Faca cega escrita por Phaerlax


Capítulo 1
Prólogo — ferida


Notas iniciais do capítulo

9:31 Dragon



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Uma alegoria estilizada da constelação Servani – o homem acorrentado que representava culto a Andoral, Dragão dos Escravos. Pinceladas de tintas escuras haviam composto aquela obra com maestria; tratava-se certamente de um Caladri original, criado na Era Exaltada, um de seus poucos quadros sobreviventes da Quarta Praga. Danarius tinha um apreço grande por aquele artista e jamais aceitaria meras reproduções decorando suas paredes, mesmo que fossem as paredes de sua pouco usada mansão de veraneio em Kirkwall.

O novo inquilino arrancou o quadro da parede e golpeou contra o joelho, destruindo-o junto a uma quantia inestimável em moedas de ouro. Insatisfeito, arremessou a tela ao outro lado do aposento, onde derrubou e estilhaçou cerâmicas que datavam do reinado de Arconte Hadarius. Respirava pesado, esforçando-se para manter o controle.

Um esforço puramente simbólico. Fenris socou a parede com toda a força.

Cada tábua daquela mansão parecia ressoar com vestígios da presença de Danarius. Era quase possível ouvir sua voz afetada ecoando pelos corredores, zombando do escravo por ter quase caído em sua armadilha e falhado em encontrá-lo a tempo. Ele voltaria, o ar sussurrava aos ouvidos de Fenris. Voltaria para continuar aquele jogo de gato e rato sem deixar dúvidas sobre quem era o rato.

A madeira de lei ignorava seu punho. Gritando, o fugitivo socou novamente, dessa vez com os entalhes de lyrium ardendo azuis. Rachaduras se espalharam pela parede, mas não era o suficiente.

Nunca seria o suficiente. A memória do magíster não era algo que podia ser removido e, mesmo que fosse, não estava apenas na casa. Magia imunda profanara a carne de Fenris, seu sangue, seus ossos. Nunca estaria livre de si mesmo; enquanto convivesse consigo, a sombra de Danarius o cobriria.

Caminhou a passos pesados pela sala, cuspindo no tapete orlesiano. Magia. Podia senti-la no ambiente, de forma muito menos metafórica do que a tal sombra. O Véu ainda estava arrombado ali, onde o magíster conjurara demônios para detê-lo. Quanto tempo levaria para que aquela ferida se fechasse? Meses? Anos?

Fenris se jogou na poltrona que decidira não destruir, agarrando uma garrafa de vinho. Seus pensamentos novamente vagaram para o homem que o ajudara a lidar com os escravistas e os demônios. Hawke. Chegara a achar que ainda havia bondade no mundo.

Mas era só outro mago.

Ele aparecia às vezes, fingindo se importar com o bem-estar do elfo, que fingia apreciar isso. A forma como olhava para Fenris, para as marcas de lyrium, seus olhos repletos de desejo... repugnante. Eram olhos como os de Danarius, que o enxergavam como uma presa rara. Olhos de mago. E pensar que Fenris chegara a achá-lo atraente, antes do apóstata começar a conjurar chamas na sua frente...

Arrancou a rolha da garrafa. Não era capaz de discernir o que estava escrito no rótulo, claro, mas reconheceu a bebida imediatamente assim que o aroma se espalhou. Cheiro de uvas de Antiva ou o que seja. O mestre gostava de oferecê-la a seus mais ilustres convidados – servida, é claro, por seu escravo favorito. Certa vez, Fenris havia provado o vinho escondido.

Danarius sentiu a bebida em seu hálito mais tarde. Sorrira, nem um pouco enraivecido, adorando um pretexto para punir seu pequeno lobo. Ao fim daquela noite, Fenris clamava por misericórdia e soluçava pateticamente, jurando obediência eterna e implorando ao magíster que parasse. A dor o acompanhara por semanas, junto à vontade de morrer que sempre espreitava a consciência de um escravo, sorrateira.

Um trinco estridente chamou sua atenção para a garrafa. Ele percebeu que a esmagava com os dedos inconscientemente; gotas de vinho escorriam pela superfície, vazando de pequenas rachaduras. Tentou relaxar, mas lembranças vívidas mantinham seus tendões retesados.

Aquele dia foi o primeiro do resto de sua vida. Fora a partir dele que decidiu, não, descobriu que não morreria acorrentado. Da boca para fora, prometera ao mestre que nunca mais o desobedeceria; mas, para dentro, jurara que algum dia não haveria mais “mestre”.

Fasta vass, Danarius. — Emborcou a garrafa, despejando parte de seu conteúdo adocicado sobre o caro tapete antes de levar o gargalo à boca — Um brinde ao seu prejuízo.

Não chegou a sentir o gosto. Sua mão travou no meio do caminho, tremendo. Dor ecoava pelo corpo.

O que estava fazendo era errado.

Ah, meu pequeno Fenris... o que eu disse sobre mexer nas coisas de seu dono...?

Gritando em fúria, ele ouviu o estilhaçar antes de sentir o punho fechando. Cacos de vidro foram ao chão, acompanhados por uma cascata de vinho e sangue. Esmagara a garrafa.

Fenris xingou baixo e examinou a mão, sacudindo-a para se livrar de alguns estilhaços menores. Dois lanhos feios abertos em sua palma, mas a dor era distante, abafada por um rugido de emoções. Testou o movimento dos dedos e constatou que não cortara nada importante.

Mesmo que estivesse a milhas e mais milhas de Minrathous, o magíster conseguia fazê-lo sangrar. As feridas que magia cravara em sua alma se abriam a todo momento. Não conseguia aproveitar um simples ato de rebeldia sem que azedasse em sua boca.

Fenris cerrou o punho ferido, deixando a dor aumentar e varrer sua mente. Fitava o lento gotejar carmesim com um olhar obsesso.

— Danarius. Hadriana. Ahriman — cuspiu os nomes entredentes. Após um momento de consideração, acrescentou: — Hawke. Esse... é o último sangue... que magia tirará de mim.

As palavras se entalaram em sua garganta. Soavam bem melhor em sua cabeça, mas não importava; sua única plateia eram os demônios que pressionavam o Véu, deleitando-se com sua cólera.

Estava farto de ser um animal exótico cobiçado por maleficar imundos. Ele iria naquela expedição de que Hawke falava tanto – e deceparia as mãos dele caso elas tentassem algo. Partiria de Kirkwall e usaria o lucro com mercenários, Corvos antivanos ou a maldita Heroína de Ferelden para conseguir a cabeça de Danarius em uma bandeja de osso de dragão.

Nunca mais — jurou, enterrando as unhas nos cortes. A agonia lancinante trazia um senso forte de propósito. — Nunca mais um mago me tocará com seus dedos podres.

Extirparia aquele câncer da sua vida de uma vez por todas, mesmo que a perdesse no processo.


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