O Legado de Pontmerci escrita por Ana Barbieri


Capítulo 16
Enquanto tiverem um ao outro...


Notas iniciais do capítulo

Boa Leitura!



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Capítulo 16

Ao contrário do que Nikolai imaginara, não fora necessário despistar seus tios a respeito do sumiço repentino de Violet. Tanto Mary quanto John pareceram respeitar o desejo de sua irmã por um hora de descanso, o que só confirmava a sua reputação entre seus familiares. Caso fosse ele quem estivesse com uma aparência horrível e nervos aos frangalhos, ainda assim, seus parentes teriam checado se realmente estava no quarto. Rindo internamente, o pequeno senhor Holmes lembrava-se sobre como considerara tal diferença de tratamento injusta um dia. Talvez, aos olhos de outros pais, ainda fosse. No entanto, não poderia estar mais contente por ela existir naquele momento.

Seus tios permaneceram com eles e a senhora Hudson até o retorno de Anne. John foi o primeiro a perceber que sua velha amiga parecia abatida; como nunca a vira desde o falso falecimento de Sherlock Holmes. Mary viu logo em seguida, mas ao contrário de seu marido, não foi discreta em suas reações, caminhando diretamente na direção dela para abraçar-lhe pelos ombros, ajudando-a a se sentar em uma das poltronas frente à lareira; a senhoria auxiliando-a pelo outro lado. Nikolai assistia a cena ao longe, sabendo o que havia por trás do nervosismo de sua mãe. Ela discutira com Madam de Pontmerci no Savoy.

─ Holmes ainda não...? Ah, é claro... ainda em Hampstead. – murmurou para John, que assentiu piedosamente para sua amiga.

─ Senhora Hudson, acho que ela precisa de uma boa xícara de chá com mel. – sugeriu a senhora Watson, ainda envolvendo Anne em um meio abraço.

─ Nesse caso, minha querida, acho que ela precisa de algo um pouco mais forte... – comentou Watson, caminhando em direção ao velho display com os conhaques envelhecidos.

─ Está tudo bem, John... – assegurou a senhora Holmes na defensiva, negando o copo de conhaque com um aceno negativo de cabeça. O gesto a lembrou de seu pai. Como sempre, ao chegar em casa, se servia com uma dose de vodka antes do jantar.

─ Anne... – começou Mary, incerta. – O que está acontecendo? – indagou mirando-a com nítida preocupação.

A senhora Holmes suspirou longamente, analisando o semblante de sua amiga e o de seu amigo. Watson a fitava tal qual a esposa, supondo o pior, mas em seus olhos havia uma indignação a mais e ela quase assentiu, entendendo-o. Era a primeira vez que Anne hesitava em contar algum de seus segredos para o doutor. Ele fora seu primeiro confidente em todas as grandes tramas e agora, via-se sendo colocado de lado por nenhum motivo aparente. No entanto, aquele era um fardo diferente. Uma parenta desconhecida, unida a algum fato de seu passado, aparentemente, desolador demais para ser posto em palavras.

─ Josephine de Pontmerci, a cliente sobre a qual lhes falei antes, - resolveu dizer, por fim. – ela também é Josephine Bergerac. Minha tia em primeiro grau. – completou olhando diretamente para Watson.

Mary ergueu-se lentamente, em discreto choque, ao passo que John limitou-se a olhar na outra direção, encontrando o olhar de seu pequeno sósia, que permanecia no mesmo lugar de antes. Parado com as mãos nas costas. Estava calmo, ao contrário de seu primo, que pensava a todo momento que seriam descobertos.

─ Ela fez a senhora chorar? – perguntou Nikolai, brandamente, aproximando-se da mãe com imponência. Anne sorriu um pouco diante da mostra de protecionismo. Não via aquilo em seu garotinho desde que ele ainda tinha apenas sete anos de idade.

─ Não, meu amor. – respondeu simplesmente. – E você? Se comportou com a tia Mary e tio John? – rebateu de volta com um sorriso esperto.

Aquela seria uma situação inusitada. Mentir olhando diretamente nos olhos brilhantes de sua mãe nunca fora de seu feitio; a desobediência, sim. Não a mentira.

─ Eles pareciam ter sido privados de uma grande diversão, quando você foi embora. – interrompeu Mary, poupando Nikolai. – Violet ficou particularmente desolada. – acrescentou buscando o olhar de John como apoio. Ao fundo, William começou a tossir.

─ Desolada? – ecoou a senhora Holmes, achando graça, mas o tom jocoso desapareceu de sua voz ao perceber a expressão impassível de seu afilhado. – Nikolai...

─ Ela está bem, minha cara. – interpôs Holmes, adentrando a sala parecendo tão abatido quanto sua esposa. – Subiu para o quarto. – acrescentou caminhando para sua poltrona.

Todos os olhares recaíram sobre ele, com sua chegada. Anne estivera prestes a questionar-lhe a respeito da filha e a reprimir seu filho pelo que parecia ser outra tentativa vitoriosa de desobedecê-la, no entanto, reprimiu seu discurso ao verificar com que tristeza seu marido se sentara. Pela primeira vez em sua vida, Holmes não aparentava o vigor não condizente com sua idade, já um pouco avançada, mas, pelo contrário, parecia muito mais velho. O fato não passou despercebido, também, por seu velho amigo e companheiro. Watson aproximou-se dele a fim de analisá-lo melhor e acabou por trocar um olhar consternado com Mary.

Nikolai não se lembrava de alguma vez ter visto seu pai parecendo tão exausto. Praticamente destruído; como ele próprio costumava ficar após horas de brincadeiras e corridas com os irregulares de Baker Street. Algo muito ruim deveria ter acontecido... e o método de seu pai lhe levava a tirar suas próprias conclusões: o que sobrar, mesmo que aparentemente impossível, deve ser verdade... Sendo assim, Violet subira para seu quarto, pois Nikolai se provara errado naquela brincadeira. E ela estava certa. Terrivelmente certa. Não poderia haver outra explicação, afinal, mesmo que pai e filha houvessem discutido, algo raro de se ver, nada justificaria sua gêmea não ter entrado na sala com ele.

─ John, por favor, vá ver como sua irmã está. – pediu Sherlock, sem se voltar na direção do filho. Ele pressionava os olhos fechados contra as pontas dos dedos.

O pequeno Holmes obedeceu, deixando os adultos para lidarem com os problemas de seu próprio mundo. Sua responsabilidade agora era para com sua irmã. Watson mais do que nunca, agora, desejava uma explicação. O apartamento da família Holmes, de repente, fora envolvido por sombria tensão; palpável, até, deixando seu velho amigo preocupado.

─ Mary, acho melhor levar William para casa... – começou brandamente, sendo interrompido por um muxoxo de sua mulher.

─ John Watson. – ralhou ela. – Eu tenho tanto direito de saber o que diabos está acontecendo quanto...

─ Mary. – interpôs Anne, branda, mas com certa imperiosidade. Seus olhos não desgrudaram de Sherlock desde seu pedido para Nikolai. Ele jamais dera aval para seu filho sair sem que antes ela tivesse alguma palavra a respeito do assunto. – Por favor, e John... eu sinto muito, mas... acho que precisamos ficar sozinhos. – cortou solenemente, percebendo a mesma tensão que seus amigos.

 ─ Na verdade, com todo respeito senhora Watson, mas, ainda vou precisar da presença de Watson por alguns instantes. – disse soturnamente, as mãos unidas sob o maxilar decidido.

Anne e Mary se entreolharam, aturdidas por alguns instantes, até que a segunda acenou positivamente com a cabeça e, tomando a mão de seu filho entre as suas, deixou o vestíbulo, parecendo bastante ofendida. A senhora Holmes automaticamente fechou os olhos ao soar da porta batendo no andar de baixo e dos muxoxos incompreensíveis da senhoria, lançando um olhar repreensível de soslaio na direção do marido. Este, por sua vez, já se colocava de pé em direção a uma das janelas do apartamento.

─ Bem... vou deixá-los sozinhos então. – disse também tomando um caminho. – Irei ter com Violet. – comentou dirigindo-se para a porta.

─ Anne! – chamou Sherlock antes que ela saísse, alarmado. Houve um segundo de hesitação de sua parte antes de prosseguir com o que quer que fosse dizer a ela. – Não seja tão dura com ela. – disse por fim. Ela assentiu, confusa, tomando a direção para o andar de cima.

†††

Nikolai estava sentado aos pés da cama de sua irmã, afagando-lhe as costas, numa tentativa de fazê-la falar. Violet, no entanto, se recusava a contar-lhe o que havia visto. Como se ao manter a verdade para si, o estivesse poupando de um imenso fardo. Àquela altura, seu irmão não poderia estar com suas certezas mais confirmadas do que quando seu pai adentrara a sala de estar parecendo ter visto uma alma penada. Sua cabeça ia de encontro ao travesseiro baixo e ela sequer chorava, ou então, tentava fazer com que suas lágrimas corressem silenciosamente. De fato, parecia estar em um estado que os adultos costumavam chamar de vegetativo.

─ Vou chamar a mamãe. – disse dando um tapinha amistoso nas costas dela. Todavia, assim que se levantou de seu posto, a porta se abrira revelando a senhora Holmes.

Bateu docilmente contra a madeira, anunciando para a pequena que se aproximava. Ainda assim, sem resposta. Trocando olhares furtivos com Nikolai, agora sentado sobre seu velho cavalinho de madeira, caminhou até a cama, sentando-se no lugar onde ele estivera pouco antes. Seus olhos continuavam a buscar uma explicação de seu filho, mas este insistia em permanecer calado. Apenas observando as reações de sua gêmea. Violet, ao sentir o toque de sua mãe sobre seus ombros, virou-se com violência para abraçá-la e então ambos viram: seu rosto estava inchado e seu nariz escorria com coriza.

─ Meu bem... pronto, pronto... está tudo bem... – murmurava a senhora Holmes, alisando o cabelo de sua filha, carinhosamente, fazendo com que a pequena se apertasse mais contra ela. – Violet, o que aconteceu? – perguntou preocupada. Ela nunca chorara diante de um castigo iminente, tampouco Nikolai. E Holmes jamais teria gritado a ponto de fazê-la tremer daquela maneira febril.

─ Papai... papai... – murmurava embargada pelo choro.

─ O que seu pai fez? – insistiu Anne, lançando outro olhar indagador na direção de Nikolai.

─ Ele... beijou... a criada... – foi tudo o que conseguiu dizer, afundando-se mais no colo de sua mãe.

Anne fechou os olhos novamente, respirando fundo. Em seguida, mirou seu filho significativamente, para que fechasse a porta. O caminho de volta entre ela e o velho amigo da infância, White, como o chamara em analogia ao cavalo de Napoleão Bonaparte, em sua mente, fora feito como se, por um instante, o tempo houvesse parado. Naquele momento, passava-lhe pela cabeça todas as vezes em que avistara seus filhos brincando juntos sobre o chão. As manhãs em que precisara subir para arrumar o cabelo de Violet, até que ela decidisse que já estava pronta para fazê-lo sozinha; e quando ainda era recebida pelos bracinhos esticados de Nikolai para que lhe tirasse o camisão de dormir e o trocasse por sua roupa do dia.

Naquele momento, seus filhos pareceram envelhecer consideráveis anos diante de seus olhos; e a ideia de que estivesse lhes tirando grande parte de sua inocência, encheu-a de culpa. A ponto de sentir algo se fechar dentro de seu peito. Finalmente ocorrera a ela que seus filhos cresciam diante de seus olhos... e nada poderia parar aquilo.

─ Violet, olhe para mim. – pediu brandamente. Esperando até que ela secasse as lágrimas e a fita-se. – Não vou inquirir maiores detalhes de você, minha querida... no entanto... – ponderou a senhora Holmes, tentando escolher as melhores palavras, seus olhos caídos sobre a menina, mas seu tom atingindo aos dois. – No entanto, eu quero que compreenda; o que você viu não deve fazê-la odiar seu pai... e isso vale para os dois. – concluiu mirando Nikolai de soslaio.

─ Mas... mas ele traiu a senhora! – retrucou a pequena, ansiosa. – Ele não deveria beijar outras senhoras!

─ Eu sei. – concordou Anne, prontamente. – E eu tenho certeza de que ele se arrepende. Embora tenha dito que seu pai nunca agiu de forma desonrosa com seus casos antes, agora percebo que o fiz subestimando sua capacidade de entender. – disse, impedindo que suas mãos sobre os ombros magricelos de Violet tremessem devido ao nervosismo que sentia.

— Então por quê? – perguntou Nikolai de repente. O susto levou a senhora Holmes a fitá-lo de pronto, seu semblante era duro; mesmo com dez anos, seus filhos não se contentariam com qualquer mentira que pudesse tecer para contornar a situação. Afinal, deveria contar-lhes a verdade deturpada que envolvia o mundo dos adultos.

 — Às vezes, nos colocamos em situações nas quais, sob pressão, precisamos tomar uma decisão errada para que a consequência seja certa. Não apreciamos esse método, sequer gostaríamos de passá-lo a vocês. Contudo, por vezes, é a única saída. Foi assim quando me vi obrigada a puxar um gatilho pela primeira vez, para salvar a vida de seu pai de um homem que se dizia apaixonado por mim. Ainda que ele fosse uma pessoa má e houvesse cometido muitas faltas em sua vida, não era meu direito matá-lo... mas, se não o fizesse, a vida teria sido muito diferente. – disse aprumando-se sobre a cama, levando seus filhos a fazerem o mesmo para encará-la. - O mesmo aconteceu hoje entre seu pai e a criada do senhor Milverton. Tenho certeza de que as intenções dele nunca envolveram um beijo, mas as circunstâncias e o papel que estava desempenhando o levaram a tal.

“Foi o dever. Assim como meu pai, por vezes, deveria flertar com outras senhoras para prosseguir em suas investigações. Mesmo minha mãe, ouso dizer, se envolvera em várias situações comprometedoras a fim de auxiliá-lo em seu trabalho...”

─ E quanto aos limites? – rebateu Nikolai. – Vocês vivem nos falando sobre limites. – lembrou-a acusatoriamente e Anne reconheceu ali a boa influência de Watson e Mary na vida de seus filhos.

─ Sim... – concordou Violet, olhando para a mãe com expectativa. – Isso não seria ultrapassar demais os limites? – inquiriu, duvidosa. Anne sorriu, retirando um fio de cabelo do rosto da abelhinha de Holmes...

─ Seu pai errou. Quanto a isso não há o que discutir. – assegurou a senhora Holmes, absoluta. – A expressão dele ao chegar em casa confirma que ele sabe disso e que esta será uma ferida difícil de cicatrizar... mas eventualmente, é o que acontece. O que eu quero que vocês dois entendam por agora é: o que aconteceu não tem absolutamente nada a ver com seu pai e comigo, mas entre ele e seu trabalho. – concluiu solenemente.

─ Levando em consideração o que sabemos sobre o mártir em questão, eu nem deveria duvidar disso. – brincou Nikolai, tentando arrancar um sorriso de sua irmã, sem sucesso.

─ Violet... por favor, não odeie seu pai. – acrescentou Anne, incerta se fora capaz de arrancar as dúvidas do coração de sua menininha. – Ele nunca se recuperaria de um golpe deste. Ele é louco por vocês! Só John Watson poderia se dizer um pai mais orgulhoso do dia em que seus filhos nasceram. – disse com a voz embargada, fazendo carinho sobre as cabeças de ambos. – Eu sei como se sente e acredite em mim, nenhuma dúvida deve ser sobrepor ao amor que você tem por ele.

─ Eu não o odeio. – concluiu Violet. – Apenas... assegure-se de que não vai acontecer de novo. – acrescentou logo em seguida, imperiosa.

─ Se houver uma próxima vez, Violet poderia fugir... espere! Isso não seria tão ruim... mais espaço para mim! – gracejou Nikolai, dando de ombros, sendo imediatamente acertado contra o rosto pelo travesseiro da irmã, caindo do cavalo.

O pequeno declarar de guerra entre seus filhos foi a deixa perfeita para que saísse, a fim de resolver aquele infortúnio também com seu esposo. Não estava certa de que havia conseguido restaurar um pouco da confiança de seus filhos, especialmente de sua filha. Contudo, parando para observá-los da porta, pulando de uma cama para outra com seus travesseiros em punho, Anne percebeu que o fantasma da dúvida se dissipara do olhar de Violet enquanto ela brincava com seu irmão. Este, por outro lado, escondia um pequeno sorriso sabido em seus lábios, um sorriso que sua mãe conhecia bem. Ele guardava para si um segredo do qual ninguém mais possuía conhecimento; conhecendo-o, Anne sabia o que era. E sorriu de alívio.

Seus filhos ficariam bem, fossem quais fossem as provações do futuro, enquanto tivessem um ao outro.


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Notas finais do capítulo

Olá, queridos!! Fiquei muito aliviada com a resposta pelo capítulo anterior, muito mesmo! Como eu disse, foi um capítulo especialmente difícil. Este não ficou muito atrás. Anne já está aos frangalhos com toda essa excitação provocada pela Madam de Pontmerci e ver-se obrigada a tratar de seus filhos sozinha em um momento como este... eu fiquei com dó! Mais ainda porque sei como essa conversinha com Sherlock vai ser, aguardem; talvez, os velhos amigos floretes apareçam para uma visitinha amistosa. Espero que gostem!! As reviews me ajudam a saber e me deixam muito, muito feliz!! Um beijo!! Até a próxima Sexta-feira!



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