Por trás escrita por Rose


Capítulo 1
Único




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Éramos vizinhos. Mas nunca nos vimos.

Nunca nos falamos, sequer o notei. A única forma de perceber que havia alguém era a janela pequenina, na parede de madeira azul mal pintada, com um pedaço de tecido verde surrado servindo-lhe de cortina.

Se é que havia alguém.

Ficava de frente para o meu banheiro, eu podia ver através de uma escotilha. Pelo o que dava para enxergar, o cômodo por trás da janela não era dos mais limpos. Vassouras espalhadas, móveis empoeirados e paredes que descascavam.

Peguei-me imaginando.

Quem era ele? Será que tinha família? Amigos? Seria ele solitário? Seria mesmo ele? Ou ela? 

Qual seria a sua história? Seus planos?

Provavelmente já o vi por aí, inconsciente, no meio da rua. Talvez ele me conheça sem que eu ao menos faça ideia. Seria o pai da menininha de cabelos louros cacheados do 503? Ou o moço quieto do 501? A perua do 202? A intelectual do 406?

Dei-me conta de uma coisa. Eu não sabia seus nomes.

Por que nunca me interessei em saber? Qual deles é o meu sujeito anônimo?

Passo as mãos entre os meus fios de cabelos, tão finos quanto os capilares que conduziam o sangue em meu corpo, tentando compreender pelo menos um dos milhares de pensamentos que embaralhavam-se em um turbilhão dentro da minha cabeça.

 Sangue.

Estaria ele... morto? Talvez morto... sem saber?

Haveria viajado, para passar o feriado fora? Haveria ficado com uma porção de pipocas, refrigerante e a televisão ligada?

Alguém se lembrava dele? Ele se lembrava de alguém?

Teria alguém? Esse alguém o teria também?

Suspiro.

Resolvo dar uma breve olhada no relógio na parede da cozinha. Dez e meia. Preciso ir, marquei com alguns colegas da faculdade no dia anterior, iremos almoçar e estudar juntos para uma prova importante.

Continuaremos juntos?

Pego-me, quase como uma sonâmbula, caminhando pelo corredor que, àquela altura, parecia sem fim. Entro no banheiro e ponho-me na ponta dos pés.

Olho por trás da janela. Mas não há ninguém.

A campainha toca e passo correndo feito um raio, já em frente à porta. É só o correio. Bobagem a minha, quem eu esperava que fosse?

Ele.

Ela.

Você, talvez.

Provavelmente todos esses pensamentos me estão subindo à cabeça...

— Correspondência para a senhorita...

Mal ouço o rapaz de voz fina e rosto oleoso pronunciar meu nome. Analiso seu cabelo liso e termino, por acidente, reparando numa pequena cicatriz perto de sua orelha.

Como a conseguiu?

— Senhorita... - Ele tosse, parecendo constrangido. Enrubesço, mas simplesmente pego a caneta que ele esticava com sua mão morna e trêmula. Assino aqui e ali, e num instante estou sozinha novamente. Com um pacote mediano em mãos.

Avanço para o sofá e sento-me de pernas cruzadas, colocando entre elas o caixote, com o maior cuidado.

É claro. Como pude esquecer?

Hoje é meu aniversário, assim como o de dois anos que não moro mais em casa. Não visito meus pais há um bom tempo. Normal que me mandem uma lembrança.

Lembrança da infância.

Lembrança deles.

Quais seriam as tradições do meu sujeito indeterminado? Implícito? Inexistente?

Gostaria de saber enquanto continuo abraçada com o pacote, as lágrimas ameaçando deslizar por minhas bochechas e aterrissarem suavemente no chão. Estou de pijama. Mal tomei café.

Olho novamente para o relógio, do ponto que estou posso vê-lo claramente.

Onze horas e dez minutos.

Quanto tempo passei imersa dentro de mim?

Então recordo-me de mais uma coisa. Estou com pressa. Ou deveria estar.

Rapidamente guardo a caixa na minha estante, agora preenchida por livros, apostilas e uma papelada imensa de trabalhos e mais trabalhos que fiz ou ficaram por fazer. Posso abri-la mais tarde.

Enquanto visto-me, mais algo me ocorre. Coloco as mãos, uma de cada lado, sobre o espelho que preguei na porta do guarda-roupa há uma semana. Encaro-me no fundo dos olhos. Tento me lembrar de quem já fui e adivinhar quem serei.

 E então sorrio. Não sei exatamente o porquê. Rio, e o som da minha gargalhada me parece tão puro, mas tão amargo, como não mais me lembrava.

Sou tola.

Posso ver por trás da janela dos meus olhos.

Sou esperta.

Vejo por trás da mureta da clareza.

Passei a manhã inteira tentando adivinhar quem era o vizinho misterioso do outro lado do prédio e, naquele momento, fitando aqueles -meus- olhos, eu percebi.

Sei quem ele é.

Sou eu.

Sou eu, refletida por trás da sua janela.

 


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