Aquele não era meu quarto.

Por um longo instante desejei ser a protagonista de um shoujo, pois se eu fosse uma provavelmente antes que pudesse acontecer algo ruim alguém apareceria pra me salvar, provavelmente o rapaz de quem eu gostava.

Só havia duas falhas nesse meu pensamento :

1 - Os únicos rapazes de quem eu gostava não existiam

2 - Eu não era a protagonista de um shoujo e não tinha um plano, uma teoria maluca e muito menos um senpai.

–É tudo falso - falei em voz alta e como uma forma de convencer a mim mesma chutei a armação de ferro de um dos balanços, mas ao invés do sonho se desfazer e mudar para outro cenário a dor me tomou e eu me arrependi amargamente de ter chutado a armação - É tudo real ! - choraminguei apertando meu celular.

Descalça, molhada e agora com o pé machucado, eu estava imersa de mais em meus próprios pensamentos pra notar a aproximação da figura ameaçadora, mas veja bem, não se consegue ignorar algo tão grande por tanto tempo.

Com certeza era um homem, bem maior do que parecia ser pela tela, estava escurecendo eu não conseguia ver muito mais do que sua roupa mas o pouco que eu via já me deixava assustada.

Logo que percebeu que eu o havia notado ele deu um passo pra frente e automaticamente eu dei um passo pra trás, começava a sentir minhas pernas amolecendo, como da vez em que tentei fugir de um assalto mas minhas pernas fraquejaram e eu acabei sem meu celular e com os joelhos machucados.

“Vocês não podem me abandonar agora “ - pensei .

–F..fique longe! - falei pateticamente como se essa mera frase pudesse impedir a aproximação evasiva daquele homem.

– Eu conheço você… você me conhece, não precisa ser assim - disse o homem em um tom tranquilizador, sua voz era grave e aveludada e pude notar um leve sotaque - Eu posso ajudá-la, senhorita - terminou abaixando o capuz.

Arquejei involuntariamente.

Eu estava sem palavras… ele era belo.

Longos cabelos escuros, seu rosto marcado com uma expressão melancólica , como em uma pintura e aqueles olhos… vermelhos , aquilo não era natural .

Hesitei por um instante.

Gostaria de acreditar que aquele homem estivesse ali por mero acaso, que ele era uma boa pessoa disposta a ajudar uma menina perdida, mas no fundo eu não acreditava nisso.

Era isso que aquele lindo homem era… um predador e eu quase me tornei sua presa, a inocente presa, encantada pela beleza e educação de seu carrasco, havia visto filmes de mais pra saber que era hora de correr e foi o que fiz , corri como o diabo corre da cruz.

A chuva engrossava e minha única rota era a pequena rua atrás do parque, era longa e mal iluminada , não havia sequer uma luz nas janelas das casas eu começava a perder as esperanças de esbarrar em alguém que pudesse me ajudar.

Mesmo que eu não pudesse ouvir seus passos sabia que ele corria atrás de mim, e me alcançava, eu não era a melhor atleta da escola e minha asma só piorava a situação, não aguentaria correr por muito mais tempo.

Quando enfim avistei uma avenida iluminada quase gritei de alivio mas antes que eu pudesse correr para a minha salvação o homem me agarrou.

As lágrimas quentes descendo mesmo sem a minha permissão, eu morreria longe de casa, longe da minha mãe e de Diana que provavelmente estaria dançando com um lindo garoto em uma festa com a turma inteira.

Então eu vi… aquele guarda-chuva amarelo passando pela rua e me enchi de esperança mais uma vez, com a energia que me sobrava mordi a mão do meu perseguidor que praguejou em voz baixa e gritei o mais alto que meus pulmões permitiram. Foi o suficiente pra chamar a atenção da garota que se assustou deixando o guarda-chuva cair no chão.

–Você está bem ? - perguntou ela depois do susto inicial.

Meu perseguidor havia sumido.

A garota a quem devia minha vida não parecia ser muito mais velha que eu, tinha uma altura parecida, usava uma camiseta roxa e calça jeans, longos cabelos castanhos soltos e olhos verdes que me examinavam com preocupação.

–Não ! - respondi.

Seu nome era Lynn, ela era a prova viva de que ainda existiam algumas pessoas boas nesse mundo perdido, a garota perguntou o que havia acontecido e não obtendo uma resposta dividiu seu guarda-chuva comigo e me levou até a casa de sua tia, Agatha.

Era um apartamento em um condomínio amarelo com um jardim de flores na frente, Lynn entrou primeiro e trocou algumas palavras com o porteiro antes de voltar e me dizer que teríamos que subir pelo elevador de serviço pra não sujar o hall de lama, assim demos a volta no prédio e entramos por trás, pela sala dos funcionários.

Haviam dez apartamentos por andar e o da tia de Lynn ficava no sétimo, apartamento 706, porta branca com adesivos cor-de-rosa em forma de coração.

–Ah, eu esqueci a chave no armário da escola ! - lembrou a garota e pôs-se a apertar a campainha impacientemente.

–Já vai, já vai ! - falava a tia cuja voz parecia se aproximar.

Quando a porta enfim se abriu eu mal pude conter minha expressão de choque e as duas notaram pois me olharam com curiosidade.

–Tem algo no meu rosto? - perguntou a mulher alegremente.

–Farinha ! - respondeu Lynn com um sorriso tirando a mancha branca do rosto de Agatha.

Mas não era o que havia em seu rosto e sim o seu rosto, olhos cor de rosa e cabelos magenta, só faltava ter um coração flutuando sobre a sua mão e uma roupa de fada, era a minha madrinha … a madrinha da minha docete.

Aquilo não fazia sentido, não podia ser ela então tentei me convencer de que ela era uma cosplayer.

–Sua amiguinha parece assustada, minha querida - comentou a mais velha com preocupação - Não só assustada, parece que foi atropelada por um caminhão !

–Tia ! - exclamou a garota diante daquelas palavras.

–Eu não falei nada que não estivesse óbvio - respondeu a mulher na defensiva logo fazendo um gesto para que entrássemos - Entrem, entrem eu estava preparando bolo, era pro chá de amanhã mas vocês parecem famintas. - sorriu amigavelmente e meu coração esquentou um pouco por receber carinho de uma face conhecida.

O interior do apartamento parecia uma casa de bonecas, rosa pra todo lado, babados , corações, almofadas fofinhas e tudo que se espera daquelas bonecas antigas - convenhamos que a Barbie faz mais o tipo feminista moderna do que princesinha indefesa .

Agatha pediu para que Lynn cuidasse das coisas da cozinha enquanto ela procuraria seu kit de primeiros socorros e a mim foram dadas uma toalha e uma muda de roupa para que eu tomasse um bom banho quente antes de começar a dar explicações.

Depois de resolvidos os problemas imediatos me sentei em uma das poltronas rosadas da sala e logo me vi enrolada por um cobertor azul e com uma xícara de chocolate fumegante nas mãos, Lynn e Agatha sentaram-se no pequeno sofá da sala e tomaram seu chocolate enquanto falavam de coisas banais, era claro que elas estavam curiosas mas não queriam me pressionar , muito menos eu estava pronta para falar algo como “Ah, eu estava no meu quarto então eu não estava, daí tinha esse cara gato que corria atrás de mim dizendo que só queria me ajudar mas na verdade ele queria minha cabeça num espeto”

–Hmmm… então você gosta de amor doce? - perguntei à tia puxando assunto pois estava visivelmente desconfortável com a situação.

–Amor doce ? - perguntou confusa - É um bolo? Se for eu quero a receita, deve ser delicioso !

Ela. Não. Conhecia. Amor doce.

Respirei fundo, haviam muitas outras explicações para aquela situação, eu estava apenas fantasiando coisas estúpidas porque não queria acreditar que aquilo era real.

Tomei meu chocolate rápido de mais e queimei a língua , não estava realmente prestando atenção na conversa das duas até que Lynn falou :

–Castiel é sempre assim !

Castiel. Castiel. Castiel . Castiel e a madrinha, eu não queria acreditar , mas parecia ser real, eu estava dentro de amor doce.