Nefarsius escrita por Henrique Lima


Capítulo 1
Nefarsius




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/672669/chapter/1

Era verão, mas uma breve nuvem acinzentada trazia chuva naquela tarde, alguns feixes de luz vindos do corpo celeste transpassavam a nuvem e iluminavam a aldeia. Um pouco mais afastado dali havia um grupo de homens deitados em meio a relva verde de uma planície que se estendia até onde os olhos alcançavam, eles pacientemente espreitavam uma manada de búfalos que se alimentavam por perto. Equipados com arcos e flechas, aqueles tribais esperavam o momento oportuno para atacar.
Ao sinal de um dos homens, outro grupo se ergueu num local mais afastado e saiu em disparada rumo a manada enquanto gritavam em frenesi. Quase que imediatamente os búfalos iniciaram uma fuga no sentido oposto aos gritos, nesse momento o outro grupo com arcos se levantou e iniciou o ataque. Uma chuva de flechas caiu sobre os animais que de repente tentavam se afastar de seus algozes.

No fim daquela tarde os tribais conseguiram abater cinco grandes búfalos, além dos outros atingidos em partes vitais que morreriam no caminho da fuga, mas já havia um grupo de homens que se preparavam para segui-los.

Por tradição, a carne era dividida entre todos os homens que tivessem conseguido atingir as presas, para isso eles usavam variadas marcas nas flechas de cada um a fim de identificar os merecedores do alimento. A carne era dividida ali mesmo, sob o pôr do Sol, todos pareciam satisfeitos com a caçada. Todos menos um. Um daqueles homens ainda procurava alguma de suas flechas cravada em algum animal, mas não encontrava nenhuma. Talvez encontrasse uma cravada em alguma árvore, talvez cravada no chão, talvez até cravada nas costas de algum companheiro de caçada, mas não em uma presa.

Enquanto a carne terminava de ser dividida, um homem trajando as típicas calças de couro e pintura marrom por todo corpo, característica de seu povo e carregando nas costas uma bolsa feita de pele e recheada de carne, se aproximou do outro, que frustrado, apenas observava a partilha do alimento.

— Acho que você vai ter que caçar abutres de novo, Ernou. – Desdenhou. – Que tal pedir algumas dicas de caça para seu filho? Ou talvez ele esteja muito ocupado fazendo... Nada. – Completou e saiu rindo.

A piada foi dita em voz alta, causando gargalhadas entre os tribais mais próximos. Ernou olhou em volta e, ao longe, enxergou seu filho sentado sob a sombra de uma das grandes árvores dispersas pela planície no topo de uma colina.

O rapaz admirava o pôr do Sol quando, de repente, sentiu seu arco ser tomado de sua mão. Em seguida uma leve tapa na cabeça o fez levantar-se assustado e se recompor logo após ver seu pai com seu arco.

— O que pensa que está fazendo Nef? – Disse o pai, empurrando o arco de volta para o filho.

— Eu estava imaginando que deveríamos falar com o líder sobre as tribos da costa. É muito injusto nosso povo não poder aproveitar os frutos que o mar oferece. Não podemos pescar na costa só porque já existem aldeias por lá, eles não são os donos do oceano sabe? – Falou como se fizesse uma grande revelação.

— Não me importo. – Respondeu Ernou, quase gritando. – Você deveria estar na caçada me ajudando. Não conseguimos nada hoje. De novo.

O homem, repleto de cabelos brancos e corpo decadente, desceu a colina com dificuldade, mas falou enquanto ainda podia ser ouvido.

— Pare de pensar Nefarsius, comece a agir. – Fez uma pausa e concluiu. – Não vou estar por perto para lhe dizer isso sempre que precisar.

Ernou era um homem de idade já avançada que, além de não ter a mesma habilidade de tempos memoráveis para caça, não aguentava mais essas saídas exaustivas em busca de alimento. Seu filho Nefarsius, entretanto, já beirava os trinta e nunca se dedicou a aprender nada de útil dentro da tribo em que vivia.

À noite, naquele mesmo dia, as famílias da aldeia se reuniam em seus lares para saborear a carne conseguida com tanto esforço. Porém, havia um lar onde a família se reunia em volta de uma fogueira para compartilhar uma peça miserável de carne suína. Tão miserável quanto a carne, era o lar, uma choupana decadente, construída com uma boa madeira que já apodrecia e infestava-se de cupins.

No quesito design, os outros lares não eram tão diferentes daquele. O grande contraste ficava por conta do tamanho e do estado de conservação da edificação. A pobreza daquela família, assim como a de tantas outras, poderia ser vista só de comparar as choupanas na aldeia.

— Vá pegar mais água no poço. – Pediu Ernou assim que viu Nefarsius terminar de comer.

Nefarsius, então, se levantou, tomou um jarro qualquer e saiu. Todas as choupanas tinham praticamente a mesma organização. A fogueira, onde cozinhavam o alimento, ficava perto da entrada. No teto havia uma portinhola por onde a fumaça escapava. O chão era constituído da própria terra batida e a estrutura da construção feita de madeira. Não haviam janelas, a única fonte de ventilação ficava por conta da grande entrada principal e de fato as janelas talvez não fossem necessárias, pois todos os cômodos, não importa quantos houvessem, tinham suas entradas tão grandes quanto a principal. E nada de portas. Nem mesmo onde eles faziam suas necessidades fisiológicas.

Assim que seu filho saiu, Ernou se virou para sua companheira.

— Ele fez de novo, Sirse. Eu precisei da ajuda dele, mas ele estava vagando por ai de novo.
— Querido, precisa ter paciência. Ele vai encontrar seu próprio caminho. – Suplicou.

Sirse era uma artesã, sem muitos talentos, poucos anos mais nova que seu parceiro, seus longos cabelos brancos alcançavam o quadril e seu corpo esguio não tinha mais as belas curvas de outrora.

— Não temos tempo para ter paciência. Se você não tivesse conseguido trocar aquela pele de búfalo que consegui semana passada por esse pedaço de porco teríamos ido dormir com as barrigas vazias. Mais uma vez. – Respondeu, já sem forças para estar irritado. Franziu as sobrancelhas grisalhas e continuou. – Quando não estivermos mais aqui ele não conseguirá se virar sozinho... Às vezes penso que... Talvez não tenha sido uma boa ideia ter aceitado cria-lo. – Admitiu enquanto olhava para o fogo.

— Pare com isso! –Vociferou Sirse – Somos tudo o que lhe restou e ele é tudo o que nos resta. Dormirei antes que precise discutir com você de novo. – Disse e caminhou até sua cama nos fundos da choupana.

Ernou continuou cutucando a fogueira com uma vareta. Seus olhos escuros observaram, pela saída no teto, o céu limpo e estrelado. Pensava se tivera errado em algum momento como pai.

A tribo a qual pertenciam chamava-se Cefir, um povo que vivia da caça de animais selvagens em seu território. A pele desses animais era a principal moeda de troca, visto que era usada para quase tudo na aldeia, desde vestimentas até peças de decoração. Por tradição, as mulheres Cefir escolhiam com quem se uniriam e feita essa escolha não haveria volta, diante disso, os próprios homens poderiam recusar o pedido, o que seria uma vergonha para a mulher, por isso elas tomavam essa decisão com muitíssimo cuidado. A não ser que as outras mulheres escolhessem os mais “valorosos” da aldeia, nesse caso não sobrariam muitas opções.

Esse era um dos grandes problemas na vida de Nefarsius. Ele não era um homem nem um pouco “valoroso” para a tribo, logo, as mulheres pelas quais ele se interessava não lhe davam mais atenção do que a uma fruta estragada, exceto uma. Lunia não era a moça mais bonita da aldeia, mas tinha sua própria beleza. Ninguém sabia o que ela vira naquele “saco de nada”, mas alguma coisa ela viu.

Naquela noite, enquanto enchia o jarro com a agua do poço, Nefarsius viu uma moça se aproximar para fazer o mesmo. Apenas os grilos e sapos quebravam o silencio instaurado em volta daquele poço cercado pelas choupanas em bom estado. A moça continuava enchendo seu jarro sem sequer olhar para Nefarsius. Ele, entretanto, não parava de observa-la.

— Olá Mona. – Disse tão alto e tão de repente que a moça quase deixou o jarro cair. – Soube que você ainda não escolheu um companheiro.

Mona era uma das mulheres mais bonitas da aldeia. Seus lisos e longos cabelos negros, olhos esverdeados e corpo delgado chamavam a atenção de todos os homens da tribo. E ela com certeza ficara irritada por aquela conversa ter se iniciado, embora não tenha dado atenção a Nefarsius.

— Bem, saiba que ainda estou livre, esperando uma merecedora. – Disse fazendo pose.

Após conseguir a agua de que precisava Mona já tomava o caminho para longe dali. Mas, de forma insistente, Nefarsius entrava em seu caminho.

— Espere, estava pensando... Talvez você queira dançar comigo amanha, no ritual da lua cheia. – Falou como se fosse uma oportunidade de ouro.

Súbito, Mona vira o jarro sobre a cabeça de seu insistente paquerador, encharcando-o.

— Eu não quero nada com você. – Disse ela e saiu como se nada tivesse acontecido.

Mona provavelmente não queria ser “merecedora” daquele homem.

Quando voltou ao poço para pegar seu jarro, Nefarsius deu de cara com Lunia, que com um olhar meigo o observava.

— Por que está todo molhado? Resolveu tomar banho aqui fora? – Disse ela enquanto tentava afastar os castanhos e molhados cabelos de Nefarsius do rosto dele. Alguns fios brancos no cabelo dele que indicavam a aproximação da meia idade se destacavam em sua franja bagunçada. A barba, que crescia de forma desajeitada e incompleta, já alcançava o pescoço. Além disso, as primeiras rugas no canto dos olhos começavam a surgir.

Lunia certamente ainda não chegara aos dezoito anos, era uma moça baixinha, tinha um pouco de peso sobrando, o que a deixava com poucas curvas, seu rosto era arredondado e tinha bochechas protuberantes. Seu cabelo enrolado tinha uma cor viva avermelhada e seus olhos eram tão castanhos quanto um grão de café.

— Não preciso de sua ajuda. – Disse Nefarsius e com um leve tapa afastou a mão de Lunia.

Ela recolheu sua mão e observou Nefarsius se afastar até o poço e pegar o jarro. O fitou por um bom tempo, sentindo pena, e só então voltou a se aproximar.

— Não posso te esperar para sempre, Nef... Por que você não aceita que as outras não veem você como eu – Antes que pudesse concluir a frase Nefarsius a interrompeu bruscamente.

— Não pedi para que me esperasse! – Esbravejou. – Você não tem nada que eu queira. Apenas mais miséria. – Disse pouco antes de se afastar de Lunia e sumir entre as choupanas.

Lunia havia perdido o pai num conflito entre os Cefirs e uma tribo mais afastada. Só lhe restaram a mãe e a pequena irmã. Sua mãe trabalhava com argila e barro, construía peças necessárias para o dia a dia na aldeia, era ótima no que fazia e Lunia seguia os mesmos passos. Entretanto, os serviços eram suficientes apenas para a sobrevivência da família e nada mais. Logo, Nefarsius não via em Lunia uma boa companheira, só via apenas mais um problema.

Há muito tempo um conflito entre os Cefirs e outra tribo forçou os dois lados a usar todos os seus recursos em prol da vitória. Os Cefirs venceram no final, mas não havia sobrado muita coisa. Para piorar, uma época de seca atingiu a região. Sem recursos eles não durariam muito, desesperados, todos os sábios da tribo se reuniram, rezaram, jejuaram e ofereceram oferendas (as poucas que restaram), pedindo a mãe natureza, a divindade que adoravam, para que trouxesse provisão. Uma longa e agonizante semana se passou e a chuva veio na primeira lua cheia do ano. Desde então, em toda a primeira lua cheia de cada ano, a tribo homenageia a divindade com um ritual.

Na manhã seguinte os preparativos para o ritual começavam a ser feitos, todas as pessoas da aldeia se mobilizavam para ajudar. As famílias decoravam seus lares com adornos de madeira coloridos com flores e rosas silvestres e separavam seus melhores alimentos, comidas típicas que enchiam os olhos. Pequenas fogueiras eram preparadas por todo o canto para iluminar aquela noite, mas havia uma muito especial, maior do que qualquer choupana, ela era parte essencial do ritual, ficava exatamente no centro da aldeia e tudo ocorreria em volta dela.

Dezenas de homens tocavam musicas dançantes usando tambores e instrumentos rústicos de corda. As crianças corriam e brincavam por toda a aldeia iluminada pelas fogueiras. Em volta da fogueira maior as pessoas dançavam e festejavam, enquanto as famílias traziam suas oferendas alimentícias e as lançavam as chamas. A ideia era que quando a fumaça subia a mãe natureza receberia a oferenda. Era um ritual que só ocorria uma vez ao ano então todos o aproveitavam ao máximo.

Ao som da musica que reverberava desde o centro da aldeia Ernou e Sirse, que se esquentavam em uma das fogueiras menores, observavam as crianças brincarem e alguns adultos nas proximidades dançarem. Os dois não conversavam desde a noite anterior, quando falaram sobre o filho, ela estava sentada perto da fogueira quando Ernou se aproximou.

— Você estava certa. – Disse ele. – Afinal, quando você não está?

Sirse o observou por algum tempo.

— Olhando essas crianças eu me lembrei dele. Eu agradecia todos os dias por ter alguém para cuidar. Estaríamos sozinhos se ele não tivesse entrado em nossas vidas... – Ele completou..

Há muito tempo, mesmo antes de encontrarem Nefarsius ainda pequeno e abandonado numa velha choupana afastada da aldeia, Ernou e Sirse já sabiam que jamais poderiam ter um filho de sangue. Por inúmeras vezes eles tentaram, mas não lhes sobraram esperanças. Tudo mudou no dia em que encontraram Nefarsius. Após o mostrarem para o líder da aldeia e aceitarem cuidar do menino, pois ninguém encontrara os pais verdadeiros, a vida se renovou para os dois. Na verdade para os três.

Ernou olhou em volta e viu as pessoas alegres e felizes com a vida que tinham e no fundo de seu ser ele acreditava que sua família poderia superar aqueles problemas, era tudo uma questão de força de vontade.

— Há quanto tempo você não dança comigo? – Disse ele estendendo a mão para Sirse.

— Não seja tolo, estou velha demais para isso. – Respondeu e gargalhou em seguida.

— O que foi? Não consegue, não é? – Ernou conhecia sua parceira o suficiente para saber que ela não dispensava um desafio.
Naquela noite Ernou e Sirse dançaram como há muito não faziam, não haviam preocupações ou problemas para resolver, apenas a musica animada e aquele lugar. Apenas eles eram importantes.

A lua cheia estava em seu ápice, estava tão grande quanto poderia estar, sua luz prateada iluminava as planícies, vales, colinas e florestas da região. Os Cefirs a saudavam com musica e ofereciam suas melhores provisões a mãe natureza, assim como ela fizera por eles outrora.

Sentado sozinho sobre um muro que dividia duas choupanas próximas a grande fogueira, Nefarsius observava todas aquelas pessoas se aproximarem do fogaréu e lançarem seus alimentos nas chamas ao ritmo da musica de forma ritualística.

— Um desperdício. – Foi o que pensou. – Um grande desperdício.
Até a noite anterior sua família não sabia se teria o que jantar. Mas seu pai achava que o dia do ritual merecia um esforço a mais. Ele o arrastou naquela manha para uma caçada incessante na floresta ao norte em busca de uma oferenda aceitável. Mesmo sabendo que não conseguiria muita coisa, pois era uma péssima época para caça naquela região. Para felicidade de Ernou, findaram encontrando algumas lebres.

— Todo aquele trabalho por isso. Apenas para queimar aqui. – Berrou em pensamentos.

De repente ele sentiu uma pedrinha atingir sua testa, assustado, pôs a mão onde fora atingido e olhou em volta. Logo viu um grupo composto por quatro rapazes se aproximar.

— Que surpresa, ele estava sonhando acordado de novo. – Disse aquele que vinha na frente dos outros. – O que seu pai ofereceu a provedora? Você? Provavelmente ela o cuspiria de volta. – A piada arrancou gargalhadas dos outros três.

Aquele era Getiope, atormentava a vida de Nefarsius desde a infância. Era mais novo que ele, mas já era disputado pelas mulheres da tribo. Ele era tudo o que Nefarsius não era. Bom caçador, bom guerreiro e forte. Seus olhos verdes e cabelos escuros, além de uma barba que preenchia a mandíbula atraia a atenção das mulheres e ainda tinha um pouco de influencia na tribo, essa ultima característica devido a ser filho do atual líder dos Cefirs.

O grupo provavelmente se aproximou apenas para humilhar Nefarsius, pois já lhe davam as costas para sair. Nesse momento a barreira que continha a ira acumulada dele se rompeu e tudo em que pensava era vingança. Um combate seria burrice. Nefarsius tinha uma estatura mediana, sua massa corpórea com certeza não era de músculos, podiase dizer que possuía um corpo comum para um homem de meia idade que não trabalhava. Eram quatro homens fortes ali, então Nefarsius usou o que conhecia.

— Que tal voltar para perto de seus sábios hipócritas e sua divindade fajuta? Crianças idiotas. – Nefarsius sabia o quanto Getiope prezava sua cultura e não pensou duas vezes em usar isso a seu favor.

— O que foi que você disse?! – Esbravejou Getiope, enquanto olhava para o blasfemo.

— Isso mesmo. Não sou idiota para acreditar que choveu num dia qualquer apenas porque seus velhos passaram fome. Muito menos para acreditar que tostar comida no fogo pra uma divindade que vocês sequer sabem se existe vai servir para algo além de desperdiçar alimento para quem realmente precisa! – Disse por fim.
Nefarsius podia escutar cada batimento do seu coração em alto e bom som, enquanto via o rosto de Getiope corar de raiva e uma veia saltar de sua testa.

Ernou e Sirse ainda dançavam quando escutaram algumas poucas vozes alteradas no centro da aldeia, mais especificamente gritos, e algumas outras pessoas correndo naquela direção. Os dois não pensaram muito e fizeram o mesmo. Quanto mais se aproximavam do foco da confusão mais altas as vozes podiam ser ouvidas, até que finalmente conseguiram discernir a frase: “Ele é um blasfemo?”.

Quando chegaram ao centro viram um caos instaurado que começava do outro lado da grande fogueira, vendo aquilo Ernou soltou a mão de Sirse e correu naquela direção o mais rápido que pôde. Pouco antes de alcançar a multidão ele ouviu uma voz familiar.

— Saiam de cima dele! – Berrava a voz.
Depois uma moça foi jogada para fora do montante de gente. No exato momento que Ernou viu que era Lunia ele só pensou no pior. Se embrenhando entre as pessoas, conseguiu chegar ao foco do tumulto. Nefarsius estava no chão e por cima dele Getiope o socava, enquanto de tempo em tempo um de seus três amigos chutavam-no. Algumas das pessoas em volta tentavam puxar os rapazes da confusão, outras agitadas, apenas chamavam Nefarsius de blasfemo aos berros.

Vendo aquela cena Ernou avançou para cima de Getiope e lhe socou a nuca, deixando-o inconsciente. Assim que viram seu amigo cair desacordado no chão os outros três rapazes partiram para cima de Ernou sem fazer distinção de idade. A seção de espancamento terminou cinco segundos depois, quando o líder da tribo, Zacar, apareceu para dispersar a multidão.

Zacar era um homem pardo, assim como a maioria dos Cefirs, tinha o cabelo e a barba raspados. Logo abaixo do cotovelo esquerdo havia um suporte de madeira substituindo o braço que perdera em batalha, o suporte tinha a ponta cuidadosamente arredondada para não ferir.

Quando todos pararam o que faziam e se afastaram Nefarsius se levantou com dificuldade. Em seguida um grito que ecoou pelas ruelas da aldeia assustou a todos. Era Sirse, que olhava seu companheiro estirado sobre o chão com os olhos abertos. Sem respirar. Todos se calaram diante da cena.

Ernou tinha idade bastante avançada e não tinha a menor condição física de entrar numa briga de verdade, mas não havia sido a seção de espancamentos que o matara. Seu coração havia feito isso pouco antes do primeiro soco, quando parou de funcionar. Um infarto causado pelo estresse do momento dera fim a sua vida.

— Não queremos um blasfemo aqui. – Foi o que o líder da tribo disse.

O mundo de Nefarsius ruía em frente a seus olhos. De repente perdeu o pai e em seguida estava para ser expulso da tribo. O ocorrido no final do ritual havia esfriado a alegria do povo na aldeia, as famílias restantes ofereciam seus alimentos à divindade, sem musica e sem dança. As fogueiras já haviam sido apagadas. A escuridão teria tomado conta, não fosse a luz do luar.

Sirse chorava sobre o corpo do companheiro enquanto outras pessoas faziam os preparativos para a tradicional cremação do corpo. Na choupana do líder dos Cefirs, Nefarsius era avisado de sua punição.

— Meu filho me contou o que você disse. Nós não aceitamos blasfêmia. – Disse ele olhando nos olhos de Nefarsius seriamente. – Jamais pensei que algo assim fosse ser dito por um dos nossos. Quando um inimigo faz isso nós o punimos com a morte, mas um dos nossos... – Disse Zacar.

Zacar era o líder da tribo há pelo menos dez anos. No conflito entre as tribos Cefir e Galdeia, o mesmo no qual o pai de Lunia faleceu, Zacar liderava seus conterrâneos no campo de batalha lado a lado ao seu grande amigo Vanias, que também morrera na época. A maior de todas as perdas foi a vida do antigo líder dos Cefirs, com mais de cinquenta anos, ele era um homem sábio e um grande guerreiro, característica que o levou a morte. A tribo não teve tempo de ficar de luto, a escolha de um novo líder não poderia esperar. Os Sábios Cefirs acompanharam de longe o transcorrer do conflito com os Galdeses e viram em Vanias o espirito de liderança necessário para guiar seu povo. Entretanto com a morte do principal candidato eles partiram para a segunda opção, Zacar. A honra que Zacar sentiu ao ser escolhido desapareceu de seu semblante ao saber que seu grande amigo é quem deveria estar em seu lugar. Aquela era uma ferida que nunca se fechara para ele, desde então sempre tentava provar seu valor para a tribo, pensava em seu povo vinte e quatro horas por dia. Mas em contraposição a dedicação a sua família era zero, mesmo após a morte de sua parceira no conflito que o colocara como líder.

A choupana em que estavam não era muito grande, apenas o suficiente para atender as necessidades de um líder. Havia um cômodo grande para reuniões, onde no centro se tinha uma mesa de madeira sólida com poucas cadeiras e, para proteger a privacidade, havia uma porta também de madeira sólida. O local onde ficava a fogueira da casa era certamente maior se comparado com a casa de Nefarsius, além de ter mais ornamentos nas paredes, assim como em todo aquele lar. Em um pequeno salão repleto por tapeçarias que continham símbolos, Zacar andava de um lado para o outro no centro, sentado no chão de terra batida com as pernas cruzadas estava Nefarsius que encarava a todos. Do outro lado estavam em pé dois dos Sábios mais velhos da aldeia.

Os Sábios sempre tiveram importância vital nas épocas mais importantes da história dos Cefirs, isso por serem a ponte entre o povo e a divindade a quem adoravam. Eles rogavam pela ajuda da mãe natureza nos tempos de dificuldade e relembravam as pessoas de agradecê-la nos tempos de fartura. Não existia um número máximo de Sábios na tribo, em certas épocas houveram muitos em outras houveram poucos. De toda forma, eles precisavam existir por causa de sua importância espiritual. Sempre que os Sábios enxergavam potencial em um homem eles o convidavam para ser ensinado, mas apenas após cinquenta anos aquele homem teria experiência suficiente para agir. Claro que o convite poderia ser recusado, desde que ainda houvessem Sábios “jovens” para manter viva a cultura espiritual dos Cefirs.

— Expurgue-o da tribo. Deixe que vague pelas terras. A mãe natureza o punirá da melhor forma. – Disse o mais velho dos Sábios.
Nefarsius olhou para o velho com desprezo. Ele sequer pensara em contra argumentar, em seu intimo tinha a certeza de que aquele povo não lhe daria ouvidos, talvez até piorasse a situação. Por fim Zacar concordou com o sábio e a punição foi dada. Zacar concordaria seja lá qual fosse a punição, afinal estava sempre tentando mostrar que era um líder digno. Então agradar aqueles homens era quase uma obrigação, pois eles eram tidos como os mais importantes na tribo, a linha de contato com a divindade.

Uma chuva suave banhava a região dos Cefirs naquela fria manhã. O povo na aldeia acordava para cumprir suas funções. Cada um ali tinha noção de para onde ir e o que tinha que fazer para manter as coisas funcionando na aldeia. Cada um, exceto Sirse e Nefarsius. Apenas seu filho fora expulso, mas não havia mais nada naquele lugar para Sirse, além disso, que mãe abandonaria o próprio filho nessa situação? Os dois caminharam entre as choupanas sob os olhares curiosos das pessoas, entre elas, Lunia observava aquele a quem tanto amava sofrer sem poder receber consolo algum, dessa vez não havia nada que ela pudesse fazer. Tudo acontecera tão rápido. Mãe e filho rumaram para a saída da aldeia, carregando as poucas coisas que tinham, seguindo sem destino final. Não sabiam para onde ir, não sabiam o que fazer. Agora estavam por conta própria.

Por quilômetros os dois andaram sem destino, não havia ninguém no comando, eles apenas caminhavam. Transpassaram as planícies que circundavam a aldeia até alcançarem as florestas mais densas. De tempos em tempos paravam para descansar e comer. Sirse fazia a fogueira e Nefarsius fazia a única coisa que aprendera sobre caça com o pai: caçar Kakapos. Kakapos eram aves que não voavam bem e eram bastante burras, viviam em abundancia nas terras Cefirs mais afastadas. Infelizmente, para os dois, aquela era uma época de Kakapos magros.

Mãe e filho permaneceram calados na maior parte do tempo da viagem, não falaram sobre a morte de Ernou ou a blasfêmia que gerou a expulsão de Nefarsius. Entretanto, o olhar de Sirse já dizia tudo. Ela sentia apenas dor. Seu filho, apenas culpa. A única coisa que Nefarsius conseguia pensar era em como fora idiota em não ter ficado calado frente as provocações de Getiope. Talvez nada pelo que passava tivesse de acontecer. Ou talvez tivesse.

Já haviam se passado três meses desde a expulsão da tribo, Sirse e Nefarsius caminhavam abrindo caminho pela mata fechada em busca de uma clareira para passar a noite, contudo, findaram achando algo muito melhor e inesperado.

Com uma lamina rustica Nefarsius cortou algumas folhas a sua frente, revelando uma choupana abandonada. A mata já havia a dominado, plantas cresciam se moldando a madeira, partes do teto haviam há muito desabado, abrindo caminho para a agua regar a vida que crescia ali dentro. Alguns feixes de luz solares transpassavam entre as folhas das arvores mais altas e iluminavam o ambiente. Seria um bom lugar para passar a noite.

Nefarsius olhou para sua mãe e de volta para o local largado naquela imensa floresta, só então seguiu com cautela até a porta repleta de musgo, assim como as paredes. Quando abriu a porta ele pôde ver como toda a natureza havia se apropriado dali. Ele caminhou um pouco pelos cômodos, descobrindo o ambiente, quando voltou à entrada encontrou Sirse com a mão sobre uma velha cadeira de madeira dominada por poeira.

— Foi aqui que encontramos você. Lembro-me perfeitamente. – Disse ela sem tirar os olhos do objeto. Nefarsius ficou apenas a observando. – Essa cadeira tinha um apoio que impedia sua queda. Não sabíamos quem tinha feito ou onde estava, mas sabíamos que você tinha fome, seu choro deixava isso claro para nós. Estávamos em uma caçada sem sucesso quando ouvimos você. – Continuou falando enquanto percorria o resto da mobília com a mão. Nefarsius já havia se sentado perto das plantas que cresciam dentro da casa, apenas a escutava. Ele sabia da história, mas nunca estivera ali. – Seu pai procurou por alguém por dois dias inteiros. Quando desistiu voltamos para a aldeia com você. – Uma lagrima escorria em seu rosto – Eu sabia que você não era como as outras crianças desde cedo. – Ela se aproximou do filho e com dificuldade se ajoelhou ao seu lado. – Ainda sinto cada segundo da ausência dele... Mas eu sei que a culpa não foi sua.

Nefarsius olhou em seus olhos, tentando distinguir uma mentira, mas não conseguiu.

— Você é o que você é. Eu acredito que tudo tem um proposito, querido. Eu acredito que você tem um objetivo maior do que todos nós. Nunca perdi a esperança de que encontraria seu próprio caminho e espero que você também nunca perca... – Um abraço aconchegante pôs fim a tantos dias de silencio doloroso e deu o pontapé inicial para seguirem em frente.

Poucos meses depois, após continuarem seu caminho para lugar nenhum, a morte alcançou Sirse, tão natural quanto nascer. Nefarsius, mesmo não valorizando as tradições da tribo, decidiu obedece-las em respeito a sua mãe, pois era naquilo que ela acreditava.

Então ele tentou fazer com o corpo de sua mãe o mesmo que fizeram com o de seu pai. Reuniu o maior numero de galhos que pôde e montou uma espécie de cama sobre uma rocha em meio a uma clareira que encontrara. Nefarsius colocou o corpo cada vez mais frio de Sirse sobre a cama de galhos com os braços cruzados e recitou algumas palavras que ouvira os Sábios Cefirs dizerem em situações como aquelas.

O Sol ainda nem começara a se pôr quando as chamas se espalharam pelos galhos, o fogo inundava as arvores próximas com uma luz dourada e tremulante. Nefarsius tinha certeza de que não aguentaria ver aquele processo até o final, então se distanciou e esperou.

Apenas após algumas poucas horas ele retornou, mas o resultado que encontrou o fizera cair sobre seus joelhos e levar as mãos aos olhos em lágrimas. Naquele momento ele chorou como uma criança ao ver o corpo de sua mãe em carne viva. Ele não percebera, mas os galhos que recolhera pela floresta estavam úmidos demais para queimar bem, então as chamas haviam se extinguido rápido demais, não completando a cremação.

A sensação de inutilidade o abateu com severidade e tudo em que conseguia pensar era em como sua mãe estava errada sobre ele e tudo mais, nem uma despedida digna ele foi capaz de dar para ela. Naquela mesma noite Nefarsius cavou um buraco perto da clareira e enterrou sua mãe. Sobre o tumulo de Sirse ele continuou a chorar até adormecer.

Pela manhã ele caminhava sem rumo pela floresta, ainda embriagado pela tristeza, quando se viu na beira de um penhasco com vista clara para a praia. Olhou para baixo e pensou em saltar enquanto sentia a dor dos últimos acontecimentos, mas algo no horizonte chamou sua atenção para o mar. O dia estava claro, o céu quase sem nuvens e sobre o oceano azul um ponto escuro se destacava.

 


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Nefarsius" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.