Interlúdio escrita por Lua


Capítulo 5
Catarina III


Notas iniciais do capítulo

Eu sei, eu demorei uma vida pra publicar. Mil perdões! Espero que não tenham desistido de mim... Aproveitem a leitura.



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Estou com os olhos fechados, e os mantenho assim. Sento-me no asfalto e recosto-me no metal retorcido; sinto a chuva caindo, molhando meu roupão e meu cabelo. Respiro fundo, depois expiro; está de noite, não tenho agasalho, mas não sinto frio. As luzes do caminhão ainda estão acesas. Eu poderia ficar aqui para sempre, qualquer movimento me parece, de repente, pesado demais. Exaustivo demais.

 Apenas deixe-me ficar aqui. 

Deito-me, vagorosamente, apoiando minha cabeça sobre meu braço. A chuva continua caindo e, de certa forma, ela me embala. Estou pronta para dormir. Só o que eu quero é dormir. É errado?

Parece que estive acordada por dias, sem um minuto de folga. Levantar-se da cama, vestir as roupas certas, arrumar o cabelo, sair de casa; sorrir, comer, falar, amar, voltar para casa; ser esquecida, esquecer. Sofrer. Ser feliz. Tudo isso: demanda tanto e não dura o suficiente. Não vale a pena. Estamos todos aqui, cavando buracos em nós mesmos, tentando encontrar um tesouro dentro, mas só encontramos mentiras que nós contamos. Já se olhou no espelho? Eu não consigo mais. Todos os shoppings centers, com aquelas gigantes telas que nos refletem a alma – e o que enxergamos é a maquiagem, porque é o que está na alma, pelo menos na minha – me fazem revirar o estômago e vomitar todas as borboletas. Ergui anúncios a vida inteira para que não chegassem perto, para que não me quisessem, não me tocassem, mas eu precisei do toque. Precisei do calor. E, agora, minha pele está fria, mas não sinto nada.

 Nem precisei morrer, já era assim bem antes. Isso é muito mais do que estar cheia de tudo; é estar vazia.

Aquela foi a última vez em que desci as escadas do escritório, atravessei o pátio, peguei as chaves do meu uno prata, às 18:23, e dirigi em direção ao km 180. Algo interceptou-me na estrada, e eu não me importei. É aqui que eu fico. É a minha vez de ir dormir.

A música da chuva é interrompida com passos apressados, logo após o som de uma porta se fechando. Posso escutar o homem ofegante, escuto também gemidos, algo como um lamento.  Posso ver pés se aproximando e, quando o homem se abaixa, apoiando seus braços no asfalto, vejo que ele tem a tatuagem de um leão. Homens gostam dessas coisas, “o rei da selva”. Nesta selva aqui, nenhum de nós governa não, meu amigo. O que nos resta é a rendição.

Sei que ele não me vê ali deitada, mas ele procura algo nas ferragens, chama por alguma resposta. Ele quer saber se estou bem.

— Ei, tem alguém aí?

Ele pega um telefone celular e, ao mesmo tempo que digita com uma mão, coloca a outra sobre a cabeça.

— Meu Deus! – Ele exclama. — Atende. Atende!

Alguns segundos de uma pausa infinita se passam, até que alguém responde.

— Alô. Eu tenho uma emergência. Sim. Foi um acidente de trânsito. Estamos na rodovia 263, no km 180. Foi agora. – Sua voz fica trêmula e embargada por um choro reprimido. — Eu não sei bem, era uma garota, eu acho. Era uma garota. Não consigo achá-la nas ferragens. Você tem que me ajudar. Por favor, você precisa me ajudar. Pelo amor de Deus...

 Leva alguns minutos para que a ambulância chegue. Antes do barulho das sirenes, eu posso escutar um telefonema.

— Gregori? Alice, chama o Gregori pra mim. Preciso falar com ele agora. Tá. Greg? Greg, aconteceu uma coisa, cara. Eu – Ele gagueja. — Eu acho que matei uma moça. – Ele não pode segurar mais, então chora. — Eu matei uma moça, Greg.

O homem desmorona em pequenos pedaços que não vai poder juntar tão cedo. Ele está trêmulo, parece sem rumo, vejo amargura em seu rosto.

Eu sinto muito.

Eu não sei como me tiraram de lá, nem como eu cheguei até o hospital. Acho que a notícia saiu em um pequeno jornal da cidade. Eu só me importo com o Caio, em como ele recebeu a notícia.

É estranho todas as vezes em que posso me ver, mas não sou realmente eu. É como se eu estivesse fora do meu corpo, como um espírito. Mas eu tenho mãos, pés, olhos, lágrimas. Enquanto estava deitada na rodovia, eu sabia que não era a Catarina do mundo real, e sim a Catarina que existe só, neste tipo de universo paralelo. Quanto ao que o caminhoneiro procurava nas ferragens, era a outra parte de mim. A parte que não existe mais para eles. A parte que é só lembrança. A parte que recebeu abraços de chegadas, mas não de partidas. Ninguém quer abraçar quando se está partindo; a culpa torna os braços em chumbo e esmaga. Entretanto, confesso, já distribuí algumas despedidas por aí.

Quando o hospital ligou, ou os policiais, eu não sei quem se encarrega disso, falaram com meu pai, pois ele foi o primeiro a chegar e chegou sozinho. Acho que ele precisava confirmar, precisava ter certeza de tudo, não criar alarde atoa. Ele passa pelo homem do caminhão, que, surpreendentemente, ainda está sentado na sala de espera da ala de emergências. Os olhos dos dois se encontram, mas não há tempo para abraços, desculpas, nem nada do tipo. Meu pai sabe que não pode cobrar explicações do motorista, mas, no fundo, todos o culpam. Tem que ser responsabilidade de alguém, não é mesmo? E Deus está um pouco fora do alcance de fardos tão sombrios como este. Pelo menos, é o que a maioria pensa.

Sento-me ao lado do caminhoneiro que tem a cabeça curvada e apoia-se em suas mãos. Gostaria que ele soubesse que está tudo bem, que não precisa se ressentir. Eu sei que ele pensa que havia toda uma vida pela frente para mim, mas não penso dessa maneira. Penso que se o acidente aconteceu, então deveria ter acontecido, mesmo que um de nós pudesse ter evitado. A questão é que nunca vamos saber se realmente podíamos ter evitado.

 Depois de alguns minutos, meu pai passa de volta no corredor, com um aspecto arrasado. Como quando a tempestade vai embora, e a lama, galhos e lixo se espalham no caminho. Vejo que o homem ao meu lado quer dizer alguma coisa, mas não diz, meu pai também não lhe dá oportunidade. Ele só vai em direção a porta, entra no carro e dá a partida. Eu pego carona. Me afundo no banco de trás e deixo minha mente viajar, vagar para longe dos acontecidos, para uma época boa e feliz. Fecho os olhos e não posso deixar de pensar naquele grande e fragilizado homem esperando no hospital. Me pergunto se ele tem família e se um abraço caloroso o espera quando chegar em casa.

Aos poucos, os sons ao redor esmaecem e me sinto flutuar. Quando abro os olhos, estou deitada na minha antiga cama (na casa de minha avó, onde costumávamos morar) e Caio está deitado ao meu lado, encolhido, virado para a parede. Tenho uma sensação de alívio, seguida de um nó na garganta que não se pode engolir.

Primeiro, penso que ele está dormindo, mas posso ver seus olhos abertos, perdidos como um andarilho que não tem uma casa para voltar no final do dia. Meu coração parte-se em um milhão de pedaços. Tento tocá-lo, sabendo que ele não vai sentir. Levanto da cama e, ao vira-me, a visão é devastadora. Caio espalhou todas as fotos nossas, e minhas, desde quando éramos pequenos até às mais recentes, pelo chão do quarto e paredes. Todas dispostas, como um redemoinho de memórias dolorosas, ainda que sorrisos estivessem estampados em todo canto.

A pessoa que mais me fez falta, quando saí de casa, foi Caio. Senti falta da frequência assídua dele ao meu quarto, todas as noites, só para não fazer nada. Ele ficava falando de coisas sem importância, mas engraçadas. Contava alguma história, procurava por alguma moeda, enquanto eu o mandava parar de mexer nas minhas coisas. Ás vezes me trazia algum jogo, para brincarmos. Sempre era tarde da noite, eu sempre tinha que trabalhar no outro dia cedo, mas sempre ficávamos acordados até ainda mais tarde. No feriados, assistíamos a filmes juntos, e ele me contava o final, cruelmente, dos que ele já havia visto; eu brigava e fazia comentários do tipo “não! Meudeusdocéu! Por que você me contou? Não é possível que ela morre!”. Quando chegava na cena final, e eu percebia que ele tinha mudado dois fatos ou três, e que o final não era bem o que ele tinha dito, eu ria. “Caio, seu mentiroso! Você disse que ela morria!”. Ele nunca me dava os desfechos certos, mas em todas as vezes, eu caía na pegadinha.

Ele era incansável. Quando queria que eu o levasse a algum lugar de carro, me mandava umas cinquenta mensagens, ligava, insistia até eu ceder. Uma vez, Caio me surpreendeu com a quantia de cinco pessoas no banco de trás, mais ele na frente. Cinco pessoas! Todas espremidas e em tempo de me provocarem uma advertência. Como punição, obriguei a todos escutarem à minha playlist, enquanto eu cantava todas as músicas, no maior volume. Quando vi que eles gostavam do que tocava, mudei para minha seleção de MPB, de propósito, e todos choramingaram. Naquela mesma noite, quando chegamos em casa, Caio me confessou que gostou e que só contrariou porque tinha que “manter a pose”. Essa era a nossa frase especial, para os momentos divertidos e difíceis também. Era nosso código secreto para a dupla invencível que acreditávamos ser.

— Mantenha a pose. – Ele sussurra tão baixinho que mal ouço. Sussurra para ele próprio.

Caio tem 22 anos e acabou de se formar na faculdade. Eu fui a única pessoa da família que ele convidou para o baile. Em parte porque ele não queria que nossos pais o vissem beber, e em parte porque ele estava preocupado comigo.

— Você sumiu por mais de duas semanas. Sem responder as mensagens, sem confirmar a festa de hoje, nem nada. Cat, está tudo bem?

Eu pegava uma bebida da bandeja de um garçom que passava. Depois de dar um gole no coquetel, respondi.

— Está sim, não se preocupe comigo.

— É sobre o Theo? – Ele perguntou, sem saber se estava ultrapassando algum limite.

— O que? Theo? Não o vejo a quase um ano. – Disse tentando parecer extrovertida.

— Mas vocês se falaram em menos tempo, certo?

— Sim. Mas isso está completamente fora de questão. Não foi tão ruim assim. Namoros tem que terminar um dia. Eu sei disso.  

— Cat, vocês dois iam casar. A data estava marcada. Você já tinha escolhido o vestido.

Uma pausa entre uma frase e outra foi necessária. Depois de um tempo, ele continuou.

— Ele teve uma recaída, não foi?

Meu silêncio deve tê-lo respondido.

— Ele teve uma recaída a ponto de sumir. Era por isso que você andava tão preocupada naquela semana. Cat, fala comigo.

— Sim. – A palavra cortou minha garganta como se fosse um som que não devesse sair. — Mas não foi só isso. Já não estávamos combinando em muita coisa, há muito tempo. É só que, como eu iria confiar que... Que ele estava realmente bem?

— Você não contou para mim, nem para mãe ou o pai. Você não comentou sobre a recaída com ninguém. Me diz a verdade, você não contou porque cogitava voltar com ele e sabia que ninguém aprovaria. É isso?

— É.

Caio sempre tirava de mim os segredos que eu queria guardar, e eu nem me importava. Ele ficou calado porque, de fato, não gostava de Theo quando ele estava comigo. Não o aprovava, embora os dois fossem amigos.

— Ele é um viciado, Caio. Não dá pra saber nada sobre ele, não dá pra dizer se ele vai ficar extremamente agressivo, ou ser um amor de pessoa.

— O problema é que você se culpa por tê-lo deixado.

— Ele me obrigou a abandoná-lo. Eu... Eu não queria porque não é isso que o amor faz.

— Catarina, nós vamos resolver a situação. Ok?

Eu vi a preocupação nos olhos dele. Não era justo, ele não podia desperdiçar a sua noite de formatura.

— Caio, relaxa! Se eu não superei até agora, isso aqui vai me faze superar. Levantei um copo com vodka, de alguém que estava sentado até pouco antes de iniciarmos nossa conversa. Bebi tudo em uma só vez e nos levantamos. Ele caminhou em direção a seus colegas de turma, e eu em direção a pista de dança. Ele sorriu para mim, quando me virei, ele dizia a frase “mantenha a pose”. Como a música estava alta, eu não escutei as palavras, mas as li. Levantei o copo vazio que ainda estava em minha mão, como se brindasse àquilo. Mas não era à frase, ou àquela decisão de darmos um jeito juntos. O brinde era a ele. Ao irmão maravilhoso que ele é e ao homem que se tornava.

Agora, ali, deitado na cama, eu não consigo vê-lo como esse homem. A criança, peralta, que sempre se metia em apuros e caía aos berros quando tinha que passar mertiolate nos cotovelos, parecia se materializar bem a minha frente. Só que, ao contrário de todo drama que ele fazia quando era pequeno, aquele machucado por qual ele chora, parece realmente doer.

Me sento ao lado dele, na cama, ouvindo seus soluços baixos e vendo todo seu corpo tremer.

— Eu te amo. – Ele diz.

Preciso confessar que é neste momento que eu quero voltar atrás. É o único momento em que me arrependo. O pânico cresce dentro de mim. Não há volta. Olhando para Caio, desolado, remoendo nossas memórias, eu me sinto a pessoa mais egoísta do planeta terra. Se eu tivesse pisado no freio, se eu tivesse desviado, virado o volante... É improvável que o resultado fosse diferente, mas eu nem tentei. Eu só não fiz nada; eu estava ali, eu sabia o que ia acontecer. Nem me importei com meu coração acelerado e minhas mãos suando em uma velocidade incrível; talvez eu tenha prendido a respiração, mas eu já não sei.

Eu queria explodir.

O telefone de Caio toca pela quinta vez seguida, o que me tira do torpor. Dessa vez, ele atende.

— Não, eu não estou bem. – Ele responde, depois de alguns segundos. — Mas não vou adiar a viagem. Metade das minhas malas já estão prontas. – Outra pausa. — Tudo bem. Lara, eu... Eu acho que devo isso a ela, como um tributo, entende? – Lara era uma colega nossa. — Foi ela quem me incentivou a fazer este intercambio, conhecer culturas novas, experimentar lugares novos. Ela sempre quis que eu conhecesse o mundo. Não vou cancelar tudo. Além do mais, eu não tive culpa, ela não teve culpa.

A última frase me deu um soco no estômago. Foi suicídio, eu queria gritar. Não suportava a ideia de mentir para Caio.

Foi suicídio?

A voz dele estava rouca, enquanto continuava falando.

— E, sabe, mesmo que ela tivesse culpa, eu não ligo.

Sabe quando você sente uma mistura de pânico e expectativa? Me sento assim. A ideia de que Caio me deixaria livre da culpa de querer ir embora, me faz sentir paz, só que ainda não consigo aliviar o peso. Ainda dói, como se eu o tivesse deixado para trás. Na verdade, eu deixei.

Ele chora. Ele nunca chorava na frente dos outros.

— Eu a perdoo, se a culpa for dela. E se não for também. A perdoo por tudo. Por me irritar tanto, por pegar minhas camisas xadrezas de botões, por ter ido embora de casa sem me levar com ela. A perdoo por ter comido metade do meu sanduíche naquele dia, enquanto eu fui ao banheiro. Eu a perdoo por me obrigar a assistir todos àqueles ridículos programas de maquiagem e outras merdas, e por sempre sentar no banco da frente, no carro da nossa mãe. Eu não ligo. Eu não ligo pra mais nada. Eu a perdoo. – Ele para, porque os soluços engolem as palavras.

Eu daria tudo pra voltar, Caio. Por você. Só por você, eu daria tudo pra voltar. Mas eu não tenho nada. Merda. Eu sinto muito.

— Eu só... – Ele conclui, depois de um tempo em silêncio. — Eu só quero ir embora daqui.  Dessa cidade, desse país. – Uma pequena pausa – Sem ter que sair deste quarto.

Eu entendo o que ele quer dizer. O quarto tem cheiro de infância. As paredes ainda estão rabiscadas com os nossos jogos da velha. As janelas tem ar das nossas criancices malucas. Ar de um tempo bom, em que estávamos em Nárnia e na floresta do Tarzan ao mesmo tempo. Aqui, podíamos tudo.

Caio enxuga seu choro, depois de desligar o celular. Então eu o abraço, mas ele não sente.

Eu também amo você, Caio. Mais do que tudo.


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