Medo escrita por Ninguém


Capítulo 1
Solo


Notas iniciais do capítulo

Olá!
Estou realmente muito feliz que você chegou até aqui!
Caso você ainda não tenha lido os avisos da história, por favor volte a página e leia-os.
Preciso fazer um pequeno aviso antes de você iniciar sua leitura.

> POSSUI SPOILERS DO LIVRO OS MISERÁVEIS DE VICTOR HUGO!!!

Ciente desses fatos, boa leitura.
:)



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/665907/chapter/1

Nunca fomos amigos. Nunca fomos próximos. Apesar disso estudamos juntos desde que posso me lembrar. No início os professores obrigavam todas as crianças a serem sociáveis e a brincar em conjunto, depois começaram a se formar os grupos. Pessoas com interesses em comum se juntavam contra pessoas de interesses diferentes. Sempre foi assim, desde o início da história. Da nossa e da humanidade.

Em geral eu ficava com um ou dois garotos que gostavam das mesmas coisas que eu. Tínhamos muitos assuntos em comum, mas eu ainda era o menino estranho de olhos bicolores. Eu sempre acabava o ano sozinho. Ele sempre esteve rondado de amigos e seguidores.

Sempre foi uma relação masoquista, um romance platônico que não tem final feliz. Nunca, em nenhum momento, foi dito qualquer coisa que poderia, por alguns breves instantes, me dar esperanças. Mas ainda sim aqui estou eu, esperando a chuva cair em dia de céu limpo.

Até uma criança notaria que os olhares debochados agora são direcionados a mim, enquanto os olhos interessados se dirigem unicamente às coxas expostas da minha dupla de trabalho. Eu sou apenas o nerdzinho antissocial que por ventura acabou com uma garota bonita como dupla. É isso que todos vêem. É isso que ele vê. Não espero que de um dia para o outro ele acorde, venha para a escola e comece a reparar em mim. Mesmo que isso um dia acontecesse, o que ele veria de bom ao reparar em mim?

O sinal toca. Minha dupla fala alguma coisa sobre nosso trabalho. Ele se levanta para falar com algum de seus amigos. Permaneço no meu lugar, olhando o inalcançável e esperando o impossível. A parte de trás do meu caderno contendo pedaços de divagações.

– Dispensados.

É o intervalo. Sinto que Dani está incomodada com minha falta de atenção, ela nunca aprovou o que está acontecendo. Porém sabe que preciso aproveitar o curto espaço de tempo no dia em que ele está simplesmente entretido demais para prestar atenção em mim, possibilitando que eu possa observá-lo sem correr muitos riscos.

Sei que não devo encará-lo por tempo demais, é natural do ser humano notar quando é observado. Mas eu simplesmente não posso deixar de não olhá-lo.

– Você devia parar de se sujeitar a isso, Sam. – Dani fala, olhando com uma expressão demoníaca para o fruto da minha atenção. Seus olhos castanhos escuros parecem quase negros com a raiva.

– Sei disso. E você devia parar de comer tanta porcaria, fazer uma atividade física talvez – rebato, desviando o olhar para minha única e melhor amiga.

– Sei disso.

– Somos dois masoquistas de merda. Dois seres fodidos emocionalmente em busca de prazer momentâneo para continuar suas vidas de bosta.

– Sabemos disso.

Suspiramos alto, ao mesmo tempo.

Dani tem a alma de uma artista, com respostas afiadas e sempre uma nova ideia para passar o dia refletindo. É neurótica e irritadiça, bastava mencionar qualquer coisa relacionada a história, filosofia ou arte para que ela entrasse em um profundo estado de divagação. Certa vez, procurei o termo utopista no dicionário e fiz uma cópia para ela.

– Gostaria de informá-la que sua biografia está presente nas páginas da Wikipédia – anunciei com ares de mordomo inglês.

Ela olhou para as folhas grampeadas e me deu um olhar de irritação.

– Por que você não pesquisa “néscio” e veremos se sou a única famosa por aqui.

Volto a encarar Bruno, refletindo sobre a sorte que tenho ao encontrar Dani quando entrei nessa escola. Ela é a única pessoa que conseguiu acompanhar o ritmo dos meus pensamentos, mesmo que muitas vezes discordemos deles. Talvez seja porque os pensamentos dela por vezes são tão confusos quanto os meus.

Bruno começa a beijar uma das garotas do grupo dele. Ela é parecida com uma modelo. Morena, olhos azuis, muito magra. Acredito que poderia circundar sua cintura com as mãos facilmente. Bruno parece adorar esse tipo de garota. Quanto mais semelhante a uma modelo, melhor. Ele não faz questão que seja inteligente ou burra. Já vi ambos os tipos se esfregando no corpo dele.

Noto o olhar de Dani ao grupo de modelos junto a Bruno e seus amigos. Ela não está olhando com inveja para os casais, muito menos se importando para quem eles estão abrindo as pernas. Ela está fazendo algo muito pior.

– Você devia parar de se comparar a elas, Daniela. Você é melhor que elas, sabe disso.

– Como está sendo fazer um trabalho de física com uma das pessoas mais bonitas desse colégio? – Ela responde rápido, desviando o olhar dos casais, como que para esconder a própria culpa.

– Você não devia se preocupar com isso. Sua dupla também não é ruim.

O silêncio se instala novamente. Volto a olhar Bruno, que parou de beijar a morena. Ele é lindo. Cabelos e olhos tão negros quando o breu. Tão diferentes dos meus cabelos cor de palha seca e olhos bicolores. Ele tem músculos definidos, é alto e tem uma pele bronzeada que o faz ficar parecido com os modelos californianos. Teria tudo para ser perfeito se não fosse tão... homofóbico? Preconceituoso? Hipócrita? Sei que ele é tudo isso. Sei que gosto dele mesmo assim. Sei que sou um idiota por isso.

O sinal toca.

Eu e Dani continuamos em silêncio, cada qual desaprovando as atitudes do outro. Nos dirigimos apressados para a sala de aula; Dani senta no seu típico lugar de meio da sala e eu no meu pacato canto próximo à janela, onde os professores podem facilmente se aproximar para conversar comigo e os outros alunos podem simplesmente passar sem olhar para mim.

Bruno chegará alguns momentos depois do professor começar a passar a matéria, provavelmente ocupado demais transando com a morena atrás do colégio. Depois de chegar na aula, sei que irá para o fundo da sala, se apoiará na parede oposta à minha e irá encarar o professor com um interesse genuíno (se for aula de História ou Filosofia) ou fingirá prestar atenção nas aulas (em qualquer outra matéria que não as duas citadas anteriormente).

Conheço toda sua rotina dentro dessas paredes. Passei anos a estudando. Sei que depois de comer seu lanche no intervalo ele vai para os fundos do colégio transar com alguma garota nova. Sei que perdeu a virgindade aos 14 e que nunca transa sem camisinha. Sei que odeia o professor de Educação Física e que sua família é tradicionalista gaúcha, participando e patrocinando de vários eventos relacionados a isso. Sei qual ônibus ele pega para vir ao colégio e sei também que odeia quando este chega atrasado e ele acaba por perder o primeiro período. Sei que ama livros de fantasia e lê sofregamente qualquer livro que lhe pareça bom. E também sei que ele morde a ponta da caneta enquanto pensa e que bagunça os cabelos quando está em dúvida.

Reconheço que há alguns pontos da rotina dele que não são muito agradáveis. Como o bullying que ele e seu grupo pratica contra os meninos das séries mais abaixo, os apelidos maldosos que fazem contra gente como eu, e os boatos de que já foi parar na delegacia por agressão e por porte de maconha, mas foi liberado por seu pai ser um dos advogados mais bem-sucedidos do estado.

Conheço tudo o que faz dentro do colégio e tenho uma vaga noção do que faz fora dele. Admito que minhas atitudes podem facilmente serem comparadas as de um maníaco ou stalker. Talvez eu realmente o seja. Acho que é isso que se tornam os apaixonados. Principalmente os platônicos. A necessidade de saber mais sobre aquilo que você nunca vai ter.

Bruno entra na sala. A professora nem se dá ao trabalho de perguntar onde seu aluno estava. Ele se dirige lentamente ao seu lugar no final da sala, fechando o zíper da calça enquanto anda. Ele para, ajeita o cabelo e olha pra mim.

– Hey, vira-lata, tu ‘tá fazendo o trabalho de história com a Alice, né? – Ele passa os olhos pela minha mesa enquanto fala, se demorando um pouco no grande exemplar de “Os Miseráveis” sobre a mesma.

Vira-lata. Apelido que recebi no jardim de infância, por conta dos meus olhos bicolores. O direito azul, o esquerdo castanho-escuro. Parecidos com os de um gato de rua. Apenas aqueles que estudaram comigo naquela época sabem e usam esse apelido. Passei a usar uma lente castanha para esconder o olho direito na 2ª série.

– Sim... Por quê? – Tenho certeza que o nervosismo está estampado na minha testa neste momento. Sinto uma salamandra com patas de fogo começar a dançar tango argentino no meu intestino.

– Nada não. É um trabalho difícil. A guria é um cu em história, pelo jeito já pegou provão. ‘Tô a 2 semanas tentando explica essa matéria. – Ele suspira alto. – Por que aceitou fazer o trabalho com ela?

Olho ao meu redor como se esperasse encontrar a resposta escrita no chão.

– Não sei – admiti. – O desafio... talvez...

Ele solta um riso nasal e olha em volta da sala, procurando sua mesa.

– Você gosta de desafios?

Faço que sim. Acho que se ele me perguntasse se eu gostava de arsênico, a resposta seria a mesma.

– Foi maneiro conversar com você, vira-lata. Talvez você devesse começar a andar com gente mais legal que o povo do seu grupinho.

Ele vai até seu lugar e começa a conversar com um menino a sua frente. Não consigo ouvir o que eles falam, mas pelas poucas piadas que são feitas com volume o suficiente para chegar a minha mesa, prefiro realmente não saber.

O professor finalmente termina de passar o conteúdo de filosofia no quadro e se vira para conter os alunos.

– Bonitos, o assunto de hoje é liberdade. Mais especificamente liberdade sexual. – Ele parecia bem impressionado com a quietude instantânea que havia se instalado na sala. – Vou dar alguns minutos para vocês copiarem e pensarem no assunto enquanto vejo quem faltou. Se comportem.

– Mas professor, isso não foi conteúdo do ano passado? – pergunta Dani. Consigo ver sua mão começar a tremer de leve.

– Foi sim, Daniela. Porém por ser um tema atual e que está sendo muito comentado atualmente, resolvi trazer mais alguns pontos para debate. Não se preocupem, não vou pegar pesado na prova.

Ouvi o grupinho do fundão começar as piadas. Dessa vez ainda piores do que antes. Passo a copiar a matéria, aplicando mais força que o necessário na caneta, fazendo minha mão começar a doer com o esforço. Posso sentir o grande letreiro escrito CULPADO pairando sobre mim.

– Vocês sabem por que o Lucas faltou de novo? – pergunta o professor, esticando a cabeça, o procurando pelos alunos.

Silêncio.

Todos sabiam o motivo.

Lucas era provavelmente o único ser humano desta escola que se assumiu abertamente como homossexual.

Bom, ele era.

Nas primeiras semanas ele foi visto como uma atração, meninas começaram a se aproximar dele pedindo “conselhos”, meninos fazendo piadas, algumas amigáveis, outras não. Foi aí que começaram os verdadeiros problemas. As vezes ele aparecia com alguns hematomas que transpassavam as mangas da camiseta. Hematomas feios, roxos e inflamados, não eram por conta de sexo agressivo demais. Os alunos se afastaram, os machucados se tornaram mais numerosos e mais graves. Até que duas semanas atrás veio o golpe final. Os boatos são de que o time de futebol do 3º ano encurralou Lucas em alguma viela próxima da casa dele e o agrediram violentamente. Lucas foi parar na UTI com inúmeras lesões e órgãos danificados, ele teve também o ombro torcido e três costelas trincadas.

– O viado levou aquilo que estava pedindo – respondeu Bruno, com a voz soando orgulhosa de si mesmo e dos amigos do 3º ano. Seu grupinho solta algumas risadas.

Bruno estava envolvido nisso... Bruno bateu em um garoto só porque ele gostava de outros garotos... Bruno não se preocuparia em bater em mim se soubesse o que sinto por ele. Talvez até bateria mais forte. Consigo imaginar a cena. Meu amor platônico e seu grupo de amigos reunidos em volta de mim. Todos eles fazendo piadas e me xingando de incontáveis nomes. Bruno se aproximaria e...

Levanto o braço com desespero. Sinto cada músculo do meu corpo entrando em colapso. Meus olhos ardem. Minha mão começa a tremer.

– Professor! Preciso ir ao banheiro. É urgente.

O professor olha para mim por uns segundos, sei que ele notou o desespero estampado nos meus olhos. Há uma regra clara na escola sobre os alunos não poderem sair da sala para ir ao banheiro ou beber água no primeiro período e naquele seguinte ao intervalo.

Ele assente com a cabeça. Agradeço aos deuses por isso.

Levanto rapidamente do meu lugar, saindo da sala como se minha vida dependesse disso. Talvez dependa. Ignoro todas as regras estudantis sobre correr dentro da escola e disparo em direção ao banheiro masculino. Entro em um dos banheiros privados e sento no vaso sanitário com a tampa abaixada. A ardência em meus olhos fica insuportável, começo a sentir as malditas lágrimas descerem sem controle por meu rosto. Por que eu tenho que ser assim? Por que eu não podia simplesmente gostar de meninas e... Por que tenho que ser tão idiota? Me apaixonei por um garoto. Por um garoto que de certo me mandaria pra a UTI se descobrisse. Por que eu tinha que fazer isso comigo? Por que eu estraguei tudo?

Meus soluços começam a ficar altos. Temo que alguém possa ouvi-los, apesar de saber que não há ninguém além de mim aqui.

Me recuso a sair do banheiro, não quero exibir meus olhos inchados para o colégio e sei que não me deixarão ir pra casa mais cedo. Pelo menos não só por causa de uma crise de choro. Cogito seriamente fingir estar sentindo tonturas ou pedir para ligarem pra minha casa alegando alguma doença exótica que ninguém nunca ouviu falar. Descarto as opções no mesmo instante em que as crio. Nunca fui um bom mentiroso.

As horas começam a andar. Eu já não estou mais chorando. Minha mente imagina os mais diversos cenários onde meu segredo possa ser revelado. Cenários onde eu, minha amiga e minha família sofreríamos por nascermos. Simplesmente por nascermos. O sinal da troca de períodos toca mais 2 vezes. Até que finalmente a aula acaba. Rezo para que Dani recolha minhas coisas e me espere na saída até a maioria dos alunos irem embora.

Estou pronto para abrir a porta da cabine quando ouço os passos de alunos vindo em direção ao banheiro. Subo em cima do vaso para não verem meus pés e me mantenho o mais quieto que consigo. Não posso deixar que ninguém me encontre aqui

– Você viu aquele ser? – pergunta alguém.

– Por um momento eu achei que fosse uma garota – responde uma voz que reconheci como sendo a de Bruno.

– Eu acho que é uma garota, cara.

Eles parecem demostrar interesse demais em sua conversa para se preocuparem em ter alguém os ouvindo ou não.

– Aquilo é como um traveco?

Ouço o som de zíperes se abrindo e o barulhinho da urina batendo na cerâmica dos mictórios.

– Eu não sei, cara. Esse mundo é louco. Se eu tivesse uma arma, enfileiraria esse tipo de gente e atiraria um por um. Esse negócio não é normal.

A ardência nos olhos volta e sou obrigado a morder o interior da boca, temendo que eu comece a soluçar aqui mesmo.

– Cara, está ficando cada vez mais difícil. Hoje em dia nós que seguimos os costumes tradicionais estamos nos tornando minoria. Essa gente ‘tá dominando o mundo.

– Queria poder ir pra Marte. Lá não tem essas. Até os alienígenas são mais normais que essa gente.

Espero o barulho da risada dos dois rapazes desaparecer. Desço lentamente de cima do vaso, os olhos ardendo como nunca. Abro a porta apenas quando tenho certeza que ambos os garotos deixaram o banheiro.

Me aproximo do espelho e vejo o quanto meus olhos estão inchados. O direito, coberto pela lente, faz parecer que eu tenha levado um soco. Xingo-me mentalmente por não ter tido coragem o suficiente para voltar para a sala. Se eu não fosse tão covarde, nada disso teria acontecido. Penso em Dani, rogo aos céus para que não tenham descoberto sobre ela. Seria azar demais. Azar demais para ela. Azar a mais para todos nós.

Respiro fundo algumas vezes. Olho para a imagem do pequeno adolescente refletida do espelho. Os cabelos loiros claros bagunçados, os olhos inchados e as roupas amassadas e marcadas por lágrimas. Cara de criança. Uma criança machucada e com medo de pedir ajuda pros adultos.

Você está miserável, Samuel.

Saio do banheiro e vou à procura de Dani. Encontro-a escorada em uma das vigas da entrada do colégio, ambas nossas mochilas estão jogadas pelo chão em volta da garota, seu rosto não transmite nenhuma boa emoção.

– Onde infernos você estava? – pergunta Dani, agressiva e apreensiva ao mesmo tempo.

– Trancado no banheiro, afogando as mágoas no vaso.

Recolho minha mochila no chão e começo a andar para fora do colégio. Dani muda de expressão rapidamente, enquanto dá uma leve corridinha para me alcançar.

– No banheiro? Então você encontrou o...

– Sim. Encontrei.

– Ele disse alguma coisa? – O medo na voz da garota era quase palpável.

– Sim. Muitas coisas. Você não vai querer saber.

– Eu sei o que ele disse, Sam. Eu via ele e os outros garotos tirando sarro do Lucas... e do Nicolas. Alguns deles o ameaçaram. O que eles estavam dizendo agora era tão... tão... – O choro começa a se formar na voz e nos olhos da garota. Não quero nem imaginar o que ela deve estar sentindo.

– Jesus, Daniela! – Paro de andar e obrigo a garota a olhar para mim. As lágrimas agora escorriam livremente em seu rosto – Você é uma garota. Desde o momento que você saiu do útero da sua mãe até o exato segundo de agora, você sempre foi e sempre será uma garota. Nada que eles digam vai mudar isso. Entende?

Ela abaixa os olhos, se desprende de mim e continua andando rapidamente ao meu lado em direção ao nosso condomínio. Nenhum de nós toca mais no assunto.

Observo as pessoas passando apressadas a nossa volta. Os mendigos escorados em vigas ou simplesmente andando a esmo pela cidade. O céu azul e o tempo agradável tornam esse um dia lindo. Poucas pessoas parecem caminhar a passeio, todas tem um objetivo, um lugar para ir. Quase ninguém para pra olhar a paisagem. Eu também não olho.

Volto a pensar sobre Bruno, os comentários do banheiro e o meu nervosismo ao falar com ele durante a aula de filosofia. Como eu posso ser tão idiota? Como meu corpo pode responder positivamente a isso?

Às vezes penso que o problema não é meu. O problema é dele. Se ele não fosse tão preconceituoso como é, talvez eu tivesse alguma chance. Talvez eu tivesse coragem de me declarar.

Então lembro-me das aulas de ciências. Objetivo dos seres vivos é a reprodução; órgão excretor não reproduz. As aulas de história dizem que a homossexualidade é comum em diversos povos, entretanto em vários lugares eu seria morto por nascer assim. Nas aulas de religião o que eu sinto seria abominado na maioria dos casos. As aulas de filosofia dizem que o amor não é uma opção. É natural e não é repreensível.

Talvez ele não esteja errado. Talvez eu realmente não seja natural. Talvez eu e Dani sejamos apenas dois dos vários erros que se encontram ao redor do mundo. Talvez sejamos apenas pessoas egoístas demais para admitir a verdade.

Qual é essa verdade?

– Dani... eles... eles descobriram sobre você?

– Você provavelmente não estaria falando tão tranquilamente comigo agora se eles tivessem. Os hormônios estão fazendo efeito no meu organismo a bastante tempo. Está quase impossível me distinguir de uma mulher. – O sarcasmo e a satisfação se mesclavam nas palavras proferidas pela garota.

Solto uma leve risada pelo nariz. Desde que eu a conheci, a aproximadamente dois anos e meio atrás, ela sempre teve a aparência de uma garota. Uma garota forte, convenhamos, mas ainda sim uma garota. Ela sempre foi uma garota. Ela só me contou que era transgênero no momento em que lhe contei ser homossexual. Isso levou dois anos para acontecer.

Ambos somos medrosos. Ambos somos idiotas.

Talvez por isso sejamos tão amigos.

Chegamos no condomínio, cumprimentamos o segurança e pegamos o elevador em silêncio. Moramos no mesmo prédio, no mesmo andar. Nossas portas ficam de frente uma para a outra.

Dani para na frente da porta de casa. Ela parece pensar muito no que vai dizer a seguir.

– Somos dois covardes, não somos?

– Sim, Dani, somos sim. – Uma resposta ampla, para uma pergunta mais ampla ainda.

Não recebo nenhuma resposta ou sinal de compreensão da garota. Ela entra em casa, a porta se fecha com um baque surdo. Eu fico sozinho no corredor. Sem coragem de entrar em casa, sem coragem de sair para a rua.

Acabo por escolher vagar pela rua. Não sinto fome. Deixo o prédio em silêncio e de cabeça baixa, perdido nos mais diversos pensamentos. Prefiro mandar alguma mensagem para casa dizendo que não chegarei cedo quando estiver bem sentado em algum café, lendo um livro e observando os outros interagirem entre si.

Ando por cerca de meia hora até chegar à uma região mais nobre da cidade, meus pés já haviam decorado aquele caminho. É uma região bonita, bem cuidada e com um ar de velha cidade europeia, muito diferente de outras partes da capital.

Entro em um pequeno estabelecimento qualquer, a decoração era baseada nos cafés italianos, as paredes em tons quentes e os móveis em madeira envernizada vermelha deixavam o lugar bem agradável. Sento em uma mesa afastada de tudo e espero. Pelo que, exatamente, não sei. E duvido que alguém um dia saiba.

O garçom pergunta se quero café. Acabo me sobressaltando pela pergunta repentina, me repreendendo pela distração. O mundo parecia estar andando em câmera lenta desde o momento em que sai do bendito prédio. O homem que espera em silêncio por minha resposta parece surpreso por tamanha distração da parte de um estranho. Ele devia estar esperando ali a algum tempo.

Branco. Isso é a principal coisa que se pode notar ao olhá-lo. Cabelos loiros platinados, olhos cinza-claros e pele pálida como leite, aparentemente 18 anos, não mais que isso. Traços finos. Poderia facilmente ser confundido com alguma espécie de modelo russo. Com certeza não era uma fisionomia comum em uma região subtropical. Talvez na Escandinávia, nos tempos dos vikings e de Carlos Magno. Com certeza uma figura digna de nota e de explicações no rodapé.

Ele é exatamente o oposto de Bruno.

– Chocotino. E um sanduíche – respondo rapidamente; ele o anota tão rápido quanto eu o digo.

– Perdoe-me a intromissão... senhor. – Ele parece desconfortável em chamar alguém com provavelmente a mesma idade que ele de forma tão polida. – Mas... você precisa de gelo? Para o olho, quero dizer.

Me sinto subitamente constrangido, havia esquecido completamente que meu olho estava do tamanho de uma bola de tênis. Levanto-me rapidamente, balbuciando algo que poderia ser tanto “Preciso ir ao banheiro” quanto “O ar ‘tá rarefeito”. Assim que chego ao pequeno banheiro, me apresso em tirar a bendita lente do olho; se meu globo ocular pudesse falar, tenho certeza que ele estaria suspirando de felicidade agora. Jogo água na cara algumas vezes e coloco colírio em ambos os olhos, em uma tentativa falha de não parecer um boneco inflável defeituoso.

Volto para a mesa, meu chocotino e o sanduíche cuidadosamente postos sobre a mesa.

Sento novamente e mordo com vontade o sanduíche. Olho em volta. Um casal sentado nos bancos próximos à janela parecia aproveitar o clima primaveril; dois executivos engomados mexiam no celular e pareciam levemente estressados; um grupinho de mulheres conversava e soltava risinhos em direção ao balconista.

O mundo continua girando, Samuel, não faça drama.

Suspiro. Busco dentro da mochila um livro para distrair meus pensamentos. “Os Miseráveis” parecia adoravelmente gigantesco em meio aos cadernos. Rio levemente ao lembrar do olhar de interesse de Bruno sobre o livro. Ele sempre adorou livros grandes. Suspiro novamente. Eu deveria ter me apaixonado pelas líderes de torcida dos filmes. Não pelos jogadores.

Mas... e se ele tiver notado?

Se ele e os amigos dele perceberem meu nervosismo? Não era como se eu tivesse sido muito discreto. Mas doía tanto...

E pode doer mais.

Continuo comendo o sanduíche, pensando no que fazer caso eu seja descoberto. Negar? Fugir? Pedir ajuda ‘pros professores? Dani não pode ser envolvida de forma alguma no que pode vir a acontecer.

Leio o livro com a mesma vontade que um náufrago se agarraria a uma bóia. A França de 1830 era horrível, mas pelo menos tem um final feliz. Para alguns. Eponine se sacrificou em nome de Marcus. Javert passou anos perseguindo Jean Valjean, e no final acaba se suicidando ao notar que estava sendo injusto. Será que esse vai ser meu destino? Boiar em algum rio qualquer, esperando que alguém ache meu corpo?

Acabo comendo todo o meu lanche sem tirar os olhos do livro. Todo o universo ao meu redor parou por aqueles pequenos instantes. Quem me dera isso pudesse acontecer mais vezes.

Olho rapidamente para o grande relógio em uma das paredes; duas da tarde. Os executivos já tinham ido embora, o grupo de mulheres parecia menor e o casal continuava namorando. Quase três horas em um café qualquer em algum canto da cidade.

Minha mãe deve estar tendo um chilique.

Levanto e guardo o livro novamente na mochila, colocando-a relaxadamente nos ombros em seguida. Reviro os guardanapos em busca da comanda e vou até o balcão pagar meu lanche. O mesmo garoto pálido que havia anotado meu pedido os registrou no computador. Paguei a conta com o dinheiro que teoricamente devia ser apenas para emergências. Junto com o troco recebo também uma folha amarelada dobrada. Olho para o garçom em dúvida.

Ele sorri de leve, mostrando um pouco dos dentes igualmente brancos. Seus olhos cinzas me parecem estranhamente gentis.

— Você tem olhos lindos. Não devia escondê-los.

Desvio o olhar rapidamente. Provavelmente meu rosto deve estar da cor de um morango maduro. Murmuro algo em agradecimento e me viro rapidamente, tentando inutilmente controlar a vergonha e sair do estabelecimento.

Já na rua guardo o dinheiro no bolso em um gesto automático. A curiosidade perante a folha dobrada é quase incontrolável. Desdobro-a com cuidado, como se tivesse nas mãos o tratado que garantiria o futuro da minha vida.

Um desenho. Um garoto sentado desleixadamente sobre um banco de cafeteria, lendo um livro grande demais para ser segurado, com os restos de um lanche sobre a mesa. O olhar do garoto parecia vago e concentrado ao mesmo tempo, como se estivesse viajando alternadamente entre dois mundos. O cabelo bagunçado e o olho inchado o tornava facilmente reconhecível. Era eu. Eu a poucos minutos atrás. Ele esteve o tempo todo me desenhando.

Os traços rápidos feitos com uma caneta fina demonstravam a pressa com que ele foi feito, provavelmente temendo que eu fosse embora enquanto o desenho ainda estivesse incompleto. Bem embaixo da folha estava uma pequena assinatura bem trabalhada. “Lucio Schimmel”. Viro a folha e encontro escrito com a mesma caneta do desenho uma sequência de números.

Paro no meio da calçada. Alguns pedestres apressados esbarram em mim ao passar. Sorrio, ele acha meus olhos bonitos...

Um pensamento passa rápido por minha mente. Meu sorriso murcha tão rápido quanto veio. E se ele estiver brincando? Eu provavelmente devo ter deixado alguma coisa passar. Se um desconhecido pôde notar... o que esperar deles?

O pânico toma rápido meu corpo. Para alguém dito normal, ter essa reação ao receber um flerte pode parecer absurdo, mas quando você passa a vida toda com medo de sorrir para alguém atraente na rua, qualquer coisa pode ser uma ameaça.

Mas... e se não for? E se ele realmente tiver gostado de mim?

Minha mente se enche de inúmeros “E se”. Repasso mentalmente cada passo meu dentro daquela cafeteria. Eu quase não falei nada, fiquei a maior parte do tempo lendo um livro neutro, meu uniforme não possui nenhum acessório, assim como minha mochila, um modelo militar clássico. Talvez quem tenha se arriscado tenha sido Lucio. Eu poderia ser um maluco homofóbico que iria o espancar no meio da rua. Assim como ele poderia ser alguém querendo brincar com os sentimentos alheios. Minha garganta seca imediatamente.

Dani me diria para voltar para a cafeteria e perguntar sobre o desenho, talvez lançando algumas cantadas nerds que apenas uma pequena parcela da população entenderia. Minha mãe me mandaria ir mais frequentemente ao lugar e observar as atitudes do alvo. Meu pai esperaria o turno de Lucio acabar e o interrogaria ao modo CIA.

E eu? O que eu faria?

Penso em Bruno e como sempre foi minha relação com ele. Eu realmente estou apaixonado por ele? Nunca nem ao menos conversamos e quando o fizemos foram sobre assunto impessoais e distantes. Repasso mentalmente os comentários que ouvi no banheiro. Eu realmente me apaixonei por um cara assim?

Olho para a cafeteria a poucos metros de mim. Os vidros negros me impedem de ver o que acontece lá dentro, mas tenho certeza que sou observado. Volto o olhar novamente para o desenho. Trabalhado demais para uma brincadeira. Bonito demais para isso. Suspiro alto. Redobro a folha e me viro de volta para a cafeteria.

O que tenho a perder?

Eles podem destruir sua vida, Samuel. Podem destruir seu corpo e sua alma. Pense nas pessoas iguais a você que aparecem na TV. Pense na ínfima chance de algo assim acontecer com você.

Só tem uma maneira de descobrir...


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Perdoem-me por todo e quaisquer erros que possam vir a existir nessa "pequena" one-shot.
Sei que são assuntos polêmicos, mas quando a criatividade vem, não podemos fechar a porta na cara dela.
Comentários são EXTREMAMENTE bem-vindos, porém não são obrigatórios (seria o sujo falando do mal-lavado).
Espero que tenham gostado.
É isso.



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Medo" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.