O Curioso Caso de Daniel Boone escrita por Lola Cricket, Heitor Lobo


Capítulo 29
Alive


Notas iniciais do capítulo

VOLTAMOS! Ou pelo menos, eu voltei, já que o Vitor conseguiu fazer cagada no computador dele e não conseguiu postar o capítulo como sempre faz. A outra parcela de culpa é minha que estou me atolando em coisas da faculdade (que nem começou ainda) e acabei sem tempo de escrever a minha parte do capítulo.
Mas deixando as desculpas idiotas de lado, estamos aqui com o capítulo que trata dos acontecimentos depois da terrível facada! Esse capítulo tem a presença de um Senhor muito especial por (quase) todos, e esperamos do fundo do coração que vocês gostem.

Um beijo enorme no coração de vocês, não se esqueçam de comentar e nos vemos em breve :)
Boa leitura, serumaninhos abençoados



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“Eu cometi todos os erros que você poderia possivelmente cometer. E eu peguei, peguei, peguei o que você me deu, mas você nunca percebeu que eu estava sofrendo. Eu sabia o que queria, eu fui lá e fiz. Fiz todas as coisas que você disse que não faria. Eu te falei que nunca seria esquecido, e apesar de você… eu ainda estou respirando. Eu estou vivo. Você levou tudo, mas eu ainda estou respirando. Eu estou vivo.”

— Sia, “Alive”

 

Meus olhos demoram um pouco de tempo para se acostumarem com o enorme clarão branco ao meu redor. A roupa que visto também é totalmente branca, e a única parte de mim que difere desse tom é a minha pele. Mas que merda de lugar é esse?

— Alô? Tem alguém aí que não seja um cara com uma serra elétrica na mão?

— Só tem eu — uma voz grossa se pronuncia, preenchendo todo o espaço.

De repente uma figura se materializa na minha frente num piscar de pálpebras. O homem também usa as mesmas vestimentas que eu, porém algo nele muda todo o propósito da situação. Parecemos ser iguais, mas não somos no final das contas.

— Daniel Arthur Boone — arregalo minhas órbitas. Esse cara me conhece?.

— Como sabe meu nome?

— Eu sei tudo sobre você — ele lança um sorriso de lado — sei as circunstâncias de seu nascimento, de seu crescimento. Sei com quem você vai casar, sei exatamente o que você fará daqui em diante. Sei também que você pensou um palavrão antes de dizer “alô”.

Eita. Deus, me ajuda!

— Ah, e eu sou Deus — Ele arqueia as sobrancelhas.

MAS COMO É QUE É?

— Como? Como assim, o senhor é Deus?

— Eu simplesmente sou. Sou tudo o que a Bíblia descreve, mas sou muito mais do que aquelas palavras.

— Certo. O senhor é Deus, então deve saber o que estou fazendo aqui, não é?

— Vim te fazer uma proposta, e te apontar as consequências da sua resposta a essa coisa que irei te propor.

— E isso seria…?

— Daniel, neste momento você está em coma na Terra enquanto conversa comigo aqui. O coma não foi induzido, porque você ficou inconsciente logo depois de receber uma faca bem nas costas. Seu pai está preocupado com seu estado de vida e seu tio está quase cometendo um crime contra a pessoa que te feriu.

MAS COMO É QUE É?

— Fala logo de uma vez o que o senhor quer me propor. Sem ofensa, sem crítica, mas eu tô nervoso!

— Tudo bem, tudo bem — Ele ergue as mãos pedindo por paciência. A situação já está tensa e Deus me pede paciência? — Daniel, você tem duas opções. Você pode morrer para o mundo e vir morar comigo, finalizando seu propósito na Terra e vivendo a sua eternidade aqui. Ou você pode voltar para lá, sair do coma e resolver seus problemas para encontrar um novo objetivo para a sua vida.

Uma cadeira aparece ao meu lado — só Ele explica — e eu me sento imediatamente, enfiando a cara nas minhas mãos enquanto penso no que fazer. Certo, Daniel, você tem a escolha da sua vida. Literalmente. É você quem vai decidir o que fazer de agora em diante. Ou você morre e se livra de todo aquele peso carregado nas costas para o resto da eternidade, ou volta lá só para ficar aturando opiniões chatinhas aqui, preconceitos ali e você tenta apenas resolver a parte pendente do que realmente importa. Ou você descobre quem realmente sentirá a sua falta quando morrer na Terra, ou você sai perguntando em vida.

— Mas, espera aí… por que isso tudo? — Indago, voltando a encarar Deus à minha frente. O negócio é ter respeito, certo? — Por que o senhor me ofereceu isso? Qual o seu objetivo nisso? E por que o senhor me aceita aqui se eu morrer? O senhor sabe de tudo e sabe que eu sou gay. Por que ainda me aceita?

— Meu amigo — Ele puxa uma cadeira de Ele-sabe-onde e se senta cara a cara comigo — há muito mais coisas sobre mim que o mundo não parece compreender. Independente de você estar comigo ou não estar, eu ainda serei Deus e ainda vou te amar. Eu amo a cada um dos meus filhos e não deixarei de fazer isso enquanto tomar conta deles.

Suas palavras me fazem ponderar mais a respeito do que fazer.

— Os tempos na Terra ficaram tão difíceis… e eu não vou mentir: houveram momentos em que eu desejei morrer para acabar logo com tudo isso. Eu quis extrair o mal pela raiz, eu quis isso. Eu só não aguentava mais toda a pressão em cima de mim para permanecer forte enquanto todo mundo se juntava pra me botar pra baixo, sabe? Parece que todos os meus problemas resolverem se ativar de uma vez só e isso acabou comigo, acabou com minha sanidade mental, foi mais do que eu podia segurar. Eu quis desabar de vez. Mas agora, tendo a chance de escolher uma vida lá ou uma vida aqui… eu sinto que posso fazer alguma coisa. Eu me sinto potente. Eu me sinto forte o bastante para voltar lá e encarar meus medos. Eu sinto que posso ir lá e fazer a diferença. Como diria Ferris Bueller… a vida passa muito rápido. E se eu não parar e olhar em volta de vez em quando, eu posso perder a vista. Eu posso perder isso. E não quero perder a chance de me redimir. Não quero morrer dessa forma.

Levanto-me da cadeira, convicto de minha escolha. Vou me arrepender depois na primeira vez que gritarem comigo? Com certeza. Pode apostar. Mas eu não vou cair tão facilmente.

— Deus, eu quero voltar vivo pra lá.

Vejo-o sorrir, e logo em seguida tudo fica mais branco do que o normal. Uma cor branca que me cega momentaneamente. E eu sei exatamente para onde o vento está me levando.

.::.

Washington, D.C.

24 de Abril de 2016

9 dias depois da facada… que não me matou

A primeira coisa que noto é um aumento na frequência cardíaca ouvida num desses aparelhos. A segunda coisa que noto é que não posso me mover pra nenhum lado — até porque, convenhamos, eu levei uma maldita facada nas costas. Sem chance de eu me mover tão cedo. A terceira coisa que percebo é minhas pálpebras me proporcionando uma visão parecida com a que tive há pouco. Será que foi um sonho? Será que eu realmente tive um momento com Deus? Eu vi a Sua glória?

Meus pensamentos se dissipam no instante em que noto o tom meio acinzentado do teto. Da última vez que eu vi um teto assim, eu estava num quarto de hospital devido a uma infecção urinária. Não foi um dia legal da minha vida, por isso não gosto de lembrar. Então me dou conta de que estou mesmo num quarto de hospital.

— Daniel? — Uma voz feminina irrompe o ambiente.

Não preciso nem me esforçar para ficar ereto na cama a fim de descobrir que a dona da voz não é ninguém mais, ninguém menos que dona Ellis Marin-Boone. A mãe do ano. Aquela que começou toda a reviravolta na fatídica noite de 15 de abril de 2016. E então tudo o que me trouxe até aqui volta à minha mente numa série de flashbacks: a noite da minha festa surpresa, o meu surto ao revelar minha sexualidade para toda a família de uma vez só, a rejeição de minha própria mãe, a minha fuga rápida de casa incentivada pelo meu próprio pai, a vontade de chorar nas horas que se passaram. Eu indo a uma festa de arromba com Klaus Furler, tendo altas interações com ele e tretando com Shawn Hans. E o momento da faca enfiada em minhas costas… e minha surpresa ao ver que havia sido culpa de Kian Gray, a paixonite da minha melhor amiga.

E estou vivo.

Tentaram me derrubar, mas eu estou vivo. Estou respirando. Isso é bom, não é?

— O que faz aqui? — Pergunto, voltando meus pensamentos para a situação e tentando impor frieza em minha voz.

— Eu… quis saber como você estava, e o enfermeiro me deixou entrar — seu olhar parece se perder enquanto ela tenta não me olhar nos olhos — e eu queria pedir desculpas pelo que falei naquela noite.

— Como? — Fico totalmente atônito com o que acabo de ouvir. Ela quer pedir perdão agora?

— Acho que eu passei da conta nas palavras. Não importa o tanto que eu disse ou deixei de dizer naquela hora, porque no fim eu sou sua mãe e você é meu filho. Devemos nos apoiar em toda e qualquer situação. Entenda meu lado, por favor.

— Sou todo ouvidos — cruzo os braços na altura do abdômen.

— Eu já vinha notando que você era um pouco… diferente das crianças comuns desde o começo, Daniel. Lembra quando você tinha seis anos e eu precisei te buscar mais cedo na escola um dia? — Aceno em concordância com a cabeça — Sua professora havia me chamado pra conversar sobre você e sua amizade muito próxima com um amiguinho que você tinha. Ela me contou que aquilo não era típico de apenas amigos de infância, e me pediu pra ficar mais de olho no seu comportamento… claro que eu achei que era besteira porque você não tinha o discernimento do que era certo ou errado e que isso era apenas coisa de criança. Mas eu prometi a mim mesma que te diria que aquele tipo de situação não deveria acontecer quando você tivesse mais cabeça pra entender.

— Isso explica toda a sua censura desde aquele momento.

— Eu acho que fui até longe demais nessa história, e é por isso que eu vim pedir desculpas — ela parece realmente estar nervosa. Suas mãos não param de se mexer, e penso até que tem um pouco de suor nelas — eu não devia ter feito o que fiz, deixado aquela marca profunda em você e no seu coração… eu não queria ter dito as palavras da forma como eu disse. Eu devia ter pensado melhor antes de agir, eu devia ter me controlado e tentado um diálogo mais civil com você. Pode me perdoar?

Ellis finalmente consegue encarar meu rosto, e continuamos sustentando o olhar por longos segundos. Minha mente hesita em perdoá-la por suas palavras ou não. E se ela não me aceitar, no final das contas? Eu posso até aceitar as desculpas pelo que ela falou naquela noite. Mas vai ser muito mais difícil para minha mãe conviver com minha personalidade finalmente revelada. Ela não vai se acostumar tão cedo, e talvez nem se acostume. Eu tenho medo de que ela me censure novamente, de uma forma ou de outra. Tenho medo de que a dona Marin afaste meu irmão de mim, achando que vou influenciá-lo nessa história de sexualidade — quando eu jamais faria isso com o Justin; quem tem que decidir o que quer é ele e não eu. Penso até que ela forçará a barra para me reconectar com os jovens da igreja, mesmo eles sabendo tanto quanto ela sobre eu ser homossexual. Ellis não é de ficar de braços cruzados frente a uma situação dessas. Ela vai tentar algo e eu não quero sofrer com isso.

Meus pensamentos são mandados para longe quando finalmente foco mais em suas mãos e noto o que eu desejaria nunca ter notado.

— Você está sem o anel do papai.

Ela encara o dedo onde deveria estar a joia, claramente consternada pelo que percebi.

— Aaron deu entrada no processo de divórcio e não vi mais razão para usar o anel — é tudo o que ela consegue responder, deixando de me encarar.

— A senhora não desistiria tão facilmente, pelo que eu conheço da dona Ellis Marin-Boone — franzo as sobrancelhas. Tem caroço nesse angu e eu vou descobrindo conforme jogo meu argumento — a não ser que essa separação fosse a chave da sua liberdade para fazer o que bem entende e com quem quer.

Silêncio absoluto. Ela está assentindo tudo o que falo.

— Então a senhora não está nem aí pro processo doloroso que vai separar essa família porque você não vai largar do seu amante, não é? — Ellis procura desesperadamente por sua bolsa, que está a poucos metros de si — Eu não sei com qual deles você está no momento e nem quero saber. Mas dada a minha percepção de que a senhora só está aqui para ganhar pontos no tribunal e facilitar a guarda compartilhada, e vai por mim, eu sei disso muito bem graças aos jornais que você mesma me fazia ler antes da semana passada — minha voz começa a se tornar mais autoritária no ambiente, e só aí me dou conta de que preciso controlar o surto para não acontecer o mesmo ataque do dia do meu aniversário — eu sugiro que a senhora pegue suas coisas e não volte a me visitar. Não sei por quanto tempo ficarei nessa cama de hospital, então considere isso como um adeus. Sei que a senhora fará isso porque, no fundo desse seu coração confuso, tem um pouco de amor e respeito pelo seu próprio filho mais velho, coisa que você só não teria se eu não fosse sangue do seu sangue.

— Mamãe? Dan? — Uma voz de criança adentra o quarto, e ergo a cabeça para ter certeza de que é mesmo meu irmão Justin — Você acordou!

— Pois é, pequeno — esboço um sorriso meio tímido, bagunçando seus cabelos quando ele se posiciona de pé ao lado da cama — como está?

— Tô legal. E eu não sabia que você tinha tantos amigos.

— Como assim? — Pergunto, interessado em seu comentário, enquanto noto Ellis caminhar a passos largos e rápidos para fora daqui.

— Um monte de gente veio procurar por você enquanto você estava dormindo. Seu preguiçoso, devia ter acordado pra receber as visitas!

— Eu quis acordar na hora certa, só isso — sorrio mais abertamente, querendo rir com as palavras de meu irmão de cinco anos — quem está aí fora me esperando?

— O papai, o tio Andy e um amigo dele, até a vovó Boone está aí!

— A vovó?

— Na verdade o papai saiu pra almoçar com ela, então só tem o tio lá fora.

— Pode chamar ele pra mim, Justin?

— Ô, TIO ANDY — ele grita enquanto corre para a porta, quase me ensurdecendo e provocando uma leve pontada de dor na minha cabeça — O DAN ACORDOU! O DAN ACORDOU!

Eu nunca pensei que sentiria falta dos gritos de Justin Boone. Nunca mesmo.

— Precisa de todo esse escândalo, menino? — O dono dos fios loiros de cabelo aparece na fresta da porta — Mas não é que esse dorminhoco realmente acordou?

— Oi, tio — aceno sem levantar muito o braço, visto que meu corpo todo ainda está dolorido de tanto tempo acamado e sem se recuperar direito da faca — saiu o Lemonade da Beyoncé?

— Bom, você ficou dormindo por uma semana inteira, então digamos que o Lemonade tenha saído ontem… o que você faria?

— Perguntaria se o senhor gravou o especial na HBO e se baixou o álbum.

— Eu não gravei o especial, desculpa… mas posso comprar o Tidal no celular e aí você assiste, já que não vai ter o que fazer por muito tempo — ele se aproxima da minha testa e deposita um beijo nela, e depois apoia suas mãos em meus ombros — bem-vindo de volta à Terra, sobrinho.

É aqui a parte onde minha consciência se dá conta do que está havendo.

Eu estou vivo. Vivísimo da Silva. Há esta hora minha família — ou pelo menos uma pequena parte dela — poderia estar chorando a minha morte num funeral. Há essa hora meus amigos poderiam estar desolados e sem ter a mim. Talvez Raven fosse a que mais sofreria, até porque nos conhecemos desde os cinco anos de idade. Mas tenho certeza de que Peter ficaria triste no mesmo nível, porque o elo de amizade compartilhado entre nós supera qualquer barreira do tempo. Há essa hora, Kian Gray poderia estar vendo sua imagem ser rechaçada, jogada na lama com a explosão da notícia de que ele me matou e que não sairia da cadeia tão cedo por isso — tio Andy faria isso acontecer de um jeito ou de outro apenas para vingar minha morte. Ele seria capaz disso. Eu conheço meu tio.

Há essa hora, Klaus Furler poderia estar falando com seu pai — curiosamente meu professor de biologia — sobre mim. Não sei. Não quero ser egoísta a ponto de pensar que ele faria isso, até porque nem nos conhecemos direito. E olha que somos meros conhecidos há um bom tempo. Acho que, de todas as pessoas que sentiriam minha falta, ele seria um dos que mais me fariam voltar à Terra apenas para saber como está. E a essa hora… bom, eu não sei o que Shawn Graham Hans faria a essa hora. Eu não sei o que ele pensa. Eu não o conheço tanto quanto poderia. E depois da última noite em que estive acordado, não sei se quero conhecê-lo a ponto de saber o que ele faria se eu morresse. Talvez houvesse algum impacto, se eu tivesse morrido em seus braços, como quase aconteceu. Mas isso não importa no momento.

O que importa é que eu estou vivo. Mesmo tendo cometido tantos erros antes, mesmo tendo sofrido com todas as coisas que carreguei em minhas costas desde o começo dessa parte da minha história de vida, mesmo achando que passaria reto dessa vida e que ninguém se lembraria de mim devido à minha aparente irrelevância… eu estou vivo. Respirando muito bem, obrigado. Contrariando todas as expectativas de quem queria me ver morto. Eu nunca me senti tão vivo e importante como quando estive tão perto da morte. Eu nunca me senti tão agraciado por Deus até o momento em que eu pude escolher meu destino. Tentaram tirar tudo de mim, mas continuo vivo. Eu mesmo tentei tirar tudo de mim achando que ninguém mais me diria para fazer o contrário, mas no último segundo… respirei. E tudo foi da água para o vinho.

— No que está pensando? — Andrew pergunta, ainda com as mãos em meus ombros e usando a mágica de seus dedos para relaxá-los.

— Ainda não caiu a ficha de que estou vivo, sabe? Eu quis que tudo na minha vida se acabasse logo porque eu não aguentava mais tanta pressão… mas agora é tudo tão surreal. Eu nunca estive tão feliz por estar vivo, tio. É uma sensação incrível.

— Especialmente depois daqueles seus últimos dias. Eu tenho uma ideia de como você se sente… a gente só começa a viver de verdade quando se dá conta de que a morte bate à porta. Felizmente o mais próximo que cheguei de morrer foi quando Jason Ross me causou uns probleminhas internos, mas isso não vem ao caso e essa comparação inclusive foi péssima, certo?

— Ter problemas com ficante não chega nem perto de levar uma facada do seu colega de escola, tio.

— Ficante? De onde você tirou essa ideia, menino?

— O senhor — sua cara já esboça a raiva que ele sempre sente quando eu o chamo de “senhor” — realmente acha que eu não vi você e o Jason no maior clima de tensão sexual naquela noite? Ah, me poupe, se poupe, nos poupe desse segredo — imito minha melhor expressão cínica.

— Por favor, me diz que a gente não precisa falar disso agora…

— Enquanto estivermos cercados pelo hospital deprimente, eu não vou falar disso nem contigo e nem com ninguém. Mas teremos essa conversinha muito em breve, ficou claro?

— E quem você pensa que é pra mandar em mim desse jeito?

— Sou o melhor sobrinho que você respeita e o chantagista de primeira categoria que você atura.

Washington, D.C

26 de Abril de 2016

11 dias depois da facada... Que não me matou

Após a visita — inesperada — de Ellis e logo em seguida ao do meu tio Andy, o silêncio tomou conta do quarto branco em que eu me encontrava. As cortinas azuis claras balançavam com o pouco vento que vinha da janela aberta e eu questionava-me nas horas vagas como estaria a situação do mundo lá fora.

O hospital era um ambiente silencioso e um pouco sombrio às vezes. As enfermeiras transitavam entre os corredores e o meu quarto pelo menos oito vezes ao dia, e quem mais marcou presença foi à senhora Betsy, uma mulher de 54 anos que se mostrou apaixonada pela profissão e pela história trágica da minha vida.

Não, eu não contei como as coisas realmente aconteceram. Na verdade, foi uma suposição que surgiu entre as enfermeiras e eu acabei contando alguns detalhes. Fui a uma festa, houve discussão e depois levei uma facada de uma pessoa que eu conhecia.

Nada demais. Eu disse para elas, mas por dentro eu estava desmoronando aos poucos por saber que o garoto por quem Raven estava apaixonada era o verdadeiro culpado.

Ele seria preso? Ele seria julgado? Qual o problema desse garoto? E desde quando ele se importava tanto com as decisões de Shawn Hans?

Meus pensamentos são interrompidos pelo abrir da porta de madeira branca que revelou um médico trajando roupas — adivinha de que cor? — brancas também. Arthur Muller era um homem de estatura baixa e com óculos redondos que adornavam um rosto jovem demais para bancar tal profissão. Ele piscava aqueles profundos olhos azuis para mim como se tivesse visto um milagre de Deus — literalmente —, justamente por eu ter sobrevivo com uma facada em minhas costas que poderia muito bem ter me deixado dependente de uma cadeira de rodas.

— Bom dia, Daniel — Arthur sorri revelando suas covinhas e puxa a prancheta para próximo dos olhos. — Como passou a noite?

Encaro as minhas cobertas e pergunto-me internamente como tenho passado a noite. É quando me recordo que consegui dormir apenas por três poucas horas e as outras passei encarando o teto branco com as lâmpadas apagadas.

— Estou com dificuldades para dormir — comento em um tom tão frio como o dele. Arthur assente e escreve algo na prancheta. — Isso é ruim?

— De forma alguma — o médico de aproxima da minha cama e verifica os medicamentos que estavam sendo medicados em minha veia desde que acordei. — Vou pedir para Betsy aumentar a dosagem de Lexotan. Ela irá aparecer daqui alguns minutos.

Arthur fez mais algumas perguntas, me examinou com cuidado e depois se retirou do quarto. A enfermeira Betsy apareceu logo depois, injetou o tal do medicamento em meu corpo e eu finalmente consegui dormir depois de quase dois dias completamente acordado.

[...]

Um corpo pequeno se chocando contra o meu é o que me acorda. A princípio penso que estou morrendo — depois dessa facada qualquer coisa é motivo de morte —, mas finalmente consigo focar no corpo de Justin chacoalhando o meu para que eu me acorde e possa ouvir suas lamúrias.

— Acorde, Dan — os braçinhos agarram os meus e ele volta a me balançar. — Dan? Você não morreu, ? Dan? Você me ouvindo?

Os olhos pequenos do meu irmão encontram os meus abertos e ele sorri amistoso. Agarrou novamente o meu braço e esmagou a bochecha contra o meu peito, parecendo completamente feliz por me ver vivo. Depois de todo esse caos que causei, a última coisa que desejo é deixar Justin sozinho em algum momento de sua infância.

— O que aconteceu? — Pergunto acariciando seus cabelos macios com aroma de shampoo infantil. — Os seus brinquedos foram raptados?

Ele revira os olhos como se minha sugestão fosse ridícula e aponta para a porta fechada com o dedo indicador.

— Seu professor está aqui — Justin alega em um tom sério, como se fosse à visita do Papa em meu quarto.

— Qual professor?

Justin coça o queixo e parece pensar. O cenho está franzido e suas sobrancelhas tem o mesmo rumo, fazendo assim uma ruguinha surgir entre elas.

— Papai disse que é alguma coisa com bio... — ele bate as palminhas em meu rosto parecendo pensar. — Me ajuda, Dan!

— Biologia? — Suponho com um sorriso que é esmagado quando ele aperta com mais força minhas bochechas. — É isso?

— Sim! — Seus pés alcançam o chão quando ele pula da cama rapidamente. — Posso chamar ele?

Concordo com um balançar de cabeça enquanto o corpo de meu irmão desaparece do quarto. E nesses pequenos minutos sozinho deixo que o meu cérebro processe cada informação que ouvi.

Lucian Furler veio me visitar. Lucian Furler, o meu professor de biologia. Lucian Furler, o pai do garoto que beijei na festa de quase duas semanas atrás. Lucian Furler veio saber como estou.

E eu estou morrendo por dentro por ter sua presença em meu quarto.

O corpo do meu professor de biologia aplicada surge logo em seguida, trajando ainda o jaleco da escola, a camisa azul e as calças jeans escuras. E claro, aquela bolsinha de professor que não sei o nome. Ele exibe uma expressão cansada, como se aquele dia de aula tivesse sido extremamente estressante, mas nem isso o impediu de vir dar um pulinho no hospital e verificar com os próprios olhos se eu realmente estava com o coração batendo.

— Olá, Daniel — Lucian murmura as palavras com lentidão, os olhos encarando cada canto do meu corpo que estava descoberto. — Como você está?

Por incrível que pareça, nunca ouvi tantas vezes essa mesma pergunta em um intervalo de poucas horas. As enfermeiras, os médicos, meu pai, tio Andy, Justin e até mesmo o meu professor intrometido. E pela primeira vez na vida, eu não precisava mentir quanto a isso.

— Estou melhorando aos poucos — dou de ombros levemente e sorrio amarelo. — O que me deve a sua ilustre presença?

O meu tom irônico não passou despercebido, e Lucian revira os olhos enquanto emite uma risada baixinha. Seus passos se aproximam da poltrona ao meu lado e ele se senta, soltando um sonoro suspiro e parecendo agradecido por pequenos segundos de calmaria.

Não digo nada, apenas o observo.

Lucian Furler era um homem belo — isso eu tinha que confessar. Mas apesar da pose de homão da porra, ele também trazia consigo rugas de preocupação e uma expressão sempre preocupada. Eu pouco sabia do seu casamento, da separação e de como ele conseguiu ficar com a guarda de Klaus. Talvez a mulher tivesse se mudado de país, renegado a criança, ou no pior dos casos, falecido.

Naquele momento tudo indicava que ser um pai solteiro não estava sendo uma tarefa fácil.

— Desculpe, dia difícil no trabalho.

— Te dou todo o tempo do mundo, professor.

Lucian assente e bate levemente com as mãos nos joelhos, para logo depois abrir aquela pasta — ou bolsinha, sei lá — e tirar lá de dentro vários papéis, os analisando com cuidado e trocando olhares comigo.

Eu me mantive eu silêncio todo esse tempo, não entendo patavinhas do que tudo aquilo acabaria levando. Eu seria reprovado por faltas? Eu seria expulso da escola por ter sido esfaqueado? Lucian viu que minhas notas nas outras matérias eram tão desastrosas quanto na dele? Eu teria que ter uma ajuda extra? Eu estava fadado ao fracasso?

— Eu sei da preocupação de sua mãe com as aulas, Daniel — a mera menção a Ellis faz um calor subir por meu corpo. — Ela me ligou tem alguns dias pedindo para que eu evitasse a sua reprovação por conta do hospital. Eu não sei quanto tempo você passará aqui ainda, então vim evitar que você repita o ano por causa de todas essas complicações que surgiram inesperadamente.

— Como assim?

O que está acontecendo aqui, meu Deus?

— Irei repor todas as aulas que você faltou ou ainda irá faltar — ele fecha a pasta rapidamente e volta e me encarar. — Mas eu não vim tratar exclusivamente disso, mas de Klaus.

Merda.

Estava óbvio que a visita de Lucian não envolveria apenas a sua preocupação — e a de minha mãe — com as aulas. O pai que estava quase fadado ao fracasso familiar estava determinado a saber o que realmente aconteceu naquela noite trágica da minha vida.

— O que você quer saber?

— O que Klaus fez com você naquela noite.

Naquela noite. Ninguém se referia como a “noite da facada”, mas sim como “aquela noite que não deve ser mencionada”. Chegada a ser cômico. A noite trágica da minha vida era como Voldemort em Harry Potter.

Klaus me mudou.

Mas eu não digo isso. Pela primeira vez naquele 2016, eu digo a total verdade. Conto superficialmente que houve um desentendimento em minha família causado exclusivamente por mim, que voltei para casa ouvindo a discussão dos meus pais e depois fui acordado por meu pai em plena madrugada para fugir de casa. Ficamos alojados no apartamento do meu tio Andrew, e foi neste momento em que Klaus Furler apareceu com sua moto potente pronto para me levar o paraíso que eram os seus lábios.

— Klaus então me beijou — digo isso com a sensação das minhas bochechas pegando fogo. — E fomos para a festa de Phoebe.

Lucian assente, entretanto, não parece muito surpreso com a minha revelação do seu filho ser adepto a beijar homens e não mulheres como segue o roteiro.

— O mais estranho de tudo isso é que nem éramos muito amigos — seguro a coberta com força entre os meus dedos evitando o olhar do homem diante de mim. — A presença dele e todos os acontecimentos que se seguiram foram uma total surpresa para mim.

Ele assente — novamente — e parece processar em silêncio tudo o que disse. No entanto, Lucian não parecia muito surpreso. Talvez, — bem lá no fundo — um pai sempre note quando o filho estava com os comportamentos alterados.

— Você provavelmente deve achar muito suspeito o meu silêncio — ele comenta com um sorriso, como se fosse capaz de ler os meus pensamentos mais profundos. — Mas eu notara nestes últimos meses um comportamento diferente em Klaus.

Viu só!

— Kendra me ligou diversas vezes — percebendo o meu semblante perdido, Lucian se prontifica em dizer: — Kendra é mãe de Klaus, minha ex-mulher. Ela vem visitar o filho a cada duas semanas, e também notou pequenas diferenças em Klaus.

Assinto sem saber o que dizer. Klaus tinha uma mãe, mas nunca a mencionara em nenhum dos — poucos — momentos que estivemos juntos. A mera menção a sua presença fazia meu coração dilacerar, pois tudo indicava que fora ela quem desejou o fim do casamento e não Lucian, como normalmente acontecia.

— Depois de Kendra ter mencionado esse comportamento, eu investiguei Klaus mais como um professor do que pai. Ele vivia sorridente, cantando pelos cômodos da casa e até voltou a tocar violão. O que não acontecia desde que Kendra foi embora. — Lucian relaxou os ombros, como se estivesse tirando um peso das costas. — E agora eu percebo o que realmente estava acontecendo.

E o que realmente havia acontecido?

Klaus havia me beijado como ninguém tinha feito antes — literalmente — e passei a abrir os olhos quanto a sua presença. Ele sempre esteve me rodeando, e mesmo que eu tivesse apenas olhos para Shawn Graham Hans, Klaus ainda conseguia me chamar à atenção.

As piadinhas sem graça, a bondade e o sorriso repleto de boas intenções. Ele tinha uma boa alma, eu que fora bobo demais para me apaixonar pela pessoa errada.

— Eu sinto muito, Lucian — digo em um tom tristonho, não sabendo se ele estava feliz ou triste com minha revelação. — Se você...

— Não, Daniel — sua mão quente tocou a minha fria. — Será um prazer lhe ter em nossa bagunçada família.

Rimos juntos e me permiti sorrir verdadeiramente depois de tanto tempo lamentando todos os acontecimentos em minha vida. Talvez — no final das contas — Klaus pudesse ser a cura que eu tanto busquei.


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Notas finais do capítulo

*a Lola postou o capítulo na quarta e eu vim na sexta colocar as notas finais. Podem me xingar*
E então, o que acharam do primeiro dos quatro capítulos finais* de OCDB? Queremos saber suas opiniões sobre "Alive". Deu trabalho pra começá-lo, mas quando começamos, não paramos mais e ficou essa coisa lacradora aí que vocês leram. Espero que tenham gostado e deixem seus comentários agora, tá?

*Sim. Primeiro dos quatro capítulos finais. Teremos "Here I Go Again" (baseado na música de Whitesnake e que sai já nessa quarta-feira antes do Carnaval, pro caso de vocês quererem ler no feriado), um episódio depois do final que se passará um ano e meio depois dos acontecimentos de "Here I Go Again" e o fucking epílogo. Aproveitem bastante essa reta final, booners! Aproveitem!



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