Rainha do Submundo escrita por Vatrushka


Capítulo 4
Deveria ser eu




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Após a conversa com Hirieu, Hécate se viu mergulhada em suas memórias. Como tentava largá-las... Como se esforçava para deixar o passado para trás! Chegava a ser triste o quanto as ações de Hades ainda a afetavam.

Prometeu a si mesma esquecê-lo. Mas a abstinência ainda continuava ali.

Era só mais um dia escuro, como todos os outros no submundo. Mas Hades parecia mais tenso que o normal. Quando ele tentou sair escondido em sua carruagem, Hécate o surpreendeu.

"Hades, meu querido." Tinha adquirido intimidade o suficiente ao longo dos séculos. De vez em quando, tinha a ousadia de considerá-lo amigo. "O que pensa que está fazendo?"

O rei devolveu-lhe um olhar triste. "Ah, claro. Deusa das encruzilhadas e dos caminhos. Óbvio que você me viu."

Hécate sorriu, em uma tentativa de flerte. "Não precisa esconder nada de mim."

Hades parecia discordar. Aparentava temer sua reação por algum motivo.

"Vai descobrir." E abriu caminho, em direção da superfície.

Perguntou-se a tarde inteira o que poderia estar acontecendo. Receava pelo bem de Hades. Mas todos os anseios -ou quase todos- foram respondidos com a chegada afobada da carruagem negra.

'Qual o motivo da pressa toda?' Perguntou-se. Sentiu seu coração parar quando viu uma linda garota de apenas 13 anos sair aos tropeções, levada por Hades ao interior do castelo.

Ela chorava muito. Berrava "Mãe!" incessantemente. Estava vestida como uma ninfa, mas algo lhe dizia que era uma deusa.

'Cora!' Reconheceu após algum tempo. 'Filha de Deméter com Zeus!'

Assistiu o resto da cena à distância. O casamento forçado. Cora comendo o romã. Recusou-se a olhar os recém-casados indo em direção ao quarto.

Eram muitos sentimentos misturados. O susto que levou, tudo tinha acontecido muito rápido! Até conseguir digerir todas as informações... A pena e a empatia que sentiu da garota... Pobre garota! Tão pura, tão nova! Jamais havia pensado que Hades chegaria mesmo a esse ponto!

Raiva. Muita raiva. Primeiramente, de Hades. 'Sempre soube. Sempre soube que era um fraco! Um covarde! Como me iludi! E pensar que eu... por um segundo, realmente cheguei a pensar que ele poderia...'

Então, veio o ódio. Profundo e sombrio. Pela ingratidão de Hades. Pela sua falta de reconhecimento.

Por quê? Por quê não ela? O que ela fez que não foi o suficiente para ele? O que ele tinha visto numa garota de 13 anos e não viu nela?

Inveja. Hécate tinha vergonha de admiti-la, mas ela estava lá. Queimando e a possuindo a cada minuto que se passava.

Tristeza. De não ter sido correspondida.

 

 

Após algum tempo, Hades chamou Hécate na sala do trono. A deusa marchou até lá, furiosa.

Porém, só tinha uma coisa maior que sua revolta: seu orgulho. Não mostraria a Hades o quanto estava atingida. Preferia a morte.

Assim que fechou a porta, assumiu um rosto inexpressivo. Fingiu calma ao caminhar até o centro da sala. Domou-se ao máximo.

Não disse nada. Esperou ele começar.

"Não deixe Hermes entrar aqui. Detenha-no da forma que achar melhor, mas não quero vê-lo."

'Ah, sim.' Hécate concluiu. 'Deve estar acontecendo uma repercussão louca lá em cima.'

A deusa continuou encarando-o.

"É isso." Concluiu o rei. "Pode sair."

Mas Hécate se manteve imóvel. O fogo em seu interior clamava por vingança.

"Por quê?" Grunhiu.

Hades inclinou a cabeça, fechando a cara. "Isto não lhe diz respeito."

"Por quê?" Repetiu a deusa, mais alto. Tomou um passo à frente.

"Por quê traumatizar uma... uma criança por um prazer doentio? Separar ela da própria mãe, do próprio mundo, por...! Por nada!"

"Eu a amo!" Berrou Hades em resposta.

"Não ama não!" Hécate exclamou tão alto que as paredes pareciam tremer. "Não se machuca, magoa, ou tortura por amor! Se a amasse, não teria a arrastado até aqui! Se você fez isso, foi por amor a si mesmo!"

"O que você queria?!" Disparou. "Que eu ficasse sozinho para sempre?!"

Hécate engoliu a seco. Ele nunca esteve sozinho, por que ela sempre estava lá.

"Ah, espera..." Concluiu Hades, finalmente entendendo. "Queria que eu me casasse com você?"

Hécate virou o rosto, se amaldiçoando por deixar as lágrimas caírem. Uma parte de seu corpo implorava por trégua.

"E o pior..." Hécate encara Hades nos olhos. As lágrimas agora transbordavam. Sua voz já não tinha força, assim como ela. "É que eu teria aceito."

Esperou a reação de Hades. Qualquer uma já seria suficiente. Um beijo, um soco, um abraço, um berro, qualquer coisa. Uma resposta era tudo o que precisava.

Mas nunca a teve. Ele apenas a encarou, incapaz de se movimentar. Chocado demais para reagir.

Aquilo doera. E doera fundo. Ela lentamente se virou e cambaleou em direção à porta.

"Há muitos anos atrás, quando decidir vir para o Submundo... Acreditava que você era especial. Melhor do que seus irmãos em caráter. Mas agora..." Hécate o encara com ódio no olhar. "Vejo que é igual a todos eles."

 

 

Hécate se jogou na margem do rio, e chorou todas as mágoas que lhe atormentavam. Soluçara violentamente por muito tempo. Acreditava ter chegado ao fundo do poço.

Só recuperou um mínimo de autocontrole quando sentiu que alguém lhe observava. Rezou para que fosse Caronte.

Mas era Hermes.

"Preciso falar com Hades." Disse enfim.

Hécate não soube o que fazer. Até havia cogitado a possibilidade de largar seu cargo e se mudar para a superfície. Deixar Hades definitivamente para trás, junto com as sombras...

"Ele não quer te ver." Resolveu responder.

Hermes se ajoelhou ao lado de Hécate, pondo a mão em seu ombro. Hécate recuou ao toque. Não queria falsidade agora.

"E saiba que ela comeu o romã. Deméter jamais terá sua filha novamente." A deusa olha para Hermes. "Diga a ela que sinto muito."

Hermes ergueu a sobrancelha. "Imaginei que iria."

O deus então estica as pernas, se sentindo mais à vontade. "Você, a deusa da magia, não acharia nenhuma brecha nisso?"

Hécate ficou confusa. "Desde quando você se importa com o bem-estar de Cora?"

Então lembrou-se de que Hermes fora um dos deuses que já haviam pedido a mão da jovem.

"Ah." Murmurou.

"Zeus agora está a chamando de Perséfone."

Coitada. Arrancaram-lhe até o nome.

"Há uma brecha sim." Disse. Faria todo o possível para ajudar Perséfone e atrapalhar Hades. "O romã impede a distância do casal, mas não se determina por quanto tempo. Seria possível criar períodos em que Perséfone fica aqui, e que depois volta para a superfície."

Os olhos de Hermes brilharam. "Mas esse é o máximo de ajuda que posso oferecer."

"E já lhe digo que é o suficiente, Hécate! Obrigado!" Despediu-se com um beijo no rosto o voou de volta para o Olimpo.

A deusa abraçou as pernas. O que faria agora?

 

 

Por um fio que Hécate não abandona o submundo.

E o único motivo para ficar foi Perséfone.

Após dias de profunda meditação, depois que tudo foi resolvido entre Deméter, Hades e Zeus a respeito da jovem, Hécate tomou coragem para conversar com ela.

No início, ela se recusava a sair do quarto. Hécate pensou em agradá-la com uma lembrança de casa, uma flor. Ainda bem que cultivava suas ervas.

Jogou-lhe uma flor por debaixo da porta. Ouviu o grito da rainha.

"Vá embora, Hades!"

"Sabe... Essa flor pode não ser tão bonita quanto as da superfície... Mas continua sendo uma flor." Responde Hécate, calma. Pela sombra, consegue ver que Perséfone pegou a flor e a analisava.

"Mas é claro, você tem que analisar o contexto." Continua. "Ela nasceu sem Sol, com pouca água, em um ambiente pouco confortável... É claro que ela vai ter mais espinhos e uma aparência menos agradável."

"Acaso está defendendo Hades?" Perguntou Perséfone, de dentro do quarto.

"Não estou falando que o que ele fez foi correto. Estou falando que ele nunca aprendeu a como amar."

Pela primeira vez em dias, Perséfone abriu a porta. Mas ainda um pouco na defensiva. "Eu ouvi a sua conversa com Hades. Você deve querer se livrar de mim."

"A culpa não é sua. E descontar minha raiva em você não vai desfazer o que foi feito."

Perséfone abriu um pouco mais a porta. Acreditava nela.

"Não que sair um pouco daí?" Sugeriu Hécate. "Deve estar abafado."

"Tudo aqui é abafado." Respondeu a jovem, rindo.

"Sim, é verdade." Concordou a deusa, sorrindo. "Mas dizem que o ambiente só se abre para você... Quando você se abre para ele."

Hécate ergueu a mão. Perséfone não recuou.


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