Dons: Carbúnculo escrita por KariAnn, Haruka hime


Capítulo 4
Uma lenda indígena


Notas iniciais do capítulo

2 - No total, a família Raimann (que originalmente era a família Leões) tem mais de cinquenta membros. Nós criamos uma família gigante, com filhos, sobrinhos, primos em grande quantidade. Claro, nessa história reduzimos esse número, mas só o Kurt tinha ainda mais três filhos que tiramos.



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O homem de óculos escuros desceu de seu carro, acompanhado de uma moça, e caminhou até o portão do palacete. Depois de conversar com o segurança, ele e a acompanhante adentraram a propriedade e se dirigiram ao imóvel. Adentraram o átrio principal e o ele olhou em volta, inspirando profundamente como se quisesse guardar consigo o cheiro daquele lugar.

O homem tirou os óculos e seus olhos escuros varreram todo o lugar, atentos a tudo o que havia ali. Um sorriso se abriu em seu rosto quando ele começou a caminhar em direção à escadaria. Lembrou-se da última vez que esteve naquele lugar, junto aos irmãos, quando eles brincavam de deslizar pelo corrimão.

Passou-se um tempo considerável em que o homem explorou cada sala do pequeno palácio. Cada canto dali lhe trazia de volta uma lembrança, às vezes feliz, às vezes triste. Os corredores, antes tão cheios de vida, banhados pela abundante luz que atravessava as grandes janelas, os vitais coloridos. Viu-se passar por ali, correndo de Loui, que queria estourar nele uma bexiga d'água.

Entrou no quarto que um dia fora seu. Estava todo empoeirado, escuro, triste, mas mesmo assim ele conseguiu se ver ali, sentado em sua cama, recostado à cabeceira, a ler seu livro favorito. As roupas todas perfeitamente organizadas em seu armário, os livros da escola sobre a escrivaninha próxima à janela, as paredes azuis repletas de nuvens... 

O homem piscou algumas vezes, como que acordando de um sonho. Então se viu novamente no quarto escuro e empoeirado. Nostálgico, ele suspirou e voltou para o corredor. Por fim, se dirigiu à biblioteca. Os mesmos livros estavam ali, conservados por anos, mas certamente mais velhos do que ele se lembrava.

O homem suspirou e balançou a mão no ar como se expulsasse algum inseto. Apesar da nostalgia, não estava ali para relembrar o passado, mas tinha algo importante a fazer.

— Vamos olhar esses livros todos, Léia — ele ordenou e ouviu sua voz ecoar pelo ambiente, tão grave e forte que ele mesmo se impressionou —, precisamos encontrar o diário. Comece por aquela estante ali. Por sorte há apenas cinco estantes de livros. Mova-se!

Submissa, a moça começou a olhar cada um dos livros, prateleira por prateleira, mas tomando cuidado para não rasgar ou danificar nada. O homem fazia o mesmo em outra estante, e os dois trabalhavam o mais rápido possível, mas cuidadosa e atentamente.

Passadas duas horas e meia, os dois terminaram a procura que foi frustrada. Eles não encontraram o que foram buscar e isso deixou o homem curioso. Pensava consigo que devia haver algum engano, ou eles deixaram passar alguma coisa. Mas depois de rever tudo, ele se convenceu; o que procurava não estava ali.

O homem passou a mão nos cabelos longos e lisos. A moça olhava para ele aguardando novas ordens.

— Não está aqui! — Seu tom era um misto de frustração e raiva. — Tem certeza de que olhou tudo com cuidado? — perguntou à Léia.

— Tenho, senhor. Não está aqui — ela respondeu.

— Mas devia estar... Alguém o pegou! Só pode ser isso — falou o homem a olhar para o teto com ar pensativo. — Nesse caso, vamos embora.

Os dois então saíram do palacete. Léia foi direto para o carro, mas o homem, antes, chamou o segurança.

— Alguém esteve aqui nos últimos dias?

— Sim, senhor Marcos. Ontem seu irmão, o senhor Loui, esteve aqui com seus sobrinhos, o Fábio e as gêmeas.

— Sobrinhos? Sei! E você sabe se eles levaram algo daqui?

— Sim, senhor. Eles vêm para cá de vez em quando para ficar na biblioteca. Ontem eles levaram alguns livros.

Marcos agradeceu a informação e entrou no carro. Ficou parado alguns instantes, olhando para o muro que cercava a propriedade, pensando consigo o que deveria fazer primeiro. Subitamente, ele suspirou com ar de cansaço e em seguida ligou o carro.

— Vamos voltar para casa — falou Marcos com forte resolução que surgira em sua face de repente. — Já tenho compromisso para amanhã: fazer uma visita à minha família.

***

Fábio suspirou, extasiado, e fechou o livro. Estava no terraço de seu quarto, sentado em uma poltrona, os pés estendidos e apoiados num banco. Colocou o livro na mesinha ao lado e se espreguiçou, quando ouviu alguém bater na porta. Um pouco contrariado, se levantou para atender. 

Ao abrir a porta, Fábio se deparou com Alícia, que segurava um prato com alguns brigadeiros e frutas com uma mão, e uma chave de fenda com a outra. Estava suja de graxa, e tinha um pouco de fuligem no cabelo.

— O que você quer? — Fábio perguntou com expressão de estranheza estampada no rosto.

— Então... Eu trouxe alguns doces da padaria e tinha me esquecido deles no meu frigobar. Então resolvi trazer pra você antes que eles estraguem. 

— Você parou de arrumar seu carro pra vir me trazer brigadeiros? — ele falou, suas sobrancelhas se levantando como quem duvida de algo.

— Pois é! — Alícia falou com expressão indefinível. — Sou uma irmã mais velha agradável. Pegue!

Fábio deu de ombros e pegou o prato. Antes que fechasse a porta, ele passou a mão nos cabelos curtos da irmã para tirar um pouco da fuligem. Para a sorte dela, não precisaria se esforçar para lavar o cabelo, já que não eram muito cumpridos, ele pensou. 

Alícia sorriu e desceu as escadas em direção à garagem, enquanto Fábio voltou a sua poltrona e comeu os quitutes. Olhou mais uma vez para o livro em sua mesinha e sorriu para si mesmo. A história que tão veementemente ele devorara em algumas poucas horas havia chamado sua atenção infantil de uma forma muito especial.

Quando terminou de devorar os doces como devorara o livro, Fábio pegou seu celular e deu um telefonema muito importante.

***

Abandonado em sua espaçosa cama, Heitor cochilava. As cortinas estavam abertas, assim como as janelas, e lufadas frias invadiam o ambiente, fazendo seus pelos se eriçarem agradavelmente. No alto de uma parede, no canto, havia uma bela águia de asa redonda que parecia repousar. Sua cauda curta pendia listrada, e sua plumagem de um castanho-escuro, com asas listradas em tons claros contrastava com a parede um pouco mais escura. 

De repente, o telefone tocou. Heitor esticou seu braço e pegou o aparelho.

— Alô? — A voz de Heitor soou sonolenta.

“Heitor? Você ainda estava dormindo?”

— Não... eu cochilei.

“Já passou da hora do almoço.“ A voz do outro lado soou reprovadora.  “Enfim, irei pra sua casa. Chamarei as gêmeas. Tenho algo importante para contar pra vocês sobre o livro que eu peguei na biblioteca do palacete.”

— Tudo bem. Espero por vocês. — Heitor colocou o telefone de volta no gancho e, de olhos fechados, pensou em qual seria a coisa tão importante que o primo tão animadamente queria contar.

***

Fábio gostava de visitar Heitor. Gostava principalmente de vê-lo sem a lente de contato de cor azul que costumava usar nas raras vezes que saia de casa para esconder o fato de ser heterocrômico. Um de seus olhos era de um azul extremo e o outro de um amarelo brilhante.

Apesar de não se importar com sua condição, Heitor não gostava de chamar a atenção para si, por isso usava a lente, algo que decepcionava o primo.

Quando as gêmeas chegaram, Heitor se levantou e colocou no chão algumas almofadas sobre as quais os primos se sentaram, enquanto ele mesmo voltou para sua cama e lá ficou, lutando para manter os olhos abertos. Fábio, satisfeito com as acomodações, começou a falar com vivaz animação.

— Lembram-se daquele livro que peguei em Acádia? — Os primos acenaram positivamente com a cabeça e murmuraram um "u-hum". — Pois bem, terminei de lê-lo hoje. É uma história que foi escrita sobre um ancestral da nossa família chamado de Don Raimann. Narra a aventura dele numa viagem ao Brasil e a história que ele ouviu lá sobre uma lenda indígena. A lenda do carbúnculo de Teju Jagua.

— Você veio aqui para nos contar uma historinha? — Preta perguntou, demonstrando tédio. 

— Você quer me deixar falar? — disse Fábio com visível chateação. 

— Tudo bem. E o que diz essa tal lenda de que você tá falando? — Heitor perguntou sonolento.

Fábio limpou a garganta, e ainda chateado com o pouco interesse dos primos, começou a falar, certo de que eles mudariam de ideia depois que ouvissem a história. 

— Teju Jagua é o deus das cavernas, grutas e lagos. É descrito como tendo um grande corpo de lagarto e sete cabeças de cachorro. No alto da cabeça principal está incrustado um carbúnculo. Segundo a lenda, um valente índio de uma tribo de índios das terras brasileiras se ofereceu para matar o monstro e, não se sabe como, conseguiu. Porém, depois de matá-lo, abandonou o corpo na caverna, onde o monstro vivia cercado de um tesouro, assim como abandonou o carbúnculo[1].

— Que coisa bizarra! — falou Branca, franzindo a testa.

— A história do tesouro e do carbúnculo — continuou Fábio — atraía atenções de caçadores de tesouros da época. Muitas pessoas acreditavam que a lenda era verdadeira. Segundo a crença popular, o carbúnculo possui poderes mágicos que podem ser usados por quem o possui. Na história narrada no livro, que se trata de um diário, Don Raimann foi à procura desse tesouro e do carbúnculo.

— Mas ele encontra mesmo o carbúnculo? — Branca perguntou com um interesse que agradou Fábio.

— Sim! Ele encontra, mas tem o tesouro e o carbúnculo roubados por um caçador invejoso que queria ambos de qualquer jeito. Pra encurtar a história pra vocês, Don perseguiu o tal caçador e, após muito tempo, duelos, etc., recuperou o tesouro e o escondeu em algum lugar.

— Em algum lugar? É aí que termina? — Preta perguntou com curiosidade infantil. 

— Bem... É aí que entra o motivo de eu tê-los chamado aqui. 

— Como assim?

— Essa história aconteceu de verdade, sabem? Então, e se nós brincássemos de caça ao tesouro, e tentássemos encontrar o lugar onde o Don escondeu o tesouro?

— Espera! — Branca se levantou, fazendo grande esforço para não rir. — Você acha mesmo que essa história aconteceu de verdade?

— Eu mencionei que isso é um diário, não um simples livro? — Fábio falou irritado, mostrando a capa do livro onde havia a palavra "diário" grafada. — Eu acredito! Isso por que toda a história segue uma cronologia exata, que bate com coisas que aconteceram na realidade. No livro fala que Don deixou pistas de onde estava o carbúnculo em cartas que enviou para familiares. São palavras-chave que aparecem em todas as cartas.

Branca ficou quieta por um momento, encarando a capa do livro com um sorriso debochado no rosto. Então, depois de suspirar e rir um pouco, tornou a se sentar em sua almofada e falou:

— Se bem que seria divertido encontrar um tesouro.

— Claro que seria! — Preta falou com o ânimo que a irmã não teve, e com a mesma crença infantil que Fábio tinha.

— Então? Vamos?

Branca e Preta se olharam. Heitor sorria e tinha os olhos semicerrados a encarar o primo. Apesar de parecer uma história absurda, cada um ali tinha vontade de começar uma caça ao tesouro e tinham até mesmo uma ponta de crença na veracidade da história. Até mesmo Branca, embora fingisse que não. 

Depois de um tempo em silêncio, Heitor e as gêmeas concordaram com Fábio. Mesmo que não encontrassem carbúnculo algum, seria tudo uma grande brincadeira de criança.

— Então, por onde começaremos? — Branca perguntou.

— Simples — Fábio falou com ânimo renovado. — Se as pistas estão nas cartas, então temos que pegar as cartas da nossa família enviadas por Don. Assim encontraremos as pistas que precisamos.

— Beleza! — Preta bradou. — Mas você faz alguma ideia de onde essas cartas foram guardadas?

— Meu pai deve saber. Vamos até ele! 

***

Kurt terminou de lavar a louça do café da manhã. Olhou pela janela da cozinha, de onde podia ver o muro coberto de hera japonesa plantada por Bella. Nostálgico, ele suspirou. Sentia falta da esposa, mas estava feliz que ela estivesse trabalhando e que dois de seus filhos, que com ela estavam, pudessem estudar noutro país. Sorriu consigo enquanto se dirigia até a sala onde escolheu um bom filme de ficção científica e sentou-se confortavelmente em sua poltrona para assisti-lo. Naquele mesmo momento, Fábio entrou na sala, acompanhado das gêmeas.

— Olá Pai. — Fábio se aproximou com pressa. —  Por favor, é o senhor quem cuida dos documentos antigos da nossa família? Como cartas trocadas entre nossos ancestrais ou algo assim?

— Cartas de família, hein?! —  falou Kurt, pensativo. — Quem cuida disso é o Elric. Mas por que vocês querem... ?

— Nós estamos numa caça ao tesouro. Obrigado, pai — Fábio falou num fôlego só e os três saíram tão rápido quanto havia chegado. 

Kurt foi até a janela da sala e os observou correrem portão a fora, divertido e imaginando consigo quais brincadeiras os três inventavam. "Caça ao tesouro", pensou com curiosidade. Ao olhar para o céu, notou uma águia de asa redonda voar na direção dos garotos.

De seu quarto, Heitor acompanhava cada passo dos primos, vendo-os através dos olhos de sua águia.

***

A casa de Elric ficava a cinco quarteirões da de Kurt. Era uma casa bonita, sempre muito bem organizada por ele mesmo, que não tinha esposa, pois a perdera pouco tempo depois do nascimento das gêmeas. Isso o deixara muito abalado na época, mas o fato de ainda ter vinte e poucos anos e quatro filhos o sustentara. Também seus irmãos o apoiaram, e isso lhe deu forças para não desistir de sua vida.

Aquela casa onde morava, comprara junto com a esposa. Também ela fora a responsável pela decoração. Já havia idealizado um jardim, um quintal, a casa, o quarto dos filhos, tudo antes mesmos de a terem comprado, mas, infelizmente, ela morrera antes que o jardim fosse feito. Por isso Elric cuidava com tanto zelo e não podia imaginar deixar aquela casa em momento algum da sua vida.

Naquele dia, o homem podava os arbustos que adornavam a frente do terreno quando suas filhas se aproximaram, ofegantes.

— Ei, você duas, onde estavam? — perguntou ele, retirando suas luvas de jardineiro.

— Estávamos na casa do tio Loui, depois fomos à do tio Kurt e agora, estamos aqui — Branca falou num só fôlego, ainda ofegando muito.

— Calma! Respirem ao menos — falou Elric, tranquilamente. —  O que vocês estão aprontando?

— Nós queremos saber se o senhor guardou cartas e documentos trocados entre nossos ancestrais — disse Fábio. 

— Hum! — Elric exclamou com um ar de suspeita. — Sim, eu guardei, mas pra que vocês as querem?

— Por que estamos numa caça ao tesouro.

Elric suspirou, fez cara de cansado e voltou a podar seus arbustos.

— Não posso levar vocês lá. Estão guardadas em outro lugar, então arrumem outra brincadeira pra se distraírem ou vão estudar.

***

No chão do quarto de Heitor, os garotos estavam sentados a pensar no que fariam a seguir. A tentativa de descobrir onde as cartas da família poderiam estar falhara.

— Alguma ideia, Heitor? — perguntou Branca, que estava deixada com os pés esticados e apoiado numa parede. 

— Tenho sim! — Heitor falou enquanto se espreguiçava preguiçosamente — Perguntem ao Christophe. Provavelmente ele sabe. 

— É uma possibilidade... — Preta falou, pensativa. — Mas acho que o Chris não vai querer nos entregar. Mesmo assim, podemos fazê-lo falar a localização.

Todos se entreolharam e concordaram com o plano. O único inconveniente era que Christophe não estava em casa naquele momento, o que os obrigou a tentar fazer algo para se distraírem até que pudessem colocar seu plano em prática.

Enquanto Fábio, Branca e Preta se divertiam com jogos de tabuleiro, Heitor cochilava, e sua águia no alto da parede observava as crianças. No entanto, o dia passou sem que eles conseguissem ver Christophe.



[1] Se pesquisarem um pouco sobre esse mito, verão que há várias versões, porém essa parte eu inventei.


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Notas finais do capítulo

Obrigada por ler. Comentem!



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