O espelho de Apolo escrita por Sirukyps


Capítulo 2
Capítulo 02




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/669511/chapter/2

Certo dia, o natural se transformou em analógico.

Tic Tac.

Tic Tac.

Tac. Tic.

A sociedade foi condenada a agir conforme a vontade do supremo deus relógio.

Desde então, as noites ficaram tão claras, tornando-se raridade espreitar pela penumbra duma travessa obscura. Os monstros desapareceram e as crianças não precisavam dormir, afinal tinha as almas fisgadas pela perene janela luminosa, quase sempre estagnada na palma duma pálida mão.

E sempre era hora para diversão.

Guilherme suspirava em nostalgia. Apreciava a bonita noite. Esboçava um bobo sorriso grato pela existência enquanto acompanhava os passos lentos do misterioso amigo. 

Carros quase escassos. Nenhum barulho naquela distante avenida principal que interligava o esquecido subúrbio de Medeia aos populosos centros ou as comentadas zonas periféricas.

Medeia ficava exatamente ali.

No centro da intercruzada rede de ligações.

Casarões abandonados prevaleciam. Fábricas, cujas máquinas não foram ligadas. Dedicadas pessoas caladas. Crianças risonhas. No ar, pairava o cheiro de fumaça não importando o horário. Recordava larvas, algum tipo de hélio ou enxofre.

Nicki, cabisbaixo, a expressão moldada pela melancólica porcelana dissimulava fraturar. Ele seguia. Respostas monossilábicas, ou quase.

Plano repassado pela centésima vez.

“O espelho”.

“O espelho.”.

“Espelho, espelho meu.” Brincava Guilherme rodopiando a contraparte como uma criança encantada. A expressão deprimida, certamente, era decorrente do cansaço. Pelo menos, o alegre moço agarrava esta ideia como justificativa. Todavia, não poderia permitir que Nicolas dormisse. Não naquela noite. “Engraçado.” Percebendo-se ignorado, voltou a caminhar em linha reta. Fitava o céu. Contava estrelas apontando para cada uma destas. “Espelho... Espelho... Engraçado. Eu tenho muita motivação... É como se meu corpo refletisse o que aprisiono em minha mente.”.

“Interessante.”. 

“Como se... Os meus olhos fossem espelhos para o mundo e...”. Soava confuso. “Uma troca... Ao mesmo tempo, um espelho sobre mim.”.

O silêncio.

“Não sei, Nicki, mas se o espelho for...”. Uma sombra. Repentina paz. O desmotivado rapaz prosseguia, não percebendo a pausa da contraparte. Piscando algumas vezes, o soldado de Ares franzia o cenho em direção ao topo de um altíssimo prédio, sede dos Correios. “Nicki, eu sei como uma vida é importante para você, por isto, asseguro que aquilo não é uma estrela no topo do prédio.”.

“Oh, não!” . Acelerando o passo, Nicolas corria. “Gui, eu cuido disto. Só prossiga.”.  

Raramente, alguém subia tão alto para apreciar a beleza noturna. Por isto, não poderia permitir que a morte recebesse aquela encomenda.

Lá em cima, a iludida dançarina valseava sobre o parapeito de alvenaria.

Leves passos.

Tinha o vento como parceiro, o qual disseminava o cheiro de sal, permitindo lágrimas pairar pela intrigante cidade.

 Pausando o espetáculo para apreciar a performance final, não negava, os dezessetes andares abaixo amedrontavam. Descendo do improvisado palco, ocultava o choro com o dorso da mão.

Fechando os olhos, clamava por coragem para prosseguir. 

Precisava prosseguir. O peito doía. Não gostaria de retornar para casa e encarar o novo dia, pois o Sol cegava, mas... Por que as lágrimas não cessavam?

“A primeira vez, certamente, é a mais difícil.” Comentou sorrateiramente, aproximando-se pelas sombras ao adentrar o improvisado teatro.

Assustada, a menina tropeçou para trás, quase caindo se não houvesse sido capturada bruscamente.

A mão delicada repousada contra a cintura. Guiados pelo suspiro da brisa, a dança recomeçava. Amedrontada, era estranho como aquele terno e aconchegante sorriso parecia tão conhecedor de cada passo daquela silenciosa valsa mortal.

Recostando a cabeça contra seu peito, desabafava:

“Você não compreende.”.

“Ninguém nunca compreende, doce dama.”.

“Eu não consigo respirar.”.

“Sufoca.”.

“Sim. Esta corda em volta do meu pescoço... Estas palavras continuam em minha mente...”.

“Apática a vida, você segue como se fosse uma deslumbrante marionete.” Segurando-a pela mão, arremessava para frente, logo rodopiando fluidamente. Trazendo o corpo desiludido para mais perto, passos sincronizados, apaixonados como no tango. “É como se tudo fosse uma controlada calúnia e você estivesse enfadada de ser outro inútil brinquedo, largado no armário...”.

“É como se eu pudesse colocar um fim.” Concordava pensativa. “Eu posso cortar as cordas desta peça indesejada.”. 

“Dezessete andares para o traumatismo craniano.”. Comentou pausadamente, arremessando o conduzido corpo quase sem chão ao almejado destino.

Sentido o vento contra os negros cabelos envoltos num coque, a trêmula dançarina segurou fortemente na manga do negro moletom desconhecido.

Defronte a morte, a coragem esvaía.

Capturando a fugitiva bravura, arremessou a cabeça para trás.

As lágrimas modificavam o trajeto, escorrendo pela testa em direção aos raros carros que pareciam brinquedos de tão pequenos.

Respirou fundo. Olhos cerrados. O desconsolado cenho franzido aparentava aceitar o destino.

“O trânsito parado. O noticiário. A pequena criança virando estatística. Vale a pena tanto desespero? ”.

Nenhuma resposta.

Recapturando o perambulante corpo num confortável abraço, Nicolas continuou. “Quando nos arremessamos num buraco, é porque esperamos que nossa mãe venha nos abraçar. Igual quando caímos   quando pequenos. Ela nos contava histórias, enquanto passava remédios em nossos joelhos.... Costumávamos melhorar quando contávamos porque havíamos caído. Para quantas pessoas você já contou acerca desta queda?”. Hesitante, a menina recomeçava.

Lágrimas.

Lágrimas.

Nicolas acariciava os cabelos, tentando acalmar o jovem coração tão acelerado. “Encontre alguém que lhe escute. Case. Brinque. Tenha amigos, filhos. Não permita que sua alma morra e tenha que arrastar a fétida matéria pela terra até o último dos seus dias.”.

“Mas, eu não tenho ânimo. Dói tanto. No fim, qual a diferença entre depois ou agora? Ninguém nunca vai compreender, por isto... Não irei morrer de qualquer forma?” Ousando fitar o salvador, sentiu um forte aperto na nuca, retirando-lhe o fôlego. 

“Simplesmente, porque a hora não é agora.” Arrancando uma negra lama de consistência gelatinosa, levou até a própria boca, ingerindo.

Náuseas.

Nicolas utilizava a mão livre para aprisionar e não vomitar aquela porcaria fétida.

Finalmente.

Finalizava-se o espetáculo.

Carregando o adormecido corpo ao colo, desceu do palco, e logo do prédio. “Certamente, depois você terá mais motivos. Por agora, não quero que encontre a paz que jamais terei.”.

“Nicki. Nicki”. Guilherme corria sorridente, quando o angustiado companheiro já caminhava pelas calçadas outra vez. Vaga atenção. “Não compreendo como dormem tão calmamente contigo? Só você para inspirar tanta paz.” Brincou, logo prosseguindo com a verdadeira informação. “Três. Três delinquentes no porão do colégio.”

“Não os matou, certo?” Nicolas o fitava.

Aquele piedoso olhar preocupado.

“Não. Pelo menos, não ainda. Mas, você sabe que é necessário. Pelo livro.”.

“Leve a garota para casa. Duas quadras. O primeiro andar de uma casa amarela. Coloque-a na cama e espante a fumaça do quarto para que não se repita.”. Passando o corpo com cuidado, deu um sorriso sem jeito, como costumava ficar ao pedir um favor. “Eu tentarei abrir o portal sem matá-los.”.

Acolhendo a letárgica criatura cuidadosamente, Guilherme nunca questionava apenas pela felicidade em fazer parte.

Assentindo em positivo, garantiu breve retorno, partindo conforme solicitado, depois de entregando um conjunto de chaves ao outro.

Observando-o afastar junto a escuridão, Nicolas questionava como era realmente possível alguém ser tão... Satisfeito?

No fim, maleando a cabeça em negativo, deduzia que não importava, precisavam encontrar o livro e descobrir o caminho até o espelho. 


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "O espelho de Apolo" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.