O Legado de Pontmerci escrita por Ana Barbieri


Capítulo 20
Uma vez em outro tempo


Notas iniciais do capítulo

Boa Leitura!



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Capítulo 20

Os olhos de Mycroft Holmes se abriram no primeiro toque à porta. Extremamente irregular, receber alguém àquela hora da manhã. Deveria ser Sherlock, muito embora duvidasse que seu irmão possuísse qualquer motivo para visitá-lo... Nem mesmo se Anne o tivesse enxotado; ele teria recorrido a seu amigo doutor e não a sua morada arredia em Pall Mall. As batidas eram insistentes e já o deixavam nervoso, no entanto, o que esperar quando a maioria da criadagem não mais se encontrava no auge da idade. Por fim, entre resmungos, ele jogou as cobertas para o lado e, vestindo o roupão, desceu para receber seu mais novo convidado.

Sua chegada ao alto da escada, acompanhou a chegada de seu mordomo até a porta. Ele também resmungava, ajeitando a casaca sobre os ombros antes de abri-la com um movimento solene. Mycroft reprimiu um risinho irônico que definitivamente morreu em sua garganta ao avistar sua convidada. A aparência dela era terrível e estava acompanhada por um homem de aparência simples; o cocheiro, deduziu ele. O mais velho dos Holmes notou a falta de sua fiel companheira; a bengala com o console de prata e adiantou-se para a entrada. Sua súbita aparição calou uma pequena discussão inflamada a respeito da propriedade do horário e serviu de abertura para que Josephine se soltasse de seu apoio humano e se aproximasse dele.

— Senhor Holmes?! – exclamou o senhor Carver, perplexo com a ideia de que seu mestre tivesse qualquer coisa a ver com aquela cena. Mycroft se limitou a erguer uma das mãos, ajudando a Madam a se apoiar com a outra. – Senhor o que... o que devo...?

— Pague-o e depois volte com uma boa xícara de café puro para o escritório. Por favor, Carver. – respondeu Mycroft, sentindo o mesmo cheiro que Watson havia sentido emanando dela. – Obrigado por trazê-la, meu bom homem. – acrescentou para o cocheiro, que acenou, analisando o interior da casa com viva admiração.

Sem esperar por um comentário, o Holmes mais velho saiu na companhia da recém-chegada na direção do velho escritório conjugado com a biblioteca. Sem trocarem nenhuma palavra, Josephine deixou-se ser guiada por Mycroft e aceitou de pronto seu convite para que se sentasse junto à lareira. Para sua surpresa, ele a acendera rapidamente; sentando-se de frente para ela logo em seguida. Esperava que se explicasse, Josephine conseguia ver isso em seus olhos e no modo como cruzara as pernas e brincava com os dedos. No entanto, com o corpo todo trêmulo, só o que conseguiu foi soltar um muxoxo de irritação e encarar as chamas.

Mycroft manteve-se paciente, observando-a mexer em seus dedões incontrolavelmente. Aquilo lhe deu tempo para analisá-la melhor. Seus cabelos estavam bem presos sob o véu negro que agora estava repuxado para trás, dando acesso livre ao seu rosto. Este, encontrava-se marcado com vivos traços de maquilagem francesa. As sobrancelhas dela, naturalmente tão finas e agora com um traçado grosso que lhe davam uma aparência selvagem e destoante de sua personalidade contida. Sua pele também fora escurecida... De fato, Mycroft constatou, estava impossível olhar para ela... E a falta da bengala à mão, quase fazia-o se questionar se aquela era Josephine de Pontmerci...

— Conheço uma loja onde vai conseguir substituir sua velha amiga. – disse tentando fazê-la falar, provocando-a. Nada. – Não gostaria de arrancar toda essa massa de seu rosto? – ofereceu brandamente, realmente não gostava de vê-la maquilada.

Em resposta, Josephine se levantou em direção as janelas. Resoluta, afastou as cortinas e encarou seu reflexo nas janelas espelhadas.

— Não preciso do café. – disse finalmente. – Há álcool em meu sangue, sim, mas, o cheiro que você e o amigo de seu irmão sentiram é consequente de um par de mãos trêmulas e meia taça de xerez desperdiçada no colo de meu vestido. – explicou observando a rua do lado de fora. Naquela região da cidade, todos dormiam...

— O que a trouxe até aqui, Josephine? – indagou com o corpo meio virado para encarar as costas dela. Sua curiosidade atiçada pela menção a Sherlock e seu fiel companheiro, o doutor Watson.

Serenamente, ela suspirou, deixando a vista de Pall Mall de lado para voltar até a cadeira que lhe fora oferecida antes.

— Cansaço. – respondeu após um curto silêncio de expectativa, fazendo com que seu ouvinte arqueasse as sobrancelhas. – Tudo desde a morte de Sebastian e a carta de Charles Milverton contribuiu apenas para um colapso nervoso. Estou cansada, Mycroft. Espiritualmente fatigada...

Seu discurso foi interrompido pela batida na porta de Carver, trazendo o café. A partir de suas feições era possível deduzir o que pensava a respeito de servir tal bebida àquela hora para seu patrão e uma convidada, porém, sem mais perguntas ou comentários do que o usual, depositou a bandeja na mesa de centro, serviu apenas Josephine, que se viu sem alternativa senão aceitar, e deixou-os sozinhos novamente. A matriarca devolveu a xícara para o pires na mesinha interposta entre eles, respirando fundo para continuar seu relato.

— Eu o matei. – disse como se não fosse importante. Mycroft afundou em sua poltrona, absorvendo o tom dela. Imaginara várias coisas acerca de sua personalidade quando a conhecera. Nunca lhe associaria com um assassinato. Contudo, fitando seus olhos naquele momento, mais uma vez presos nas chamas, irrepreensíveis e determinados, percebeu que isso fora causado por um velho resquício de ingenuidade e excesso de admiração gerados por uma noite e um jogo de xadrez. – Seu irmão também me pareceu perplexo em meio à irritação com a qual me repreendeu. – acrescentou ela analisando-o, interrompendo suas reflexões silenciosas.

— Sherlock é bastante sensível no que concerne a terceiros obstruindo a execução de seus métodos. – observou Mycroft, passivo. – E o colapso nervoso foi antes ou depois? – indagou com uma pitada de zombaria em sua voz e que não passou despercebida por sua companhia. Ela riu.

— Acredito que ele provenha de muitos anos, mas, acredito que a idade esteja deteriorando o meu controle na mesma proporção que deteriora meus ossos. – rebateu num nítido gracejo. Mycroft não sorriu. – Minha sobrinha me fez uma visita e suas acusações foram tais que me vi incapacitada de deixar meus aposentos por várias horas. Louis, é claro, sendo o bom menino que é, nunca cruzaria a linha da porta se eu o mandasse ficar longe... pobre, querido. – continuou, tornando a baixar os olhos para as chamas, o sorriso em seus lábios se desvanecendo aos poucos. – A culpa é só minha... meu casamento e tudo o que aconteceu em seguida e que me trouxe até aqui... Eu jamais apontei o dedo para ninguém; nem mesmo para aquele vermezinho que ousou vender as cartas debaixo do meu nariz... Minha sobrinha e meu falecido marido, no entanto, parecem ter o condão natural para inspirar culpa. Diversas marteladas sobre a minha cabeça até que eu me sentisse sufocada o suficiente para resolver culpar alguém...

— Milverton. – concluiu Mycroft, apoiando a cabeça entre o indicador e o dedão, parecendo entediado. Ela anuiu num gesto plácido de cabeça. – Bem, levando em conta as circunstâncias em torno da vítima, ouso dizer que a França já nos causou prejuízos maiores. – comentou dando de ombros. – Mas, espera voltar?

— Não fui vista. – respondeu ela também dando de ombros. – E seu irmão apagou o bilhete que eu enviei a Milverton avisando da minha visita. Embora tenha estado em Appledore Towers há pouco tempo, duvido que algum criado associe meu rosto ao que viram esta noite...

— E Louis?

— Imagino que ele consiga alguma espécie de... álibi, não é isso? Certamente não deixou o hotel. Se estivéssemos em Paris, poderia ter saído para jogar, mas ele não conhecesse ninguém na cidade...

— Digamos que ele tenha descoberto sua fuga...

— Ele fará o que fez na primeira vez em que nos desencontramos: irá até a casa dos Holmes e não me encontrando lá, certamente seu irmão ou sua esposa indicarão você. E aqui estou eu. – respondeu, mais uma vez dando de ombros.

— Dirá a ele? – inquiriu Mycroft brandamente.

— Se for necessário. – disse rapidamente. – Ele não precisa carregar todos os meus fardos e, além disso, pretendo deixar esse país antes que levantem um inquérito. – acrescentou resoluta. – O casal de Baker Street, é claro, ficará bastante satisfeito. Seu irmão parece ter quebrado um juramento consigo mesmo para me ajudar e as chances de que eu consiga fazer as pazes com minha sobrinha... bem, não vai acontecer.

— Você parece tão certa quanto a natureza dela... – observou ele.

— Ela é minha filha. – interpôs Josephine, abruptamente. O ar entediado pareceu deixar o espirito de Mycroft, à medida que sua cabeça se levantava para olhá-la melhor. – É a primeira vez que digo em voz alta... que me permito pensar... Nem mesmo quando a segurei pela primeira vez... – falava consigo mesma, em seguida voltando-se para seu ouvinte. Seu olhar era sereno, marejado. – Um belo fardo, não acha? Tomou-me muitas coisas...

— E por que falar agora? – interpelou Mycroft, entre a ansiedade e a irritação.

— Estive prestes a dizer tantas vezes durante estes últimos dias, mas não vale a pena. – explicou ela, dando de ombros, concordando com a questão implícita na pergunta dele. – Anne deseja saber a qualquer custo, porque não sabe do que se trata. Se soubesse, concordaria comigo... esse segredo não muda nada. Susanna é a verdadeira mãe dela, mesmo que tenha sido eu a...

— Naquela noite, quando nos conhecemos, por que queria que eu trouxesse isso à tona? – perguntou o velho Holmes, piedosamente.

— Meu casamento estava bem, ou assim eu pensava e Londres trouxe toda aquela velha tribulação de volta... foi a fadiga ou talvez a ideia de que, no fim das contas, meu lugar não era ali... Aconteceu meses antes de eu saber que me casaria com Sebastian, quer dizer, quais eram as chances? E quando descobri, já estava envolvida o bastante com ele para acreditar que não devem haver segredos em um casamento... tola Josephine. Por melhor que seja o homem, o ego de um francês é sempre maior do que sua compaixão. No entanto, para minha surpresa, ele não foi a favor de... bem, interromper o processo... Sendo assim, meus pais me mandaram para o sul, o que já geraria diversos comentários. Susanna me acompanhou, foi extremamente clara ao declarar que sua irmã não ficaria sozinha. Ela conheceu Vladmir, com seu francês e inglês arrastado...

“Era um bom rapaz. Com um senso de humor próprio... Minha irmãzinha sempre foi mais obstinada, e o fato de que Vladmir tentava apaziguá-la com meus pais, talvez foi o motivo para que confiassem ela a ele...”

— Simples assim? – interrompeu Mycroft. Josephine quase riu.

— Você não a conheceu. – disse simplesmente, mas resolveu explicar. – Ela possuía uma predileção pelas peças de Shakespeare. Sua favorita era “A Megera Domada” e, embora não fosse completamente a favor dos métodos de Petruchio com Catarina, ela sempre foi sua favorita, desde criança... Mas Vladmir não foi nenhum macho alfa perverso. Ele realmente sabia chegar até ela... no fim, papai sabia que não haveria alternativa... e eles logo partiriam para Londres, por causa do meu irmãozinho Petruchio, como eu me acostumei a chamá-lo durante a temporada no sul. – concluiu com um sorriso doce de saudosismo. – A época para o nascimento se aproximava e a família com a qual ela deveria ficar fora escolhida. A cerimônia de casamento de Susanna, ela fez questão, aconteceu numa capela próxima a casa onde ficamos, para que eu pudesse comparecer... Porém, antes, Vladmir precisou contar a minha irmã que, através dos exames médicos que fizera para entrar na polícia, fora descoberta sua esterilidade... Minha pobre irmãzinha...

“Fiz poucas boas ações na vida, mas acredito que escrever aquela carta a Sebastian pedindo para que o meu bebê fosse de Susanna foi a melhor que poderia ter feito. Contudo, eu sabia que era o certo. A família escolhida era um bom casal, o marido era um dos joalheiros mais bem visitados de Paris, a criança com certeza não se veria em dificuldade já que, eu mesma, rendia ganhos para dois meses numa única visita... Mas ninguém sabe como criar um Bergerac além de um Bergerac. Susanna ficou receosa com a proposta, ainda mais após a exigência feita em contrato por Sebastian... A criança poderia ficar com a minha irmã, e era até melhor que ela estivesse de partida, mas, para evitar escândalos, eu não deveria ter nenhum contato com a menina...”

— Drástico. – comentou Mycroft.

— Ele era. Mas se achava no direito, já que ainda se casaria com... mercadoria desvalorada... Bem, por isso Susanna negou... mas, quando ela nasceu... e Susanna viu o que nunca poderia ter e tão claramente queria... e Vladmir tomou a bebê pela primeira vez... eu soube que nunca mais veria minha irmãzinha ou meu caro Petruchio. Então, eles se foram. Eu me casei... a tristeza pelas duas perdas superadas quando Louis nasceu. Tudo parecia bem... até aquela noite em que nos conhecemos. Como eu disse, estava fatigada... e tentei... Susanna me mandara uma carta no primeiro aniversário de Anne... e quando voltávamos para o hotel, ousei perguntar a Sebastian se poderíamos vê-los...

Josephine soluçou, Mycroft fazendo menção de confortá-la, vendo-a perder a compostura pela segunda vez.

— E ele olhou para mim com o mesmo desdém que eu várias vezes usara contra alguns de seus amigos e... e disse... para que você veja a sua bastardinha?

Nenhum deles disse mais nada. Reviver tudo aquilo fora a gota d’água para que a dama francesa perdesse seu autocontrole e, sem se importar com a presença de Mycroft, afundou-se em sua melancolia; a qual ele diagnosticava como sinal do início de uma depressão extremamente patológica. A imagem da nobre e carismática mulher que conhecera reduzida a um pranto quase teatral. Seus ombros tremiam. Ela não continha a coriza que se formava sob seu nariz. Teria sua cunhada odiado aquela mulher, se soubesse da extensão dos fantasmas de seu passado? Ele, Mycroft, era capaz de sentir nojo por ela, naquele estado, como teria sentido por qualquer outro? O que havia em Josephine de Pontmerci que a tornava, de fato, digna de pena quando em frangalhos e não razão para alimentar seu asco pelos reles humanos?

Vendo-a prestes a usar a manga de seu casaco para limpar seu nariz, ele a interrompeu, limpando a garganta e estendendo-lhe um lenço. Os olhos dela ergueram-se na direção dele, enquanto aceitava a prenda. Vulneráveis e brilhantes.

— Acho melhor voltar. – disse branda, após secar os olhos.

— A oferta para limpar seu rosto antes de partir continua de pé. – comentou Mycroft, assentindo em acordo. Ela sorriu.

— Mycroft... obrigada... por não escrever. – disse se levantando, mirando-o de soslaio. – Poupou-me de... mim mesma outra vez... – acrescentou insegura.

— Só fiz o que achei ser necessário. - respondeu ele, solene, mas afável.

— E agora, sem escolha, fazemos o que devemos fazer. – completou ela, assentindo gentilmente, fazendo-o retribuir o sorriso amigável.

Assim ela se foi, deixando-o mais uma vez com a escolha de ser o Governo Britânico...

Uma vez em outro tempo...— sussurrou ele ao fechar a porta.


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Notas finais do capítulo

Olá, queridoos!! Como eu disse, esperava por esse capítulo. Previsível para alguns, espero que surpresa para outros. Veremos como influenciará os próximos capítulos, ok? E sobre esse finalzinho... vocês devem ter deduzido que minha ideia inicial era fazer Josephine e Mycroft um casal. Como disse numa one-shot há algum tempo, Myckie assentiu que uma mulher Bergerac poderia lhe chamar a atenção. Claro que não usei esses termos, mas a mensagem era essa. Em todo caso, abandonei o navio. Ainda os shippo; eu sozinha. Mas gosto da ideia de algo inacabado. De um Se... afinal, eles são outras pessoas agora... Em todo caso, espero que gostem!! Um Beijo! Até semana que vem!



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