O Curioso Caso de Daniel Boone escrita por Lola Cricket, Heitor Lobo


Capítulo 28
Heathens


Notas iniciais do capítulo

OLÁ, MEUS AMORES! Tudo bem com vocês? Como vai o coração depois de todas essas bombas que jogamos no colo de vocês? Pois bem, agora teremos uma bomba ainda MAIOR, que no caso, é esse capítulo narrado todinho (eu já disse "todinho"?) pelo personagem que vocês escolheram amar ou odiar.
Infelizmente, eu não sou homem e em alguns momentos talvez a narração tenha ficado um pouco feminina demais, então peço imensas desculpas por isso.
Em segundo lugar, eu gostaria de agradecer a todos que estão comentando e dando as caras depois de vários capítulos escondidos na bolha dos fantasmas. Vocês são uns amores e nós agradecemos pela existência de cada pessoinha.

Agora, sem mais delongas, desfrutem de um capítulo invadindo a mente do nosso amado - ou não - Shawn Hans.
Boa leitura, mores ♡



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/669565/chapter/28

Você nunca sabe se há um psicopata sentado ao seu lado

Você nunca sabe se há um assassino sentado ao seu lado

Você nunca achou que eu sentaria ao seu lado?

— Heathens, Twenty One Pilots

 

 

Washington, D.C.

14 de Abril de 2016

02 dias antes da facada que pode ou não ter matado Daniel Boone

 

O desagradável aroma de nicotina presente no ambiente fazia minhas narinas coçarem e a ponta dos meus dedos formigarem cada vez que eles tocavam o copo que eu esvaziara diversas vezes desde que Jared Trevisan me convencera a visitar seu irmão alcoólatra.

Não fora uma boa decisão, pelo o que tudo indicava.

Os dois corpos de características semelhantes estão diante de mim e se tornam um borrão cada vez que pisco os meus olhos. Eu preferia acreditar naquele momento que era efeito do cansaço, e não da bebida presente em meu corpo.

Verônica ficaria decepcionada. Mas quem se importa com ela?

Relaxo meus ombros enquanto emito um lento suspiro. Depois de toda a discussão com meu pai e sua amada esposa, eu decidira me refugiar naquela garagem escura e beber a quantia de álcool que meu corpo suportaria até entrar em estado deplorável.

— São os pais de novo? — o irmão de Jared diz em um tom rouco, levantando a garrafa de uísque em minha direção enquanto meu amigo concorda com um aceno.  — Qual o problema com eles?

Qual o problema deles comigo? Eu queria gritar a pleno pulmões enquanto espatifava qualquer objeto de vidro presente em meu caminho até os fazerem falar. Mas eu desistira dessa ideia depois que percebi o quanto seria patético bancar o filho rebelde, e ainda receberia um discurso patético feito por Verônica.

— O pai se casou de novo — Jared responde com um leve dar de ombros. — Parece que a relação familiar despencou desde então.

Não fora apenas a relação familiar que despencou, mas também qualquer respeito que eu tinha por meu pai. Patrick Hans se tornou um fantoche nas mãos de sua mais nova esposa e um completo idiota com a chegada de seu enteado.

Aquilo não poderia ter ficado pior.

Bato com o copo contra a mesa de madeira e noto de relance o corpo de Jared se encolher entre seu irmão e a parede de tijolos vermelhos. Os dois também seguravam seus copos de bebidas, todavia não estavam nem perto do estado que eu me encontrava.

 Você está deplorável, Shawn. Você não é um péssimo filho, Shawn. Você é um completo fracasso, Shawn. Você envergonha sua mãe, Shawn.

Uma mistura de vozes ecoava em minha cabeça com um turbilhão de imagens se formando diante dos meus olhos. Patrick levantando a mão e acertando um soco em meu rosto enquanto eu revidava. Verônica com seus grandes olhos julgadores batendo a porta do meu quarto. Kian rindo das escadas enquanto eu recebia minha punição. E por fim, Kim acariciando minhas orelhas em uma noite fria.

Essa última parte era a que mais doía. Não por se tratar — realmente — de uma lembrança, mas sim por ela nunca mais poder se repetir.

 Reprimo ao desejo de tomar a bebida das mãos do irmão de Jared e encher o meu copo até o limite permitido.

— Ele está péssimo, Jared — ele repete aquela frase pela segunda vez em um intervalo de dez minutos. — Talvez seja melhor você levá-lo para casa.

Meu amigo tenta argumentar com as desculpas que eu sempre inventava quando chegávamos a esse assunto. Entretanto, pela primeira vez depois de meses eu mesmo me levanto daquela cadeira antiga e faço um sinal para que Jared me siga.

Os meus primeiros passos até entrar no JEEP verde escuro de Jared são um completo fracasso. Minha cabeça rodopiava e meu estômago não era mais o mesmo desde que o primeiro gole tocou os meus lábios. Eu estava mesmo deplorável.

— Tem certeza disso? — Jared indagou com as mãos segurando firmemente o volante enquanto lançava-me um de seus olhares de canto. — Você conhece as consequências...

Bato com o punho no vidro para que ele se cale.

— Apenas me leva pra casa, porra.

O moreno concordou com um balançar de cabeça e dirigiu o JEEP com uma habilidade incrível para alguém que acabara de beber — mesmo que pouco.

A casa de dois andares e com estrutura tipicamente americana surgiu duas quadras depois. O jardim estava em perfeito estado como Verônica gostava e as flores fazia um contraste bonito com os pinheiros — só que nada dali conseguia me agradar.

Desço do carro com uma facilidade melhor que minutos atrás e caminho a passos cambaleantes até alcançar a porta da frente. Patrick me odiaria ver chegando daquele jeito em casa. Solto uma risada esganiçada enquanto abro a porta e chuto o tapete para longe do caminho antes que eu tropeçasse nele também.

Foi uma questão de segundos até Verônica surgir entre as escadas e descer cada degrau lentamente como se testando a minha paciência. A loira com corpo magro e olhos verdes era a maldição em forma de ser humano. Ela ainda trajava as mesmas vestimentas de horas atrás, mas agora seu rosto não exibia nenhuma maquiagem.

É quanto noto uma coisa. Ela estava chorando.

— Shawn — ela diz o meu nome em um fio de voz. — Onde você esteve?

Reviro os olhos enquanto tento apoiar meu corpo na parede de espelhos.

— E isso importa? — Faço um sinal para o vestido azul marinho que ela trajava. — Alguma vez você se importou?

— Bem provável que não — Verônica responde sem vacilar e olha de relance para a porta fechada ao meu lado. — É melhor você subir. Não vai querer atrapalhar a visita do seu pai.

Estreito os meus olhos entendendo onde ela queria chegar. Verônica temia uma explosão como da última vez, onde eu quebrei os seus pratos importados e briguei com Kian na sala de estar.

Ao relembrar daquela noite encaro minhas mãos. Os nós dos meus dedos não estavam mais em carne viva e agora cicatrizavam lentamente. Se eu fechasse meus olhos com força conseguia relembrar com facilidade dos acontecimentos e do sangue escorrendo entre meus dedos.

Sorrio de canto ao imaginar os mesmos acontecimentos se desenrolando agora diante de um público maior.

— Shawn — seu tom era de alerta e totalmente frio. — Não faça isso.

Reviro os olhos e passo as mãos por meu cabelo.

— O que você acha que irei fazer, Verônica? — Levei à mão a maçaneta da porta enquanto minha madrasta avançava em minha direção. — Causar uma má impressão?

Os cabelos loiros balançavam enquanto ela caminhava a passos rápidos em minha direção. A expressão contida em seu rosto quase me fez desistir de destruir tudo. Quase. Porque eu jamais — em hipótese alguma — teria qualquer tipo de remorso ou pena em relação à família Hans.

Empurro a porta com força no mesmo segundo em que Verônica leva às mãos frias a maçaneta, cobrindo as minhas. O baque de seus saltos contra o chão da sala fria faz um suspiro tomar conta do ambiente e um gritinho de surpresa se processado.

Um gritinho feminino.

A princípio tudo parecia absolutamente normal. A sala fria em tons mais frios ainda estava com as janelas fechadas, os livros empilhados perfeitamente por autor e a mesa de carvalho escondia mais papéis que eu era capaz de contar. O vaso de flor artificial esquecido em um canto e as cadeiras de estofado cinza estavam todas desocupadas, exceto a da ponta.

O corpo sentado nela está ereto, exibe um vestido preto e sapatos carmins. Eu diria que a expressão trazida no rosto da mulher me era desconhecida, mas os olhos castanhos não mentiam. Aqueles olhos castanhos me fitavam em reconhecimento.

— Filho — a boca feminina processou em um fio de voz. — Meu Deus, Shawn, o que houve com você?

Os passos da mulher são precisos e os saltos batucam com força contra o piso, mesmo que ela andasse tranquilamente em minha direção. As mãos quentes tocam minhas bochechas frias e ela sorri, mas sem mostrar os dentes.

— Mãe? — É tudo o que consigo dizer antes de sentir as úmidas lágrimas tomarem conta do meu rosto.

Kim Benett enxuga minhas lágrimas com os dedos trêmulos e por fim me abraça. Não foram apenas quatro anos longe de casa e convivendo com meu pai, mas quatro anos longe da única pessoa que me compreendia.

Não, eu não sou o filho renegado. Apenas achei mais convincente passar algum tempo com meu pai ao ter que encarar as longas viagens de negócios que minha mãe fazia ao longo do ano.

Pior escolha da minha vida, a propósito.

 — O que aconteceu com você, Shawn? — Ela repetiu a pergunta de minutos atrás, contudo agora a preocupação reluzia em seus olhos. — Você bebeu?

— Talvez — dou de ombros. — O que você está fazendo aqui?

Kim não me deu ouvidos e se afastou minimamente do meu abraço apenas para lançar um de seus olhares frios — que eu conhecia muito bem — para Patrick.

O arrogante empresário estava sorrindo maleficamente para nós dois. Ele nunca foi o tipo de pessoa que se abalava por palavras ou olhares efetuados por Kim e lidava com os problemas exibindo aquele — patético — sorriso.

— Patrick — minha mãe agarra o meu braço e nesse momento nota os meus machucados. — O que você fez com o Shawn?

— Não fiz nada, Kim — seu tom de voz é tranquilo e ele contorna a mesa a passos lentos, abrindo o primeiro botão do seu paletó e afrouxando a gravata com os dedos firmes. — O filho que você deixou para trás só não é mais o mesmo.

O clima na sala pareceu pesar ainda mais com as palavras de Patrick. Verônica estava apoiada no balcão escuro próximo da estante, respirava com dificuldade e lançava olhares de esguelha a cada cinco segundos em direção à porta semiaberta.

— Eu não o deixei para trás, Hans — o sobrenome soou estranhamente irônico em seus lábios. — Fiz o que era preciso.

— Claro — concordou com um aceno e finalmente a gravata estava solta. — Verônica, peça para Astrid servir o jantar dentro de uma hora.

Mas, pela primeira vez em anos, minha madrasta não obedeceu às palavras de Patrick. Não sei se era porque ela estava em estado de choque pela presença inusitada de Kim, ou por não ser capaz de processar as informações.

— Verônica? — chamou o homem diante de mim. — Faça o que eu mandei.

— Patrick... — um suave gemido escapou de seus lábios no exato segundo que Kian abriu totalmente a porta e sorriu amistoso para todos da sala.

Exceto para mim.

— Senhora Benett! — Ele caminhou em direção a Kim e lhe beijou suavemente a mão. — Um prazer finalmente conhecê-la.

Não me lembro em detalhes como a noite terminou, mas tenho a vaga sensação que foi da pior forma possível.

 

[...]

 

 Washington, D.C.

15 de Abril de 2016

01 dia antes da facada que pode ou não ter matado Daniel Boone

A atmosfera dentro do carro não era a melhor de todas. Eu sentia como se a qualquer momento o gatilho seria puxado e todo o caos me consumisse. Mas não aconteceu. Não naquele momento, pelo menos.

— Não entendo porque está fazendo isso consigo mesmo, filho — Kim suspirou, os dedos magros segurando com força o volante do carro. — Poderia ter me dito que estava passando por problemas.

— Não estou passando por problemas, mãe — seguro com mais força a minha mochila enquanto vejo a escola surgir em meu campo de visão. — Eu só não quero conversar sobre isso.

Ela assentiu e desviou o olhar do meu. Talvez estivesse magoada ou cansada de tentar entender o filho complicado que encontrou depois de anos. O pior era a sensação que dominava o meu peito e parecia estar em discordância com os meus pensamentos.

Eu queria ser uma pessoa melhor por Kim. Queria que ela tivesse orgulho de mim. Mas os meus pensamentos não seguiam essa linha. Meus pensamentos queriam chutar o bom senso e beber até esquecer tudo.

Ela finalmente estaciona o carro e tenta sorrir. Eu conhecia aquela expressão que carregava o seu rosto: desamparo, decepção e incerteza do amanhã. Eu vivia com aquele peso todos os dias e a maior parte das noites em que eu me encontrava sóbrio. Talvez aquela expressão estivesse presente na família há anos e passada de geração para geração sem eu nunca ter me dado conta.

— Tenha uma boa aula, Shawn — Kim se despede com um beijo em minha testa e abro a porta do carro, dando graça por finalmente estar livre de todos os seus questionamentos.

Foi apenas eu alcançar a escadaria para Charlotte Evans entrar em meu campo de visão. A garota de estatura média e peitos avantajados fez um calor subir por minha espinha. Apesar da pose de patricinha e a voz irritante, ela conseguia apagar minhas preocupação de um jeito menos caótico.

Ela abriu um sorriso caloroso a me ver e correu em direção aos meus braços. O perfume doce preencheu o ar que eu respirava e os lábios engrossados de gloss encontraram os meus em um piscar de olhos, mas o ato não foi demorado já que Mathew bateu em meu ombro com força.

— O motel fica na outra rua — brincou e Charlotte revirou os olhos da mesma forma que fazia quando estávamos sozinhos no armário do zelador. — Vocês vão à festa de Phoebe?

A imagem de Phoebe me vem à mente. Eu a vira poucas vezes com Klaus e os dois formavam uma boa dupla, exceto pelo fato de Klaus bancar o cavalheiro quando estava com ela.

Ridículo.

— Sim — concordei com um aceno e joguei a mochila no chão apenas para sentar-me em um dos bancos de madeira e dar a chance de Charlotte depositar aquela bunda em minha perna. — Sabe se mais alguém que conhecemos também vai?

Mathew então não calou mais a boca contando nos dedos quantos dos convidados à gente conhecia. Dos nomes que ele citava, eu apenas balançava a cabeça em concordância e desfrutava dos beijos que Charlotte depositava no meu pescoço.

— Shawn — ela gemeu quando apertei sua cintura. — A gente realmente precisa comparecer a aula de biologia aplicada?

O convite estava evidente em seu olhar e os lábios carnudos chamando por atenção. Apesar de eu estar consciente do meu boletim vermelho e dos avisos de Lucian Furler, eu jamais seria capaz de negar um momento a sós com Charlotte e seu poder de me distrair.

— Tudo bem — concordei com um sorriso e a ajudei a pegar a bolsa do chão. — Estamos indo, babacas. Nos vemos no intervalo.

Todos assentiram e apertei com força a mão de Charlotte enquanto caminhávamos silenciosamente em direção ao nosso momento de distração.

Isso deve servir, murmurei comigo mesmo quando fechei a porta do armário do zelador a tempo suficiente de ver Charlotte tirando a jaqueta do uniforme e desabotoando a minha calça jeans logo em seguida.

[...]

Por que você está fazendo isso? Por que você indo até lá? Por que você não vai embora?  As frases pipocavam em minha mente a cada passo que eu dava em direção ao ginásio da escola. A porta de metal se abre com facilidade entre meus dedos e a pouca iluminação não me permite ver muito além da arquibancada e de um corpo sentado na mesma.

A estatura mediana e os cabelos um pouco bagunçados me permitem desconfiar que fosse Daniel Boone. Não era ele que eu estava procurando, mas tudo bem. Ele, no entanto, não parece notar minha presença já que não mexeu um músculo se quer desde que entrei ali.

Dou dois passos em direção à arquibancada e espero em silêncio até que sua expressão se torne mais serena e eu finalmente possa me intrometer em seus pensamentos.

— Alguém alguma vez já lhe disse que pensar demais na vida faz mal a saúde? — Digo em alto e bom som enquanto ele desperta do próprio mundo e os olhos procuram por mim.

Abro um sorriso para ele. Um sorriso que eu sabia o quanto era capaz de balançar a estrutura das garotinhas inocentes da série anterior como a dele também.

— Bem, isso deve explicar o fato de você nunca ficar doente — Daniel finalmente se pronuncia quando estou diante de si com ele encarando os meus tênis.

Reviro os olhos enquanto me sento ao seu lado na arquibancada um pouco suja.

— Não seja tão mal humorado, Danico — o seu apelido criado por mim soa tão estranho em meus lábios que preciso desviar o olhar do seu, focando então toda a atenção em minhas mãos que descansavam em meus joelhos. — Como você está?

Era uma pergunta comum, mas mesmo assim noto seus lábios se contorcerem em desgosto e sua expressão mudar minimamente. Talvez fosse o cenho franzido ou as sobrancelhas arqueadas, contudo, ambas as atitudes demonstravam o quanto ele parecia descontente com a minha presença.

Melhor ainda.

— Melhor que você, devo dizer — Então ele notara, penso comigo mesmo e evito o ato involuntário de levar minha mão em direção ao olho roxo que eu estava conseguindo ignorar a manhã toda. — E você?

A pergunta me pega desprevenido e preciso respirar fundo para não deixar que as palavras fluam com facilidade entre nós dois. Era uma avalanche de acontecimentos que tudo o que eu desejava naquele momento era trancar-me em um quarto e ignorar a existência de toda a minha família.

Mas eu não podia.

— Muito bem — respondo friamente. A pior mentira que eu já contara naquela semana.

O silêncio recai sobre nós e espero que Daniel seja capaz de dizer alguma coisa. De fazer alguma coisa. Só que ele nunca fazia, sempre ficava preso naquela bolha próprio onde eu jamais conseguira romper — e duvidava algum dia conseguir — enquanto tudo o que eu mais queria é que ele arrombasse a minha bolha. Que destruísse todos os muros que construí ao meu redor e que fosse capaz de me enxergar de verdade e não como todos os outros faziam.

Nosso silêncio é interrompido quando a porta de metal se abre e revela uma garota de cabelos loiros e um pouco rebeldes. Os olhos azuis como um céu encontram os meus e me fuzila com o maior ódio que já tive a oportunidade de ver, e então ela encontra o corpo de Daniel ao lado do meu.

— Parece que a sua amiga não gosta de mim — digo entre risadas que fizeram uma pequena chama acender nos olhos de Daniel. — Passei aqui mesmo só para avisar que não vou voltar para casa com o transporte hoje.

— Tudo bem, Shawn — ele murmura sem me encarar ou qualquer outra reação que demonstrasse o que sentia por mim.

A garota loira se aproxima de nós dois e então noto que a reconhecia de algum lugar. De qualquer lugar. Então como se uma luz se acendesse em minha mente, lembro que Kian falara de alguma garota loira que estudava em nossa escola, um pouco marrenta e que tinha apenas amigos homens.

Acho que já a vi, Shawn, e desconfio quem seja. Ele me dissera uma vez quando bebemos além da conta na última semana. A amiga de Daniel era a garota. E talvez o idiota do meu meio irmão sem tivesse se tocado disso.

— A gente se vê... Por aí — faço um coração com as mãos apontando para o meu membro e os olhos de Daniel parecem se encher de alguma luz novamente.

Os dois desaparecem entre as portas de metal e elimino um suspiro que vinha segurando desde que entrei naquele ginásio. Daniel estava me deixando louco. Afundo as mãos em meus cabelos e preciso reprimir que um grito escape dos meus lábios e deixe toda a angústia livre para o mundo.

— Shawn — a porta de metal bate quando é aberta e depois fechada novamente e vejo o corpo de Klaus se aproximar do meu. — Eu vi o Daniel saindo aqui com a amiga dele e...

— Só cale a boca — digo sem olhá-los nos olhos. — E diga ao seu pai que não estou com paciência para estudar os órgãos masculinos nessa manhã. Já conheço o meu suficientemente bem.

Klaus assente sem dizer nada e se senta ao meu lado, o silêncio recaindo sobre nós dois como acontecera com Daniel minutos atrás.

[...]

Washington, D.C.

18 de Abril de 2016

02 dias depois da facada que pode ou não ter matado Daniel Boone

 O meu reflexo no banheiro masculino escolar era horrível. Gotas de suor percorriam meu rosto suado e um novo roxo se instala em meu olho esquerdo, mas não fora efetuado com força suficiente para me impedir de enxergar. Já as minhas mãos estavam em estado pior: a carne estava no vivo e todos os dedos se encontravam enfaixados.

Um acidente pequeno, eu dissera para Kim assim que cheguei à casa de Patrick após o acidente — ou não — com Daniel na festa de aniversário de Phoebe. Kian, no entanto, foi recebido com um abraço caloroso de Verônica e sorrisos orgulhosos de Patrick.

Orgulhosos pelo o que?

Eu não mencionara a facada com ninguém e nem os acontecimentos anteriores a ela. Para Kim eu fora a uma festa, me machucara ajudando alguém e depois bebi além da conta com Kian, e as gotas de sangue que ele trazia na camiseta azul clara eram porque ele tentou me ajudar após o incidente.

Mentira idiota.

Era uma manhã chuvosa de Segunda e ninguém tivera notícias de Daniel. Eu preferia ignorar os burburinhos que percorriam os corredores e as bocas femininas, mas após a aula de Educação Física as coisas tomaram um rumo diferente.

O papel amassado estava em meu bolso esquerdo da calça jeans e parecia pegar fogo toda vez que eu fazia menção de tocá-lo para lê-lo. Ele rodava de mão em mão e depois de boca a boca, e quando menos percebi, as cópias circulavam sem dificuldade alguma entre os alunos.

— Filhos de uma puta — murmuro comigo mesmo enxugando o rosto e jogando o papel toalha no lixeiro vazio.

Kian entra no banheiro e joga a camiseta suada em um canto enquanto outros garotos tomam o mesmo caminho. Coloco minha camiseta novamente e saio do banheiro a passos rápidos, mas não o suficiente para deter o aperto em meu braço.

— E nem pense em abrir essa boca — Kian avisa com um dedo batendo em meu peito. — Nós não estávamos naquela festa, Shawn, ouviu bem?

Reviro os olhos e empurro o seu corpo para longe do meu.

— Todo mundo sabe que estávamos lá — Kian respira fundo, como se contando mentalmente quantos socos seria capaz de me dar. — A sua cena de pegação com a Raven foi bem explícita.

Kian bate com o punho na parede e me lança um de seus olhares mortais.

— A sua cena de ciúme também foi bem explícita — ele contra ataca e aponta para o meu olho roxo. — O aviso está dado, Shawn. Cale essa boca e sairemos ilesos dessa.

Mostro-lhe o dedo do meio e saio dali antes que alguma aglomeração de pessoas se formasse ao nosso redor e os boatos só piorassem. Como se a vida estivesse lendo os meus pensamentos, Bonnie McSider entra em meu campo de visão usando a máscara de garota renegada que ela era especialista em exibir.

— Shawn — ela diz em um tom preocupado e fico perdido quando suas mãos agarram o meu bíceps. — Nós precisávamos conversar.

Lá vamos nós.

O armário do zelador estava quente e muito apertado naquele momento. Os cabelos castanhos de Bonnie estão presos em um rabo de cavalo e preciso segurar o meu insisto de apertar o seu corpo e distribuir beijos por toda a sua nuca exposta. Nós não temos mais nada fazem anos, porra. Ela, no entanto, parece imune aos meus pensamentos e retira um papel da bolsa.

O mesmo papel que ardia em meu bolso.

— Isso já deve ter chego aos seus ouvidos — ela apontou para o papel e desdobrou. — Só quero que leia com atenção.

Engulo a seco e seguro com os dedos trêmulos o maldito texto feito por algum aluno metido a besta daquela escola.

O QUASE ASSASSINATO

Todos dizem que o quase assassinato de Daniel Arthur Boone — para os íntimos, apenas Daniel — foi uma plena demonstração do que as pessoas são capazes de fazer em prol de seu próprio prazer. Os mais atentos discordam desta ideia. Ou apenas criam algumas teorias acerca do assunto mais comentado do ano.

Daniel Boone é o típico aluno recluso nos corredores escolares. Ele possui seus amigos. Possui uma família. E, consequentemente, possui inimigos. Mas quem estaria disposto a retirar sua vida com uma facada certeira nas costas? Quem estaria disposto a arriscar a própria vida em nome da morte da outra?

Quem é o assassino?

Poderia muito bem ser Klaus Furler, o filho do professor de biologia aplicada. O garoto é inteligente e sabe como usar as palavras para convencer as pessoas. O sorriso mesquinho detona sua fragilidade em relação a assuntos familiares e ao passado. Entretanto, Klaus nunca se sujaria com o problema dos outros, e de forma alguma se sujaria com a morte de Daniel.

Klaus, definitivamente, não tem pose de assassino.

Todavia, os seus amigos são a personificação perfeita de pessoas que cometeriam um crime sem premeditar. Jason Trevisan ficaria orgulhoso ao ver o sangue respingado em sua camisa branca com o símbolo de um time de basquete americano. Mathew Vaughn ajudaria a limpar a sujeira e depois faria o mesmo que fez com as garotas que transou: ignoraria que um dia algo aconteceu.

Já Kian Gray se manteria longe de toda essa confusão. Pelo menos é o que padrasto espera e o que a mãe ambiciona todas as noites. O garoto com pose de estereótipo de revistas é o exemplo familiar perfeito. Entretanto, ao passar pelas portas de metal do âmbito escolar, Kian assume uma nova personalidade.

A personalidade de um assassino.

As garotas apaixonadas por sua pose de misterioso achariam um absurdo o que estou teorizando. Kian Gray, o aluno de boas aparências seria capaz de se sujar com algo tão banal assim? Daniel e Kian nunca se deram bem. Mais um motivo para querer vê-lo morto.

Aposto que você também já desejou a morte de um inimigo. Por qual motivo Kian não poderia tornar esse desejo realidade?

A faca que ele carrega na mochila já pode incriminá-lo o suficiente. As botas sujas de lama que ele sempre traja também podem ocultar as gotas de sangue derramadas por Daniel. E a mania estranha de se refugiar na escuridão o coloca como principal suspeito.

Mas está faltando um integrante neste plano. Shawn Hans. O nome já causa arrepios apenas por ser mencionado. Faz as garotas sorrirem amistosas e os garotos desejarem sua expulsão por conta de tantas mancadas que o cara é capaz de cometer. E, claro, Shawn Hans é o motivo de todos os problemas de Daniel Boone.

Quando a bomba — e põe bomba nisso — caiu sobre a escola e fez os cochichos no corredor voltarem com força total, era óbvio que a glória e ego de Shawn Hans aumentariam. Além de as mulheres caírem aos seus pés, os homens estavam tomando o mesmo rumo.

Mas, oras, teria algum motivo para Shawn Hans matar Daniel? Ou ao menos tentar? Os dois sempre tiveram ótimas interações, risadas calorosas e abraços apertados. Não que eu tenha os observado. Contudo, veja por esse lado: o mauricinho seria capaz de sujar as próprias mãos para eliminar alguém que ele sempre manteve por perto?

Certamente não.

A lista de suspeitos apenas aumenta. E conforme os nomes vão surgindo gradativamente, as respirações curtas de Daniel Boone se tornam cada vez mais escassas. Quanto tempo vai durar um coração já quebrado? Quanto tempo vai durar esse mistério? Quanto tempo essa história se estenderá?

Por quanto tempo o assassino se manterá escondido? Ele pode estar entre nós. Ele pode ser seu amigo. Ele pode ser você.

— Me diz que não está metido nisso, Shawn — ela murmura quando termino de ler. Os olhos implorando por uma resposta positiva.

— Não se preocupe, Bonnie — aperto seus ombros levemente. — Eu jamais faria nada contra Daniel.

Os pequenos braços dela rondam o meu corpo e respiro fundo com o abraço que ela sempre era capaz de me acolher, mesmo que nós estivéssemos terminado o nosso relacionamento — se podia chamar assim — há quase dois anos.

Eu estava inocentado naquela história. E somente isso importava no momento.

[...]

A inocência vai até certa idade, ouvi uma vez alguém dizer, e naquele momento sentado diante da Delegada Carter — Amelie Carter — eu percebi que a frase fazia muito sentido.

O computador diante de si era teclado por seus dedos em uma velocidade incrível, ao passo que os olhos azuis encontravam os meus e procuravam qualquer traço em meu rosto que deixasse evidente a minha mentira.

Depois da aula e um almoço conturbado em família, a viatura da polícia estacionou em frente à casa de Patrick e eu soube que a investigação estava apenas começando. Um homem de estatura baixa que se apresentou como Arthur Mason conversou com Patrick por duas horas e depois eu com Kian fomos chamados para depor.

Eu me sentara na cadeira de plástico da sala iluminada de Amelie e encarei seus olhos por várias horas. Ela nada dizia, apenas anotava as coisas com calmaria e analisava o meu semblante com cuidado. Talvez procurando uma falha. Talvez procurando um sentido na história.

Só que não havia sentido algum.

Em cima da sua mesa descansava o papel que Bonnie havia me mostrado naquela manhã. Os nomes dos meus amigos estavam rabiscados e uma foto de cada um estava espalhada na mesa, como se Amelie não conseguisse encontrar um sentido para aquele acidente.

— Isso não vai funcionar, Shawn — Ela balbuciou pela terceira vez em um intervalo de oito minutos. — Você está protegendo alguém nessa história. Não faço ideia de quem seja, mas está errado.

Estou protegendo a mim mesmo, porra.

— Eu já lhe contei tudo o que sei, Amelie — o fato de eu usar o seu nome não parece lhe abalar. — Não posso inventar fatos.

A Delegada assentiu e guardou os papéis na pasta preta com meu nome escrito em vermelho. Fez um sinal para Arthur e sorriu sem mostrar os dentes para mim.

— Está liberado, Shawn — seus olhos se voltaram para o homem baixo. — Chame Kian Gray, tenho certeza que ele terá muito que nos dizer.

Enquanto saio da sala só consigo pensar que talvez ela tivesse razão. Que Kian tinha muito mais para contar do que eu.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

*Brindando com o meu vinho em uma sala de estar mó chique com o Vitão*
E ENTÃO? ALGUÉM ESTÁ VIVO? Depois de tantos meses finalmente entramos de cabeça no mundinho do menino Hans e o que vocês viram provavelmente não era o que esperavam.
Explicando melhor, os pais do Shawn são separados, Patrick é rigoroso e se preocupa apenas o mínimo pelo filho, enquanto é Kian (seu meio irmão) que recebe toda a atenção. Verônica é a madrasta de Shawn e, obviamente, a mulher quem deu à luz ao Gray. E no meio de tudo isso está Kim Bennet, a mãe que vive pelo trabalho e não entende direito o que aconteceu com o filho nesse meio tempo que ficou fora.
Vale lembrar que esses detalhes são baseados APENAS em nossa imaginação, o verdadeiro Shawn Hans dessa vida não é tão fodido - acho que não (risos nervosos).
De todas as formas, eu espero que vocês tenham gostado, afinal, foi um capítulo MUITO trabalhoso e procurei dar o meu melhor.

Aguardo um retorno de vocês, mores. Nos vemos daqui alguns dias com Alive, que será mais um tombo escrito pelo Vitor ( ou Jacó Lobo KKKKK). Enfim, um imenso beijo e boa recuperação cardíaca.



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "O Curioso Caso de Daniel Boone" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.