Olhos sem medo escrita por Pequena Mikaelson


Capítulo 1
Degraus




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Escadas. Brancas, de mármore, com um corrimão de metal frio e liso. Subo-as devagar, mesmo sabendo que posso morrer a qualquer momento, mas esse pensamento já preenche minha mente normalmente, então, tanto faz. Continuo subindo, preciso chegar ao 23º andar e ainda estou no 12º observando a placa vermelha com os dígitos, quando uma porta ao lado se abre e alguém entra correndo, me jogando ao chão.

O susto foi maior que o impacto da queda, mas nada se compara ao alerta máximo gritando no meu cérebro quando percebi que tinha alguém em cima de mim e que eu poderia contamina-lo. Levantei rapidamente e me afastei.

–Me d-d-desculpe.. Senhor.

–Tudo bem.. - Ele diz, arfante - Erro meu. Desculpe.

E é aí que eu olho pra ele. Acho que já vi aquele rosto antes... Ele está me encarando, com a boca levemente aberta e os olhos estreitos. Se vira e volta a correr escadas abaixo. Tão rápido chegou, foi embora. Mas a sensação do corpo tocando o meu... Não some.

***

–Bom dia Senhor, sente-se. - A mulher educadamente me conduz a uma cadeira.

–Bom dia.

–Agora, isso não é uma entrevista. Eu só quero conhecê-lo, certo? Diga-me quais são seus planos, seus medos, suas vontades, seus amores, mas acima de tudo, diga-me como você se parece. Eu sou cega.

Certo. Isso foi um choque. Ela não parece cega. Começo a tremer, mas relaxo e falo com a maior clareza possível.

–Meu nome é Claude, sou natural daqui da França, moro sozinho, não faço planos, a maioria não dá certo, mas quero ajudar em tudo que eu puder aqui, tenho medo de aviões e de insetos, tenho vontade de conhecer a Austrália e amo comer nozes. Bem, sou alto, careca, negro, levemente hiperativo e tenho a tal doença dos 5H. Pensei em omitir esta parte.. Mas soaria falso, então, é isso.

A mulher me escutava bem concentrada, reparei que seus olhos eram de um tom de castanho mel, uma grande injustiça, ter olhos tão bonitos e não poder enxergar a beleza do mundo através deles. Era negra, com cabelos encaracolados e presos por uma flor lilás. Ela suspirou.

–Claude, eu ouvi você, entendi você pelo som da sua voz e vi a sua sinceridade. Por causa da sua doença, vamos ter que modificar algumas coisas do plano original, mas no geral, bem vindo ao grupo. - Eu sorri, mas ela não pôde perceber isso.. - Vou te apresentar o local e como tudo funciona.

Saímos da sala e adentramos à um corredor. Era uma instalação grande, cheia de pequenas salas com placas coloridas na porta, com indicações como "Sala de música", "Sala de leitura"... Janine nos levou até o final do corredor, onde havia uma escada. Imediatamente lembrei do incidente das escadas, na semana passada..

–Janine, me diga, há médicos que atendem diretamente aqui?

–Com certeza, veja, as crianças chegam e tem que ser avaliadas por um médico imediatamente para descobrirmos o tamanho dos danos.

–Imaginei que elas já viessem do hospital.

–Algumas, sim. Mas a maioria vem direto para cá. Os médicos avaliam se a criança precisa de um hospital, quando precisam eles mesmos as levam e quando não precisam ela é repassada para um de nossos atendentes, que avaliam o estado mental da criança e as transferem para um quarto, depois de fazer todos os cuidados. Cada quarto tem três supervisores e pode abrigar até quinze crianças, estamos quase lotados. Durante os dias em que elas ficam aqui, interagimos com elas, dando aulas de música, fazendo leituras, aulas de teatro e comunicação em grupo, alguns tipos de artes marciais e aritmética básica.

–Até elas serem adotadas.

–Isso mesmo. Mas, como sabemos, alguns não conseguem a família perfeita e acabam voltando para cá, outros nem saem daqui, por isso tentamos tornar esse ambiente tão agradável quanto possível para elas. Até completarem 18 anos e estarem livres para ir.

–É um lugar incrível. Obrigada por me deixar fazer parte disso. Quando vou poder começar as aulas?

–Certo, você pode montar seu horário de acordo com o horário das crianças, mas terá que dar um total de 5 horas diárias de aula, para cobrir todo o número de crianças que temos aqui.

–Inclusive nos fins de semana?

–Não, nos fins de semana você só vem se quiser. O expediente começa na segunda-feira da semana que vem, você estará pronto?

–Com toda certeza. Posso ver a Sala de música? Preciso me familiarizar com meu novo local de trabalho.

Era uma sala grande, com chão de madeira lisa e paredes em tons pastel. Abarrotada de instrumentos, como tambores, violões, pandeiros, uma gaita de fole e, ali estava, um piano de cauda negro como a noite. Me aproximei, limpando a mente, toquei as teclas para sentir o som nos meus ouvidos com clareza e, devagar, dedilhei a canção favorita do meu coração. Era triste e melancólica, mas com um fundo de esperança... Ao final, abro os olhos e Janine está na porta, com os olhos marejados, aplaudindo.

–Claude, isto foi incrível, digo, vai ser incrível mesmo ter você conosco.

A nota de esperança da música, invade meu peito e eu sinto expectativa pelos próximos dias, chego em casa, tomo um banho e preparo um sanduíche, rapidamente sou tomado pela vontade de preparar muitas aulas para a sala de música, quero preencher o coração daquelas crianças com som e que seus sorrisos brotem de diversão, que sintam-se amadas. Mas preciso evitar ter muito contato com elas, afinal, não quero vê-las doentes por minha culpa...

Estou correndo, subindo as escadas tão rápido que não consigo respirar, estou perto, sei que estou, consigo escutar a voz dele a cada lance de escada mais próximo. Mas os degraus parecem não ter fim, eu corro, corro, corro e não saio do lugar, é um paradoxo. Paro, arfando, preciso me acalmar e pensar em um modo de sair daqui.

–Claude...

Volto a subir, ele está me esperando lá em cima, não paro pra pensar em consequências, só consigo pensar na voz melodiosa do homem. Meu coração está tão acelerado que agora consigo ouvi-lo batendo.

TUM! TUM! TUM! A cada batida, dois degraus e o vejo, a escada chegou ao fim. Sentado despreocupadamente no último degrau, me olhando com um sorriso zombeteiro.

–Finalmente você chegou. Já era hora.

Abro os olhos e fito o teto do meu quarto. Uma dor aguda me invade o peito. Que diabos de sonho foi este?


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