Diuna Trunk - Chronicles escrita por Cahxx


Capítulo 2
Capítulo 2




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Deposito a maleta sobre a mesa de Howard, o som do metal pesado batendo contra o mogno marrom despertando o empresário e fazendo-o largar o celular e me encarar com uma sobrancelha erguida.

Howard é careca: sua cabeça parece uma bola de bilhar branca. Seus olhos pequenos e fechados estão sempre cobertos por um par de óculos escuros de aros redondos e tampões nas laterais, de modo que mais parecem óculos de mergulho. Sua barba cor de cobre forma um quadrado na lateral do rosto e termina num triângulo saliente na ponta do queixo. Está sempre vestido com ternos clássicos, coletes de camurça cheios de botões e camisas sociais transpassadas por correntes douradas de relógios de bolso. Ele tem todo um ar steampunk.

— O que é isso? – ele me questionou, o celular afastado da orelha.

— Meu trabalho.

— Mas como assim? Já tá feito?

— Sou uma ótima aluna.

— Não pode ser.

— Assim será.

— Não pode ser.

— Que assim seja, então? Qualé, Howard, não tenho muito tempo. Me diz logo se está tudo certo.

— Te ligo depois – ele avisou seu contato e desligou o aparelho. Se ajeitou na cadeira e decidiu se levantar. Passou o dedo enluvado sobre a maleta e conferiu o pó de sua carcaça metálica. Me encarou e, ainda que estivesse escondido atrás dos óculos, eu pude ver um misto de surpresa em sua expressão. Abriu o fecho e suas lentes cobriram-se com a luz rosada que emanava do conteúdo das seringas.

— E então? – eu quis saber.

— Espere aqui.

Howard entrou na sala de Simon. Simon é o que chamamos de “Deus” na agência 27: você só o verá UMA vez na vida, e será num momento ruim. O vi uma única vez, e estava sentado numa poltrona de coro, de costas para mim e se quer identifiquei a cor de seu terno. Espero não saber nunca.

Howard apareceu na porta e soltou um sorriso de lado:

— E então?

— É, tá tudo certo.

— Eu já sabia – disse sentando numa cadeira e estirando as pernas sobre a mesa. Simon empurrou minhas botas para fora do mogno caro e eu o encarei. – O que ele disse?

— Nada. Como sempre. Apenas concordou com a cabeça.

— Certo, então. Me diz uma coisa: o que eu preciso fazer pra ganhar a atenção dele?

— Uma pergunta difícil, menina... – Howard pegou um dardo sob a mesa e arremessou num alvo pregado na parede do escritório. Observei sua ponta de ferro perfurar a marcação central e um líquido espesso e verde escorrer pela borda.

— Por que usa dardos com veneno? – perguntei mais para prolongar nossa conversa do que por curiosidade mesmo.

— Porque se eu não acertar lá, será em alguém mais importante. E devemos estar sempre prontos para isso. Não é?

Fitei seus óculos escuros, tentando encontrar seus olhos. Nada deles.

— Não respondeu minha pergunta – continuei – alguém já foi o preferido do Simon?

— Já. Mas ele morreu pouco antes de você entrar. O que Simon quer é o que todos os outros donos de agências querem: elevar a agência 27 para o topo. Isso se consegue com uma grande pontuação de crimes combatidos. E não falo de quantidade de criminosos presos, mas sim, da qualidade deles.

— Compreendo – disse me esticando sobre a mesa e roubando o dardo de sua mão. – Isso quer dizer que tenho que pegar peixe grande – comentei e arremessei o dardo. O projétil acertou fora do alvo, precisamente na parede. Howard riu do meu erro, mas eu permaneci encarando suas lentes escuras. Observei seu sorriso se apagar e então ele decidiu levantar, se aproximar do meu dardo errado e grudar o nariz na ponta metálica enterrada no gesso. Ele pôde ver a agulha transpassada no corpo de uma mosca que fora morta antes pelo golpe do que pelo veneno. Olhou da mosca para mim e sorriu.

— Você vai tentar chegar no top 10 de agentes? – ele perguntou com certa ironia.

— Aguardemos o decorrer do tempo, meu caro Watson.

Howard tornou a sentar-se à mesa e abriu uma nova maleta, menor e com menos seringas. Encarei a caixa metálica sentindo minha garganta apertar e o fitei esperando uma explicação:

— Não se esqueça de usar nenhuma. Não perca os horários e mantenha tudo refrigerado.

— Eu já sei.

Fechei a maleta e saí da sala.

Celty e eu fizemos o caminho para casa. Sentia a maleta presa às minhas costas e certo arrependimento tomava conta de mim. O que é da minha vida neste momento? Quem eu sou? Com que trabalho? Como me reproduzo?

Sinto um misto de confusão sobre o que ando fazendo. O que é matar criminosos em troca de pagamento?

“Ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão”.

Meu pai precisa da cirurgia e esta, por sua vez, precisa do dinheiro. Eu tenho um emprego?

“O mundo é dos espertos. Seja, pelo menos, um sobrevivente”.

Fui treinada pra isso. Eu nasci pra isso. Se eu não fizer, ninguém fará no meu lugar.

Chego em casa, meu apartamento velho de um cômodo apenas. Está mais para um pequeno estúdio que pouco organizo. Jogo minha jaqueta de couro sobre uma cadeira e desabo sobre a cama. Ligo a TV e ignoro a notícia de corpos de estudantes encontrados no estacionamento da escola. Tiro uma cerveja do frigobar e dou alguns goles enquanto me aproximo da sacada e observo o movimento na cidade.

Pessoas que andam todos os dias por aí sem se quer imaginar que outras pessoas que elas se quer conhecem arriscam suas vidas para mantê-las em segurança sem um pagamento se quer. Por que isso? A que ponto chegamos? Quando foi que o único animal racional do planeta evoluiu? Preciso voltar a estudar.

Sinto uma forte dor no braço e me lembro do machucado de poucas horas atrás. Pego uma caixa de medicamentos e me deito na cama, começando a improvisar um curativo torto e mal tratado. Encaro a maleta dada por Howard que está em cima da mesa. Reluto em pegá-la, mas não resisto: abro a tampa, retirando uma das seringas e analiso sua coloração. Fazer o quê... Enterro a agulha em minha coxa e insiro o líquido na musculatura.

Uma onda de sensações percorre meu corpo: sinto a dor do machucado sumir, meu coração acelerar, minha visão ficar turva e minha audição falhar. Logo tudo volta ao normal e sinto cede. Não, eu não me drogo.

Essa é a forma como os agentes mantêm seus corpos em alta produtividade. Esse medicamento nos confere um aumento das habilidades físicas como maior resistência, fôlego, força, velocidade e até perspicácia. Não sou a favor de me mover à base de experimentos científicos; tenho medo das consequências finais. Mas se isso é necessário para me manter viva em meio a assassinos cruéis, que continue assim.

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Perfuro a avenida com a Celty, a noite escura e poluída extremamente clara devido a imensidão de luzes da metrópole; parece nunca escurecer de verdade por aqui. Estaciono na frente do restaurante onde, segundo o Simon, eu deveria encontrar um cafetão, ou melhor, um agenciador de meninas.

Esse cara não faz nada de mal se levarmos em consideração que seu trabalho é legalmente permitido, suas funcionárias são maiores... O problema dele é que acabou se envolvendo com gente da pesada e suas garotas têm sido utilizadas pra usurpar informações de empresários poderosos da cidade. Bom, querem a cabeça dele e eu tô aqui pra isso.

Entro no restaurante, movimentação aparentemente normal, todas as mesas ocupadas, uma única livre e o pávido silêncio de gente rica. Me aproximo da mesa vazia, um garçom já me aguardando na cadeira recém afastada.

— Por favor, madame - ele indica a cadeira. Ergo uma sobrancelha meio a contragosto: com toda certeza eu não sou uma “madame” enfiada naquela jaqueta de couro, aquelas calças grossas apertadas, os coturnos empoeirados... Mas enfim, se é pela missão né... Vamos nessa.

Sento-me à pequena mesa individual, minha visão voltada para a mesa do alvo recém identificado: um sujeito meio roliço e peludo, mãos ornadas em anéis de ouro, dedos grossos e cabeludos, o pouco cabelo que tinha passado a óleo pela careca viçosa. Não tinha como passar despercebido com aquele outdoor que ele deve chamar de “camisa” na cor vermelha repleta de flores havaianas. Sua aparência me era caricata, até meio clichê, mas talvez isso me poupasse do pesar da consciência.

O garçom retorna a minha mesa com o prato já escolhido antes da minha chegada. Sinto fome ao observar aquele cloche e saber que não é comida que tem ali. Vou sair desse lugar com o estômago roncando e descobrir que minha geladeira tem seringas de remédio ilegais e cervejas super calóricas. Mereço um aumento.

Você veio por conta própria ou alguém te mandou?

— Ah... Me indicaram... - o cliente disse com certa insegurança -

Quem? Ah, deixa eu adivinhar: Petuti lhe mandou...!

— S-sim...

— Ah... Petuti...  Não podemos negar negócios aos amigos. Amigo nós chamamos pra dentro de casa com tapete persa. Nunca recuso um favor a alguém que me tem de bem.

Era o discurso que eu apreciava com os fones de ouvido ligados ao gravador na mesa do agenciador. Sentia até pena de sua total ingenuidade perante o mundo dos negócios.

— Peça o que quiser e não tenha vergonha. Faço por meu bel-prazer.

— Eu não sei, senhor Miguel Ângelo...

— Apenas Miguel! Para os íntimos...

— Miguel...

— Não, só tira o “Ângelo”... O “senhor” pode deixar.

— Bom, o caso, senhor Miguel...

— Isso.

— ...é que o que estou necessitando talvez o senhor não aceite fazer... É de extremo sigilo e perigo. Não é qualquer tipo de fornecedor que consegue com essa “qualidade”.

— Pois me diga logo, rapaz, que o que Miguel quer, Miguel consegue nessa cidade!

— Certo... Preciso de uma moça como espiã na reunião do cartel de sexta à noite.

Observo o cafetão franzir o cenho e questionar ao “cliente”:

— É só isso...?

— Pois se é...

— Hu - e ele gargalha, alto demais pelo silêncio que se fazia ali - Pois se é só isso, rapaz, essa é minha especialidade! Vou colocar uma acompanhante dentro dessa reunião, meu amigo, e está tudo feito.

— O senhor é capaz?

— Pois se sou! Garoto, eu montei a enciclopédia sobre todas as agências da metrópole só mandando minhas meninas até eles! Deixe comigo que isso é manjado.

— Obrigado, senhor Miguel!

— Pois que agora coma e sorria.

É a minha deixa e minha hora de jantar. Me levanto da cadeira, abro o prato e retiro a pistola silenciosa e livre de identificação, apontando-a para Miguel Ângelo:

— Sinto muito, senhor Ângelo - eu digo encarando-o e percebendo em seus olhos negros que ele realmente não acredita no que está para acontecer - Mas eu também quero jantar.

E disparo, um furo certeiro e pequeno em sua testa gorda, o sangue escorrendo em filetes pelo nariz e a cabeça caindo sobre o prato de porcelana. Gritos ecoam quebrando o total silêncio do restaurante. Jogo a arma sobre a mesa e limpo minhas luvas fedidas à pólvora:

— Gravou tudo? - o cliente de Miguel me questiona. Não conheço o rapaz, apenas sei que foi contratado pelo Simon.

— Sim, valeu - embrulho um dos pães da mesa do recém morto e guardo no bolso da jaqueta - Té mais.

Saio do restaurante e passo a utilizar meus fones de ouvido para ouvir um rock da pesada. Celty grita pelo asfalto, mas eu se quer escuto o ruído de buzinas e gritos de pessoas impacientes pelo trânsito. Só quero chegar em casa logo e comer meu pão italiano. Petuti... Esse nome me vem a cabeça e me dá ainda mais fome.

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