os braços, a menina levantou-se e começou a dar uma espiada nos volumes ali disponíveis. Alguns eram bem finos e pequeninos enquanto outros eram grandes de grossos.

Acabou por escolhendo um enorme de capa marrom, intitulado em grandes letras folheadas à ouro como “Coletânia dos Trabalhos de Guertena”. Abriu-o em qualquer página e acabou por descobrir que era uma espécie de catálogo. Falava de várias obras do artista, mas ao mesmo tempo, era um pouco diferente de uma enciclopédia normal, e isso Iza reparou logo que pegou um trecho qualquer para ler:

                Dama de Vermelho (6210): “É dito que Guertena baseou-se em uma mulher que amou tempos atrás, mas ele próprio já negou tal fato. Disse que tratava-se de uma mulher horrorosa e assustadora que tentava cortejá-lo devido à sua herança.”

Iza estranhou aquilo. Afinal, por que diabos ele a faria tão bela na pintura, se a considerava de forma tão baixa, como é dito? A imagem de um garotinho usando nada mais que meias nos pés devido à uma mulher assustadora que o perseguira e arrancara-lhe os tênis durante sua caçada perpassou a mente de Iza.

Um tanto quanto irritada, a menina tornou a fechar o livro e guarda-lo onde o encontrara em primeiro lugar. Não tinha paciência para ler e aquele catálogo era grande demais e de alguma forma, irritante demais. Passou adiante.

Mais à frente ela acabou apanhando o menor e mais fino dos livros ali. Era completamente cinza e não havia nenhuma escritura, nenhum título. Abriu-o e percebeu que estava escrito à mão numa caligrafia digna de um neurocirurgião renomado. A garota foi passando rapidamente as páginas amareladas, com datas aqui e acolá. Algumas estavam inteiras, outras completamente esburacadas pelas traças e outras ainda pintadas inteiramente de preto, escondendo seu conteúdo debaixo da tinta.

Logo reparou que se tratava de uma espécie de diário e um sentimento muito estranho começou a tomar-lhe a sensibilidade das mãos. Sentia que não deveria estar lendo aquilo e certamente não era apenas por uma questão de privacidade de quem escrevera. Ao final, as páginas ficaram totalmente em branco. Não havia mais nada escrito a partir dali, mas a menina continuou a folhear com cuidado, para não desmanchar nada.

Ao chegar na última página, algo pesado caiu de dentro, produzindo um barulho metálico aos seus pés. Ouvindo isso, Ib levantou-se e foi até a companheira. Abaixando-se, apanhou uma chave de metal pintada de vermelha.

— Você achou a chave para passarmos — comentou.

Contudo, Iza não respondeu. Seus dedos frios seguravam a última página amarelada e puída do diário, fixando seus olhos escuros na inscrição pequena rabiscada no exato meio da folha.

                “É dito que espíritos habitam os objetos onde as pessoas depositam seus sentimentos. Eu sempre pensei que, se isso for mesmo verdade, o mesmo deve acontecer com obras de arte. Então hoje, eu devo imergir-me em meu trabalho, para então dividir minha própria alma entre as minhas criações.

Mais embaixo, em letras tão miúdas que quase era necessária uma lupa para serem lidas, espremidas contra o pé da página.

— “Vai dar tudo certo, pequena” — a voz de Iza saiu num sussurro e morreu no silêncio.

Ib, que também lera o que estava escrito por detrás do ombro da outra, finalmente recuou e, com a chave nas mãos, colocou-a no buraquinho da fechadura da porta do lado oposto. No entanto, antes de girá-la, olhou mais uma vez para Iza.

— Ele se matou, se é isso que está pensando — contou, fazendo a mais nova se sobressaltar — Era bem velho, já. Envenenou-se com a própria tinta.

Iza se sentia estranha. Quantas figuras famosas e excêntricas já não haviam tirado a própria vida? Claro, era um fato triste, mas isso nunca a afetou particularmente. Mas agora era diferente. Era como se algum parente próximo tivesse cometido suicídio sem nenhuma explicação plausível. Estava horrorizada e extremamente solitária.

— Por que ele fez isso? — perguntou por fim.

A mais velha deu de ombros e, finalmente girando a chave, abriu a porta para uma nova área, cinza como as nuvens que anunciam uma tempestade.

— Esse é a grande pergunta que todos gostariam de fazer à ele — e prosseguiu, totalmente indiferente.


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Notas finais do capítulo

Yeeey, capítulo 10 0^0 Não creio que cheguei tão longe~
Eu tava me coçando para fazer o capítulo da Dama de Vermelho, então espero realmente que tenham gostado o/
Então é isso! Até o próximo capítulo :3