Dragões Dourados escrita por Gwen Sweetlux


Capítulo 8
Capítulo 8: Dois pesos, duas medidas/ Capítulo 9 – As nuvens negras


Notas iniciais do capítulo

Corrigindo o erro anterior, aqui estarão os dois capítulos condensados em um só post. Espero que esclareça o "rombo" deixado anteriormente. Desculpem o equívoco.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/672535/chapter/8

 

8- Dois pesos, duas medidas

 

            Shiryu caminhava cansado, porém muito satisfeito. Encontrara no ensino uma fonte grata de felicidade. Agora compreendia e admirava ainda mais seu Mestre. Poder transmitir aquilo que sabia e ajudar outros a vencerem seus medos, conquistarem seus melhores potenciais e passar adiante os valores de um bom Cavaleiro era um prazer inestimável.

            Mesmo pensativo, conseguiu ouvir passos leves e apressados vindos em sua direção. Quem quer que fosse, não estava tendo qualquer cuidado em ocultar sua chegada. A pessoa tinha a respiração desesperada e irregular. Poderia estar furiosa ou com muito medo.

            Concentrando seu Cosmo, ele pôde sentir. Já conhecia aquela presença. Conhecia como jamais conhecera algo na vida.

            - Shiryu! – uma voz feminina gritou, ainda sem aparecer em meio à vasta folhagem das montanhas. Ele estava se encaminhando para casa, portanto, num ponto alto da montanha.

            - Estou aqui! – disse, mas sabia que ela o encontraria, não importava onde estivesse.

            Selene apareceu dentre as árvores, as roupas em frangalhos e diversas escoriações pelo corpo. Quando o viu, pareceu aliviada e correu ainda mais rápido. Sem pensar em mais nada, ela jogou os braços sobre ele, quase apagando de exaustão. Usara muito de seu Cosmo. Shiryu a abraçou, surpreso. Com cuidado, foi baixando o corpo de ambos abraçados até sentarem no chão coberto por relva.

            - Selene, o que aconteceu? – perguntou, afastando seu cabelo claro do rosto e acariciando seus ombros, tentando trazê-la de volta.

            - Vou lhe mostrar. – ela puxou o rosto dele para si, recostando suas testas. Através de seus Cosmos interligados, Shiryu contemplou tudo o que se passara. A revelação de Shunrei, a armadura e traição de Dimitri e a derrota dele pelas mãos de Selene.

            - Não posso acreditar nisso. Shunrei... Mas, como? – ele disse, ainda próximo do rosto de Selene. A tristeza tomando conta de todo seu ser. Crescera com Shunrei e a tinha como uma irmã muito querida.

            - Desculpe por trazer a dor até você, Shiryu. Mas, como viu, devemos esperar por mais aparições de Shunrei e aliados de Zeus. – ela suspirou, entristecida.

            - Você está bem? – Shiryu passou as mãos por seus braços, sentindo os ferimentos superficiais na pele alva de Selene, ainda mais preocupado.

            - Estou. Fisicamente, pelo menos. – ela encarou os olhos verde-água do Cavaleiro. – Shunrei me odeia. Acha que parte do motivo para atacar Rozan é a minha presença aqui. Talvez eu deva partir, Shiryu. Quem sabe minha ausência não aplaque a ira dela. – Selene pronunciou o que talvez foram as palavras mais difíceis de sua vida.

            - Se partir, levará uma parte minha. Jamais poderia viver incompleto, sabe disso. Mas, não poderia prendê-la aqui, aos meus problemas. No fundo, Shunrei não tem ódio de você, mas de mim, por não ter podido dar a ela o que merecia, depois de tanta dedicação e devoção. – ele falou, segurando as mãos dela em seu colo.

            - Isso nos coloca em um impasse, não é mesmo? Também definharia incompleta sem você. – ela olhou para suas mãos dadas e desejou que nunca se soltassem.

            Shiryu curvou-se e a beijou. Não havia nada que pudesse ser dito que traduzisse a emoção que explodia dentro dele. Selene sentia o mesmo.

***

            Não se passaram muitos dias após o triste episódio entre Selene e Shunrei. O acampamento seguia, em uma calmaria até então pouco comum. Além de Hayato, outras armaduras foram concedidas a bons aprendizes. Eles não fizeram alarde pelas bênçãos recebidas, apenas queriam seguir suas jornadas, agora como Cavaleiros de Atena. As constelações do Cruzeiro do Sul, ou Crux e a de Centauro haviam escolhido seus protegidos. Um deles era um rapaz cujos pais cuidavam de uma pequena igreja ortodoxa nas proximidades do Santuário, chamado Sorah. A Crux o recompensou por seu trabalho árduo treinando sob o olhar atento de Shiryu e dos demais instrutores. O outro, um homem forte e corpulento chamado Quiron, famoso por cuidar dos cavalos do Santuário, antes de serem aniquilados pelos espectros, foi protegido pelo Centauro.

Todas armaduras de Bronze, pensava Shiryu. Toda vez em que pensava que o dourado havia sido extinto do Santuário, uma profunda melancolia o abatia. Não que ele deixaria que seus homens notassem qualquer nota de esmorecimento em seu semblante. Era grato que os céus estivessem olhando por seu pequeno exército, já que um ataque era iminente.

Em uma certa manhã, enquanto todos faziam seu desjejum, Shiryu anunciou no quiosque das refeições:

— Soldados! Não quero alarma-los, porém está chegando a hora em que suas habilidades e caráter serão testados. Esperava que só fossem entrar em combate na volta para o Santuário, mas um inimigo se aproxima e está à espreita. Como puderam perceber Dimitri é aliançado com ele. E, sinto dizer que Shunrei também está envolvida. Caso vejam qualquer um deles, ou alguma atitude suspeita em qualquer um de seus companheiros, quero ser informado imediatamente. Contudo, se não houver meios para isso, quero que estejam prontos para lutar. Hayato, Sorah e Quiron, vocês são Cavaleiros agora. É dever de vocês proteger os demais. Destacarei pontos estratégicos de vigia para cada um. – os Cavaleiros assentiram, os Cosmos queimando e iluminando o teto rústico de madeira do quiosque.

Com um movimento de cabeça, receberam as coordenadas de Shiryu por meio do Cosmo e partiram em uma velocidade inacreditável, deixando suas refeições para trás.

— Os demais devem retomar seus treinamentos programados para hoje, com seus respectivos instrutores. Não haverá lutas sob minha supervisão por agora. Que a sorte esteja conosco. – e saiu.

Shiryu caminhou até uma clareira repleta de flores que pontilhavam o solo de rosa, lilás e verde. Shunrei colhia flores para perfumar a cabana de Dohko ali. Com um suspiro cansado, deixou o corpo cair, sentando pesadamente. Centenas de pétalas se agitaram no ar, caindo sobre ele como uma chuva saudosa. Queria que sua doce amiga surgisse e desfizesse toda aquela loucura que acontecera com Dimitri e Selene. Às vezes, o desejo de deixar as batalhas e levar uma vida pacata o acometia e Shiryu havia compartilhado seus anseios com Shunrei em algumas ocasiões. Não imaginava que fazia mal a ela partilhando aqueles pensamentos. Ele era um guerreiro e uma vida comum nunca lhe fora permitida, desde a infância.

Uma flor pousou em sua palma e o Dragão ficou a observa-la. Tão delicados e misteriosos eram os adornos da natureza. Mesmo as Cachoeiras podiam saciar a sede e aliviar um guerreiro cansado, mas suas fortes águas poderiam tragar a vida de algum desatento em se aventurasse por suas águas.

Algo passou correndo pelo céu. Algo como uma estrela cadente, porém retinindo um brilho claramente dourado. Shiryu se ergueu, levantando uma profusão de flores e folhas consigo. Começou a correr em direção a Grande Cachoeira, lugar provável do pouso do corpo celeste.

Embrenhando-se pela floresta, não se importava com os cortes que os galhos e espinhos faziam em seus braços. Vestia sua armadura e ela também o impulsionava na direção onde o Mestre Ancião costumava repousar.

Logo, seus passos não eram os únicos que se apressavam para a Cachoeira. Os passos leves de Selene o acompanhavam. Ela sentiu o mesmo que seu companheiro e estava aflita por mais uma surpresa. Já tinha recebido muitas informações novas e ruins vindas de seus mais recentes inimigos.

Derrapando e deslizando sobre o chão escorregadio da Grande Pedra eles viram estarrecidos: repousava uma Caixa de Pandora dourada. Não era apenas uma armadura, era a Armadura de Libra. A armadura do Mestre Dohko. Ela reverberava ouro e chamava por seu Cavaleiro.

A Armadura de Dragão deixou o corpo de Shiryu e desceu novamente para o fundo da Cachoeira. Ele apenas assistia aquela sucessão de acontecimentos, sem compreender se tratava-se de realidade ou ilusão.

— Shiryu... Acho que a Armadura de Libra está lhe chamando. – Selene falou, o olhar nervoso indo da Caixa para o Cavaleiro.

— Sim, mas aparentemente não é somente a mim que ela chama. – Shiryu constatou, com cenho franzido e a confusão anuviando sua mente.

— Como assim? É natural que você seja escolhido para herdar a armadura do Mestre. Vá até ela! – Selene disse, tentando convence-lo de algo que nem ela mesma tinha certeza.

— Não finja que não está sentindo também. Sabe que não pode mentir para mim, mesmo que queira. – ele olhou para ela, sério e com um tom baixo, indicando um alerta implícito em suas palavras.

— Devo estar sentindo o mesmo que você, já que nossos Cosmos se interligaram. É a única explicação plausível. – ela balbuciou, temerosa.

— Já se perguntou como pode ter um Cosmo tão poderoso e não ter sido escolhida por nenhuma constelação, Selene? Talvez a Balança tenha pendido para você. – ele ponderava.

— Não farei isso, Shiryu. Jamais tomaria parte de seu legado. Diga o que quiser, a Armadura pertence ao discípulo de Dohko. – ela baixou os braços junto ao corpo e virou-se para sair.

— Quiron. – Shiryu chamou com seu Cosmo. Em alguns instantes, o Cavaleiro de Centauro estava diante dele.

— Mestre. – respondeu.

— Quero que lute comigo. Acha que está preparado? – interrogou seu pupilo.

— Será uma grande honra, senhor. – o gigante respondeu. Com um salto que respigou água em várias direções, Quiron posicionou-se no lago formado pelo fluxo da Cachoeira e aguardou.

— Vejamos, Selene se a Armadura irá me acompanhar em batalha. – falou, olhando para a companheira.

— Não tenho dúvidas quanto a isso. Não machuque Quiron, gosto dele. – brincou Selene.

Ele apenas sorriu de volta. Selene aprendera a amar aquele sorriso como uma preciosidade. Era comum ver Shiryu preocupado, sempre carregando o peso de muitas responsabilidades e de seu estrito código de honra emoldurando sua expressão. Quando em raros momentos como aquele, seu rosto de abria em um belo sorriso, todo o mal do mundo parecia desaparecer.

Shiryu saltou para o lago, pousando com destreza sobre a superfície da água. Ele dominava as águas de Rozan como um potro treinado. Estava com sua roupa lavanda e não contava com qualquer proteção contra o imenso Quiron e sua armadura de Centauro.

A armadura de bronze era belíssima. Possuía o elmo em formato medieval, encobrindo o rosto do Cavaleiro, exceto seus olhos, o peitoral demarcava o tórax e era adornado por duas figuras de centauros se enfrentando. A parte inferior lembrava as patas de um cavalo. As perneiras eram delgadas, as joelheiras eram arredondadas e protuberantes, enquanto as caneleiras e as botas se assemelhavam as patas de um cavalo. Era um conjunto excêntrico, mas imponente. O metal era de um bronze escuro, quase como que envelhecido. Quiron se movimentava orgulhoso, se alongando e preparando-se para enfrentar seu mentor.

— Sairei molhado deste embate, Quiron. Faça valer a pena. – falou, em tom risonho, mesmo que seu interior se agitasse em um turbilhão. Poderia ter sido escolhido pela Armadura de Libra ou rejeitado pela Armadura de Dragão. Como poderia saber? Restava fazer o que lhe era tão natural quanto respirar: lutar.

— Sim, senhor. Darei meu melhor. – Quiron respondeu, sem conseguir evitar dar uma gargalhada. Shiryu lembrou-se de Aldebaran, o Grande Touro e de como ele costumava rir de maneira contagiante, mesmo com todo seu tamanho e força.

— Venha, lhe darei a honra de desferir o primeiro golpe. – Shiryu assumiu sua postura de luta e convocou o aprendiz para o combate.

Cavalgada Sagrada!— Quiron gritou, investindo como um alazão gigantesco contra Shiryu. O Dragão nas costas do tutor estava mais nítido do que nunca e seu Cosmo o recobria. Com um simples passo, desviou do golpe de Quiron, fazendo-o ir de encontro a uma rocha próxima, enterrando sua cabeça enquanto provocava uma série de rachaduras.

Shiryu esperou alguns minutos para que ele conseguisse se soltar. Jamais atacaria um oponente pelas costas e ainda menos um adversário preso. Quiron finalmente caiu de costas, o elmo deixado enfincado na montanha.

Desnorteado, ele agitava os braços para não afundar na água do lago. Ergueu-se da melhor maneira que conseguiu. Colocando-se em postura de luta, sacudiu a cabeça, esperando que sua visão se normalizasse.

— Olhos abertos, Centauro. Seus movimentos estão muito lentos. Mal irei me mover e farei com que erre seu próximo golpe. Venha. – desafiou Shiryu, arregaçando as mangas lavanda de seu traje.

Quiron tinha uma natureza leal, mas seu sangue era quente. Ao ser provocado tão abertamente, resolveu dar uma resposta à altura. Queimou seu Cosmo e se preparou para o golpe mais forte que tinha aprendido: a Flecha do Centauro. Era necessária perícia e precisão, como a de um arqueiro a disparar uma seta. Teria que ser certeiro se quisesse mostrar suas habilidades ao Mestre.

Shiryu estava parado, a brisa e as gotículas de água da Cachoeira o cobrindo e agitando suas vestes e cabelos. Seu olhar parecia cansado e continha algo mais, algo indecifrável para seu discípulo.

— Muito bem. Prepare-se. – falou, arrastando os pés como um animal que se prepara para uma cavalgada. – Flecha do Centauro! – Quiron mirou o centro do corpo de Shiryu e desferiu seu golpe. Aquilo consumiria completamente suas forças, então era melhor que funcionasse. Quando percebeu, seus punhos estavam socando uma parede de água. Havia passado direto por Shiryu e estava atacando a Grande Cachoeira atrás dele. A quantidade massiva de água que caía sobre sua cabeça quase o afogou, fazendo-o recuar assustado.

— Fui lento, novamente. Peço perdão, senhor. – o Centauro falou, embora tivesse um sorriso no rosto. Nunca aprendera tanto em tão pouco tempo. Sentia gratidão pelo Dragão.

— É três vezes mais rápido do que eu com seu tempo de treinamento, Quiron. Deve se orgulhar. Está dispensado. Infelizmente, nossa batalha não surtiu os efeitos que esperava. – Shiryu tocou o aluno, bem mais alto que ele, no ombro e seguiu de volta para a Grande Pedra onde Selene o esperava com os lábios apertados.

— Pelo visto, fui mesmo rejeitado pelo Dragão e pela Balança. Devo ficar aqui e ensinar aqueles que me forem designados. – falou, com tristeza na voz.

— Shiryu... – Selene começou.

— Esta mulher conseguiu plantar tanta dúvida e confusão em seu coração, Shiryu? Daria a ela a armadura de nosso Mestre? – uma voz gritou, vinda de cima.

— Shunrei? É você? Mostre-se! – Shiryu disse, em uma mistura de súplica e exigência.

Logo, uma massa de rochas caiu no centro do lago onde ele acabara de enfrentar Quiron. Dimitri carregava Shunrei nos braços. Ela não tinha mais os cabelos negros trançados, agora estavam soltos e revoltos, adornados com uma espécie de coroa de louros de um metal escurecido. Ao invés de seus trajes sóbrios orientais costumeiros, ela usava uma túnica com amarração no ombro esquerdo, presa por um broche em formato de raio. Provavelmente, o símbolo de Zeus. Seus grandes olhos azuis, antes cheios de bondade estavam injetados e com tons de insanidade. Estavam exatamente como os de Dimitri, o mesmo tom de azul, o mesmo ódio ardendo por ele.

— Shunrei! Diga-me que retornou para casa. Diga-me que tudo o que fez com Selene foi fruto de alguma manipulação. Se Zeus ou quem for a estiver mantendo refém, lutarei até o fim de meus dias para liberta-la! – a fala do Cavaleiro estava embargada. Mesmo que não estivesse em seu estado natural, ver Shunrei de volta ainda o emocionava.

— Vamos, Shunrei. Pare com essa tolice, se Zeus desejasse uma guerra justa contra Atena não mandaria um Cavaleiro solitário e uma moça órfã. Estão sendo usados como marionetes para desarticular o exército aqui em Rozan e evitar a reconstrução do Santuário. – Selene interviu, se arrependendo em seguida por abrir a boca. Certamente, sua presença só faria o ódio de Dimitri e sua aliada aumentarem ainda mais.

— Shiryu. Eu vou liberta-lo desta vez. Chega de pôr sua vida em risco por Atena, por companheiros que sequer lhe agradecem após tanto esforço e sofrimento e, basta dos feitiços desta mulher distorcerem seus pensamentos. Venha comigo até Zeus. Ele é o deus dos céus e o maior dentre todos. Atena não tem feito nada pela humanidade e deixou que o mundo se degradasse até níveis insuportáveis. Pare, por favor, de jogar sua preciosa existência fora por uma causa perdida. – Shunrei falou, descendo do colo de Dimitri e pousando os pés sobre a superfície da água. Zeus deveria ter dado algum poder a ela, não sem ter pego algo em troca.

— Shunrei... Se o Mestre a visse falando assim, teria o coração partido pela dor. Como pôde trair Atena e tudo o que aprendemos desde crianças por promessas vazias de uma entidade que mal conhecemos? Eu lhe peço que reflita no que está fazendo, minha amiga. – falou, procurando apaziguar a situação.

— Sim... Sempre fui sua amiga. Se permanecesse aqui, e Hades o tivesse destruído, ao menos poderia ter me contentado por ter sido sua amiga, não é mesmo? E, caso tivesse a imensa sorte que essa mulher que se põe ao seu lado teve, de vê-lo retornar vivo, ainda seria sua mais estimada amiga, Shiryu. – ela dizia como se houvesse peçonha em seus lábios.

— Não compreendo o que diz. Não há qualquer razão para ter perdido sua fé e procurado aliar-se ao mal, Shunrei. Sempre voltei e muitas vezes graças as suas preces. O que a revoltou a tal ponto? – Shiryu estava aflito. Não gostava de ser injusto e, saber que havia ferido alguém que amava, o torturava ainda mais.

— Vocês, Cavaleiros de Atena nunca compreendem! A única coisa que entendem é a morte. A única coisa que amam é a morte. Não parará, Shiryu, até ter morrido e poder ostentar uma menção honrosa em seu túnel. Nosso Mestre dedicou quase trezentos anos para morrer em um muro. E o que Atena fez para salva-lo? Nem ao menos temos um corpo para velar. Sem contar que todos são impedidos de ter uma vida, uma família, sem que o espectro da morte paire sobre suas cabeças a todo instante. – Shunrei bufou, enraivecida.

— Shunrei, não seja tola. Por acaso acha que não sabia do meu destino desde o primeiro dia de treinamento? Me toma por um ingênuo estúpido? Se sua intenção é me salvar daquilo que me define, desista. Sou o que sou e ser Cavaleiro faz parte essencial de mim. Mesmo que minha armadura não me queira mais, lutarei até perder a última gota de sangue. – gritou para ela.

Um clarão dourado se expandiu, abrindo a Caixa de Pandora que continha a Armadura de Libra. Logo, ela estava montada diante de Shiryu e Selene.

— Não! – Shunrei berrou e fez sinal para Dimitri avançar.

Como um cão raivoso, Dimitri voou contra Selene, esmagando-a contra o chão.

— Selene! – Shiryu exclamou, mas sentiu seus membros presos por algo invisível. Ao olhar para baixo, viu que Shunrei tinha os punhos cerrados, como se segurasse algo com força. Zeus tinha lhe concedido forças tele cinéticas e ela as estava usando para contê-lo enquanto Dimitri matava Selene.

O peso imenso de Dimitri deveria ter quebrado todos os ossos do corpo pequeno de Selene. Mas, ao abrir os olhos depois do choque, viu que o elmo e a couraça da armadura de Libra a revestiam. Sem tempo para entender o que aquilo poderia significar, ela descruzou os braços que havia fechado para proteger o tronco e lançou Dimitri para cima. Movimentando os braços com força e rapidez, ela convocou uma grande quantidade de água da Cachoeira e formou um ciclone aquático. Ele veio rodopiando e varreu o Cavaleiro traidor para longe, fazendo-o cair desacordado em algum lugar no meio da floresta.

Ainda queimando seu Cosmo, ela conjurou o ar fazendo uma ventania envolver Shunrei. Ela foi empurrada em diferentes direções, até que começou a afrouxar suas pequenas, porém determinadas mãos. Vencida e quase sufocada, caiu no lago.

Shiryu se viu livre. Então, a Armadura tomou vida. Os mistérios de Libra eram desconhecidos até mesmo pelos mais antigos do Santuário. A única armadura a possuir armas. A única a marcar seus destinados com desenhos no torso. A única cujo portador poderia julgar os demais companheiros no Santuário. A única ligada a Rozan. A única com duas partes.

Diante dos olhos desacreditados e atônitos de Shiryu e Selene, Libra começou a se desdobrar de maneira nunca antes vista. A Armadura já não era apenas uma. Começou a recobrir Shiryu e terminou de lançar as peças faltantes sobre Selene. As doze armas, em pares, foram distribuídas igualmente entre os dois.

Naquele dia, a verdadeira essência de Libra foi liberta. Dois Cavaleiros deveriam dividi-la e julgar com diferentes pontos de vista sobre as questões do novo mundo, um mundo livre de Hades e seus espectros. Assim, jamais haveria perigo de o juízo de apenas um Cavaleiro ser parcial e a Balança pender para o lado errado.

Os novos Cavaleiros de Libra se entreolhavam, estarrecidos e ofegantes. Mesmo para Shiryu, aquilo era completamente inesperado. Selene sentia uma sensação amedrontadora, porém de grande alívio. Ela possuía um lugar, uma missão, afinal. Tocava seus braços recobertos por ouro, sentia sua capa lavanda tremulando atrás de si. Via um espelho dourado e de cabelos escuros diante dela e parecia que o Universo estava de volta aos eixos novamente. Não bastassem todas as reviravoltas que aconteceram, a Grande Cachoeira reverteu seu fluxo. Ela felicitava Shiryu por sua ascensão e recebia sua outra metade com ansiedade.

Shiryu tomou a mão de Selene e eles observavam as águas claras ascenderem aos céus. Ele sorriu para sua companheira.

— Então, era você. O tempo todo. Por isso, a união de nossos Cosmos. Estávamos destinados a sermos um.  – ele riu, o sorriso que Selene amava. Ela o amava por inteiro, tinha mais ciência e coragem para isso agora. – Eu também. – Shiryu respondeu ao seu pensamento em voz alta. Ela não corou, nem mesmo sentiu qualquer resquício de embaraço. Era como se fosse para ser daquela forma. Ele era dela e ela fora feita para ele. A Balança estava em perfeito equilíbrio.

9 - As nuvens negras

 

Os homens levaram Shunrei imobilizada e a prenderam em uma prisão improvisada. Ela esrava desacordada e assim permaneceu por horas e até mesmo ao dia seguinte. Não havia sinal de Dimitri, os soldados que Shiryu enviou à floresta em seu encalço nada encontraram.

Selene e Shiryu tinham esperanças de que ao acordar, Shunrei despertasse de algum transe, já que aquela mulher que se apresentara a eles não se parecia em nada com a antiga moradora de Rozan. Em seu íntimo, ambos carregavam grande culpa pelo estado em que a moça se encontrava. Shiryu sentia que não havia sido o amigo que ela precisava, que se ausentara mais do que estivera ao seu lado. Selene achava que sua mera presença ali a fizera sentir-se desrespeitada.

Depois do aparecimento de Shunrei, os agora nomeados Cavaleiros de Libra mantiveram-se afastados. Mal conseguiam cruzar olhares sem que a vergonha os esmagasse. Selene aproveitou os momentos de solidão para treinar com sua nova Armadura. Procurava picos afastados, os quais subia com o auxílio dos ventos montanheses que seu Cosmo convocava. Como uma hábil dançarina, ela treinava movimentos de combate contra o ar.

Shiryu seguiu treinando seus companheiros. Não havia vestido a Armadura desde o reencontro com Shunrei. Mais culpa.

O afastamento não fazia bem a ambas as partes. Era como se seus corpos e essências estivessem incompletos, defeituosos e confusos. A melancolia era nítida em seus semblantes, mas os soldados não ousavam questionar, até mesmo Selene, por quem haviam passado a desenvolver maior admiração.

Em uma manhã, quando o sol ainda lançava raios discretos sobre Rozan, a Amazona de Libra resolveu ir até a casa do Mestre. Não queria acordar Shiryu ou Shunrei e assim, ter que encarar um encontro constrangedor. Ela caminhava cuidadosamente, passos leves como plumas. Em uma das saletas da cabana, uma grande janela dava para todo o vale de Rozan e suas magníficas cachoeiras. Selene empurrou as folhas da vidraça com delicadeza. Sentou-se no beiral e fitou o vale, tristonha. A brisa úmida revolvia seus cabelos claros e refrescava sua pele, trazendo ao mesmo tempo alívio e uma ânsia por tempos mais simples.

Entretanto, algo fez seu Cosmo entrar em alerta. Um arrepio percorreu toda sua coluna, fazendo-a estremecer. Algo estava errado, novamente. Com um suspiro, ela abriu os olhos, antes fechados para sentir a paz de Rozan, agora perturbada. Com horror, Selene pode contemplar quando ondas de trevas, escuras como uma noite sem estrelas, avançarem por dentre as rochas, picos e quedas d’água. Todos ainda dormiam e não puderem se preparar para o ataque que recaiu sobre o acampamento, os atalaias que vigiavam certamente não cumpriram suas funções ou foram impedidos de fazê-lo. Logo, gritos foram ouvidos por todos os lados. 

A rapidez com que aquele inimigo sem corpo tomou todo o vale foi impressionante. Selene sentiu quando as trevas subiram pelo morro onde a cabana de Dohko ficava. Começando a reunir seu Cosmo, ela se preparou para enfrentar o desconhecido.

A névoa obscura e violenta finalmente alcançou a janela onde Selene aguardava em posição de luta. Reunindo seu Cosmo, ela levitou envolta por um redemoinho que abalou as estruturas do cômodo e destruiu quase toda a mobília. Antes que pudesse dar algum golpe, a porta já quase arrancada de seus umbrais foi empurrada por Shiryu que despertara graças ao seu Cosmo e ao estrondo que a batalha iminente causara.

— Recue, Selene. É meu dever proteger esta casa e a todos no vale. – disse, a voz transbordando sua fúria em ver o lar de seu Mestre maculado e parcialmente destruído.

— Não! – ela gritou, não aceitando fugir de uma luta tão facilmente.

Shiryu não teve escolha a não ser convocar sua armadura. Sabia que se o fizesse, Selene a vestiria também, o que ajudaria a protege-la também.

A Caixa de Pandora dourada surgiu na sala arruinada, mesmo em meio à ventania da Amazona. Abrindo-se com uma luz faiscante, a Armadura fez a divisão que agora lhe era peculiar. Seis armas para cada Cavaleiro. O corpo esguio de Selene foi revestido de ouro enquanto ela conjurava ventos cada vez mais fortes e as trevas começavam a se aglutinar em formas estranhas diante deles. Shiryu sentiu novamente o Cosmo familiar de Libra vindo em seu auxílio, como em diversas outras ocasiões, mesmo a partilha com Selene tornando sua missão como guerreiro inédita e singular.

Juntando seu Cosmo, Shiryu ouviu as águas de Rozan caindo com mais nitidez do que o usual. Com todo o barulho das paredes ruindo ao seu redor, dos ventos e das travas mutantes, a água ainda se sobressaía dentre a miscelânea de sons. Shiryu começou a gesticular suas posições de batalha, quando viu que gotículas se acumulavam ao seu redor. Água veio, passando por baixo de seus pés coberto de ouro e começando a ergue-lo. Logo, uma onda de líquido cristalino o fazia levitar e o envolvia, pronta ao seu comando. Shiryu e Selene tinham os olhos ardendo no mais vívido tom de verde esmeralda. E as trevas assumiram uma familiar forma humana.

Uma risada se fez ouvir, uma gargalhada repleta de loucura e que entregava uma sede insana de vingança. Dimitri surgiu diante deles, carregado pelas sombras revoltas. Ele encarou a ambos, porém deu a Selene seu melhor olhar malicioso. Nada disse, apenas assentiu com a cabeça, desafiando-os a ataca-lo.

A resposta foi imediata. Agindo como uma única arma bem desenvolvida, Shiryu e Selene não o deixaram esperando. Enquanto ela desferiu o que seria um Dragão Voador repleto de uma lufada violenta de ar, afastando as trevas e desequilibrando Dimitri, Shiryu lançou seu poderoso Cólera do Dragão junto ao peso das Cachoeiras, esmagando o estômago do inimigo. Dimitri fez um beicinho, como se tivesse seus sentimentos feridos. Sua natureza sempre fora zombeteira.

Ele desapareceu na névoa negra, mas os gritos vindo debaixo, do acampamento continuavam. O Cavaleiro de Zeus não estava ali sozinho. Ainda atordoados pelo que acabara de acontecer, Shiryu e Selene olhavam a janela quebrada e os restos das paredes que restaram da pequena casa.

Shiryu encarava as próprias mãos, sem compreender a extensão daquele novo poder manifestado. Selene o olhava com admiração redobrada. Aproximando-se devagar, tocou seu ombro e seus olhos voltaram lentamente ao cinza chuvoso habitual. Ele sustentou o olhar dela apenas por alguns segundos antes irromperem pela colina abaixo, lançando-se com fúria contra as trevas malignas. 


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Dragões Dourados" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.