Shooters escrita por Menta


Capítulo 1
Shooters - Especial "Bônus"


Notas iniciais do capítulo

~ Presente para as leitoras marcelammota e Harley Quinn/Joke, mas que espero que todos os leitores de Hunter's Instinct apreciem. :)

~ Não é necessário ler Hunter's Instinct para compreender a história.

~ Na minha interpretação, Daryl e Merle só se redimiram como se redimiram por causa do apocalipse zumbi. Os dois eram bem marginais antes dos errantes, e creio que isso só teria piorado se não tivesse rolado tudo o que rolou. No caso, a personagem original também foi para um lado meio "dúbio" da Força, por assim dizer. MAAAS todos os personagens mantém a mesma essência!

~ A fic tem uma pegada meio "Breaking Bad". Espero que gostem!

~ Beijos e boa leitura!



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"— Merle, que merda você fez agora?

— Então, Darlena, você vai até o bar que eu te falei. Esteja lá antes da meia-noite. Os caras vão se reunir lá hoje mesmo. Quebre essa pra mim, irmãozinho.

— E quebra as pernas deles também. — Merle Dixon sorriu debochado."

Eu me lembrava exatamente da cara do meu irmão me pedindo por mais um favor arriscado. O mesmo olhar sonso e sorriso arrogante exibindo a sua estupidez de sempre, depois de um de seus planos mirabolantes que não deu certo.

Estávamos em Chattanooga, no norte do estado da Geórgia. Havíamos parado lá porque um amigo de Merle, Bud, arranjou uma espécie de trabalho imperdível para "caras como nós". Poucas horas de serviço para muito dinheiro.

E, obviamente, muita preocupação também.

Merle resolvera se meter no serviço de um grande traficante de região, conhecido como Old John, um velho amigo de Bud. Depois de apresentados, meu irmão topou ser o vendedor de rua, que ganhava trinta por cento do total das vendas que fazia.

Merle era o fornecedor direto aos crack heads, às gangues de motoqueiros e aos tipos mais marginais que costumavam aparecer por lá, procurando drogas pesadas, em grande quantidade, e que valessem o custo-benefício. Metanfetamina, heroína de baixa qualidade, e esse tipo de banquete junkie.

Em suma, gente como a gente. Como nós dois.

O problema de todo esse plano brilhante é que, por mais que Merle fosse durão, soubesse cobrar desses filhos da puta e não aturasse desaforo... Ele era despreocupado demais, relaxado e autoconfiante ao extremo. Não percebeu quando um rival de outro cartel apareceu na região, e começou a roubar os clientes do Old John. Metade dos clientes sumiram, não aparecendo mais nos pontos de venda de droga que Merle cobria.

Havia suspeitas de que fosse Jack Pit, um membro de um cartel do sul do Alabama. Alguns assaltos ligados a ele ocorreram na região há pouco tempo, todos bastante violentos, com pichações do símbolo de sua gangue nos locais atacados. Era um sinal de que estava por perto, como um cachorro mijando no território de outro, tentando tomar sua propriedade.

Old John ficou furioso. Bud e Merle quase se borraram nas calças para justificar sua própria desatenção e encontrar um jeito de remediar o problema, e agora era uma questão de vida ou morte ensinar a lição que os paus mandados de Jack Pit precisavam aprender.

E, é claro, tinha sobrado pra mim.

Nunca entendi muito bem porque sempre tive dificuldade pra peitar as maluquices do meu irmão. Acho que é aquela história: família não se escolhe. Merle precisa de mim para sobreviver, e acabo entubando suas merdas.

Enquanto ainda tínhamos credibilidade com Old John, fui eleito como seu capanga e homem de recados. Merle era cara marcada na região, Bud também, mas eu, que ficava de fora, só fazendo o transporte das drogas de um ponto a outro e outros trabalhos pesados... Seria um bom encarregado.

E era por isso que eu estava ali, parando a minha moto num campão de areia que dizia ser o estacionamento fedendo a mijo daquele bar perdido no meio do nada. Alguns caminhões, caminhonetes, carros velhos e motos estavam ali parados.

Dei uma olhada para aquele pé-sujo onde de vez em quando rolavam apostas proibidas por lei e outras ilegalidades. Um bar que, diziam os rumores, Jack Pit tentava roubar de Old John, para marcá-lo como parte de seu território no norte da Geórgia.

Desliguei o motor da moto, que deu seus últimos roncos como um velho fumante inveterado. Ajeitei a jaqueta, tirei um cigarro do maço que tinha comigo e o acendi.

Fumei no caminho até a porta de entrada da espelunca. Dei uma última olhada para a autoestrada, vazia e escura como um mar noturno.

Buraco fodido da porra. Pensei, revoltado com mais uma tarefa arriscada que me metia por conta do meu irmão. Abri a porta e entrei.

O som estrepitante de uma música de rock clássico ecoava pelo lugar. Em uma mesa perto da entrada, debaixo de uns pôsteres já comidos por traças, um grupo de caminhoneiros obesos comia uma farta refeição, bebendo alguns copos de cerveja barata.

Passei pelas paredes de tijolo e por mesas variadas, vendo alguns sujeitos mal encarados sendo abordados por prostitutas, algumas sentadas inclusive em seus colos, dividindo cigarros com eles.

A porra da lei anti-fumo em lugares fechados não valia naquele pé-sujo, e ao menos isso me deixou um pouco mais agradado com aquela maldita missão.

Reparei que algumas pessoas reunidas jogavam sinuca na mesa verde embotada do bar. Uma mulher peituda com um decote enorme e um chapéu de cowboy na cabeça chegou a se inclinar com o taco, me dando uma piscadela descarada, quando dei uma olhada naquele grupo. Tive de ignorar, o que me deixou ainda mais puto. Meu irmão só me dava prejuízo.

Caminhei até o balcão, vendo que um velho com mullets e barba grisalha tentava mudar a música que tocava na jukebox, suas mãos trêmulas segurando um copo de whiskey barato. Estava tão bêbado que não conseguia nem mexer naquela porcaria.

Dei uma olhada no relógio que havia atrás do balcão do bar, me certificando do que eu já sabia: ainda eram onze e meia. Precisava matar o tempo até cumprir com o meu dever de limpar a merda que Merle fez.

Sentei em um banco qualquer, tendo uma visão lateral de quem chegava e saía do bar. Fingi olhar para um ponto fixo na parede, concentrado no que eu precisaria fazer em alguns minutos.

— Hey! Ô mocinha, cadê minha outra dose? um dos três outros sujeitos além de mim sentados ao balcão chamou. Estava fedendo como um gambá, seu bafo de aguardente chegou até a minha cara. Dei uma risada seca, silenciosa e debochada.

Aquela espelunca era um paraíso "white trash". Eu estava mesmo entre iguais.

— Já vai, já vai! — Ouvi uma voz feminina dizer em um sotaque que eu não conhecia. Logo depois, saindo das portas em estilo saloon que deveriam levar à cozinha daquele pé-sujo, saiu uma garota irrequieta, andando rápido feito um gato escaldado.

— Minha dose! — o homem pediu outra vez, inutilmente. A garota tinha saído de trás do balcão, levantando a portinhola e andou quase correndo para a mesa dos caminhoneiros gordos. Levava nas mãos uma bandeja repleta de frango frito com molho respingando gordura.

Retornou no mesmo passo rápido, ouvindo pela terceira vez o pedido do velho bêbado.

— Camarada, você já está ossificado*, quer beber ainda mais?! — a garçonete falou, enquanto enchia o copo de shot do sujeito de algum aguardente vagabundo qualquer.

— Você não é minha filha — retrucou o velho, dando uma olhada de soslaio para a saia que ela usava, quando a garota virou de costas.

— Graças a Deus, por nós dois — retrucou a garçonete, entre dentes. Dei mais uma risada seca, ainda alerta para a porta.

— E você? — Ouvi a voz dela me chamar. Demorei a tirar os olhos da porta, já irritado com a espera.

— Qualquer coisa — respondi, sem dar atenção.

— A tal da "qualquer coisa" está em falta — a garçonete disse, debochada, com seu sotaque esquisito. Olhei para o rosto dela. Reparei que tinha cabelos escuros presos num rabo de cavalo e olhos que pareciam meio castanhos e meio verdes.

— Se quiser ficar, vai ter que pedir algo do cardápio — ela jogou o folheto em papel plastificado na minha frente, de qualquer jeito, me dando um sorriso enviesado. Reparei que ela era dentuça, com os dois dentes da frente se pronunciando nos lábios.

— Me vê a dose mais barata de whiskey que tiver aí. E faz um cowboy — respondi, olhando sério para a cara dela. — O que quer dizer que...

— É sem gelo — ela retrucou, pegando a garrafa em um movimento ensaiado. Fez aqueles movimentos de bartender que quer impressionar, enchendo logo um copo empoeirado. Passou o recipiente pelo balcão num movimento arrastado e calculado até chegar nas minhas mãos.

— Tenho certeza que entendo mais de bebida do que você. E de outras coisas mais, também — a garota morena parecia debochar, me encarando com um sorriso de desafio enquanto limpava um copo. Apenas a encarei de volta, ignorando a provocação.

Quicando de um lado pro outro pra administrar os pedidos daquele bar de araque, metida a esperta com aquela cara de patricinha bem criada, com as respostas afiadas na ponta da língua... Ela me lembrava de alguém ou de algo.

— Espera, eu acho que eu te conheço — a dentuça falou, depois de um tempo. Ajeitou uma mecha de seu cabelo moreno atrás da orelha.

— Você não é o cara que perdeu a corça pra mim? — O sorriso travesso dela apenas aumentou.

E foi então que me lembrei de onde eu conhecia aquela garota.

[...]

No dia anterior, Merle passou a tarde inteira fora tentando fechar as contas com Bud, para agradar Old John. Eu sempre fui uma merda de negociante, porque nunca fui bom em convencer ninguém a nada. Não com palavras, ao menos.

Então passei o dia sem serviço algum, enquanto meu irmão e o amigo tentavam angariar clientes pra recuperar a grana perdida para o outro traficante. Como não tinha nada para fazer, decidi sair para caçar. Morávamos em um conjugado perto de uma área florestal, de fácil acesso.

Peguei minha balestra e saí. Passei a tarde inteira fora, tentando achar alguma caça que valesse à pena naquele lugar. Quando enfim encontrei uma corça bebendo água perto de um rio, a cerquei devagar, para ter certeza de que não iria conseguir fugir. Estava perto de atirar uma flecha rente à sua testa, quando fui surpreendido por uma outra flecha atirada vinda da minha esquerda.

Ouvi o som do mato farfalhando, e, por via das dúvidas, mantive a balestra apontada. Estava furioso com o engraçadinho que resolveu roubar meu jantar, e preparado pra puxar briga se fosse necessário.

Quando vi sair do meio da folhagem uma garota, que devia ter uns vinte e poucos anos. Pele branca, cabelos escuros, os mesmos olhos da garçonete dentuça. Levava um arco nas mãos, e tinha uma aljava de flechas nas costas.

Ela me viu na mesma hora.

— Hey! Foi mal, camarada, acho que tínhamos o mesmo alvo — a garota disse com seu sotaque esquisito. Na distância, não pude ver que tinha dentes grandes.

Não respondi nada. Continuei irritado, mas não iria encrencar com uma garota, sozinha naquele meio de mato. Poderia entender as coisas erradas. Ou poderia ser até mesmo armação de algum pessoal com más intenções.

— Sabe como é, né... Quem atira primeiro leva. Mas se quiser, podemos dividir. Ela era bem gordinha — a arqueira se ofereceu, mas simplesmente dei de ombros.

— Pode ficar pra você. Não preciso da sua ajuda — rebati, mudando de direção. Enquanto caminhava para longe, tive a impressão de ouvir um "que babaca", um pouco indignado.

[...]

— Eu não perdi porra nenhuma. Eu deixei você levar — respondi, bebendo um gole do whiskey.

— É claro, o orgulho masculino. Não pode admitir que perdeu — falou a garota metida com seu sotaque estranho. Dei outra olhada para o rosto dela. A garçonete me encarava com o mesmo sorriso pedante e olhar de menina. Uma mistura de provocação e doçura no mesmo rosto, que só a deixava ainda mais irritante por isso.

— Você se acha bastante, não é, Esquila? — debochei, enquanto ela arregalou os olhos rapidamente. — Puxando conversa assim com gente desconhecida. Acho melhor não se meter comigo — alertei, estreitando os olhos, para ver se ela se calava.

O telefone ao lado do bar tocou, quando ela abriu a boca para falar mais alguma besteira. Ligeira feito uma esquila, ela correu para atender. Virou de costas, disse algumas palavras, e logo voltou a me encarar.

— É o seu irmão. — Estendeu o telefone para mim.

Que porra? Pensei, franzindo as sobrancelhas, e atendi.

— Merle, mas que merda...

— Fica calmo, irmãozinho. — Pude ouvir a voz do meu irmão por trás do aparelho. — Fica tranquilo aí. Vejo que já conhece a Mavie. É gente boa. Gostosinha, não é? Já tentei pegar, mas não me dá muito papo. Só fala merda pra caralho. — Meu irmão riu do outro lado da linha. — Pode confiar nela. Esse bar é um dos pontos mais antigos do Old John. Ela também trabalha pra ele. Está aí de olheira, pra relatar as coisas pra ele, e já sabe da sua missão. Ninguém desconfia da cara de novinha dela — Merle garantiu, e dei uma olhada surpresa e desconfiada para a garçonete dentuça com cara de patricinha.

— Aproveita, Darlena. Os caras devem chegar aí em dez minutos, mais ou menos. Se liga: talvez eles saibam de alguma coisa. Não temos certeza. Então, olhos e ouvidos atentos, irmãozinho. Bud disse que uns amigos dele viram os sujeitos do Jack Pit na autoestrada 17 a caminho daí — Merle avisou. Ouvi o som de alguma conversa acalorada do outro lado da linha, e logo o telefone desligou.

Deixei o fone em cima do balcão, esfregando os olhos. Merle, seu filho da puta. Só me mete em roubada.

— Seu irmão é um cara engraçado — a tal Mavie continuou a falar. — Sempre que vem aqui, consegue discutir com alguém. — Ela levantou as sobrancelhas, limpando agora outro copo.

— É um dos talentos dele — admiti, sério. Queria cortar o papo logo com aquela dentuça. Não queria envolver ninguém nessa história. Merle já estava inventando problemas demais.

— Daryl, não é? Eu sou Mavie — a garota se apresentou. — Mavelle, na verdade, mas ninguém me chama assim.

— Mavie é a nossa cantora preferida aqui! — o velho bêbado resolveu se meter na conversa. Vi que a dentuça deu um sorrisinho.

— Quando tem noites de karaokê, ela dá show! Deveria investir na música, já falei isso — o sujeito aconselhou, em tom professoral.

— E depois de quantas doses ela passa a dar show? — debochei de volta, para ver se a conversa acabava.

Mavelle deu mais um sorriso debochado, como se não se importasse com a provocação.

— Fica na sua, forasteiro... Não precisa ficar mordido só porque eu atiro melhor do que você — retrucou, o mesmo sorriso maroto brincando nos lábios, os dentes da frente proeminentes.

— Forasteiro? Você que tem a porra de um sotaque bizarro que eu nem sei de onde é — debochei, bebendo mais um gole. Admito, começava a me divertir com aquela conversa. Mas tinha coisas mais importantes para resolver do que dar atenção para a tal Esquila.

— Sou irlandesa, docinho — ela troçou de volta. — O que significa que já sei mais de bebida do que você só de nascença — a patricinha disse, com descaramento.

Meneei a cabeça, descrente. O sujeito ao meu lado entrou na pilha.

— Mavie, toma uma dose, na minha conta. Pode colocar. O novato aqui tá cheio da marra — o bêbado garantiu. Os olhos da dentuça brilharam em desafio, enquanto ela mesma se servia de uma dose cowboy até encher um copo.

Achei que ela tomaria um gole generoso, mas me surpreendi mais uma vez. A patricinha virou a dose de uma vez, do mesmo whiskey porrada que eu tomava devagar. Não mexeu um músculo do rosto, impassível.

— Essa merda nem whiskey é direito — disse a irlandesa.

Não resisti, tive de dar um riso seco.

— Ok, Esquila, já acredito em você. Que bom que seu chefe não te viu beber em expediente — debochei, bebendo um gole grande do whiskey.

— Meu chefe não se importa se eu fizer muitas coisas em expediente — ela rebateu, com o mesmo sorriso provocador que não combinava com os olhos ingênuos que tinha. — Contanto que eu faça meu trabalho direito.

A garota de dentes grandes me encarou sem pudor algum.

Antes que eu pudesse pensar em qualquer resposta, senti algo pontudo perfurar minha jaqueta de couro, se prendendo no tecido na altura do ombro.

Olhei para trás, instintivamente. Pensei na hora que os caras do Jack Pit teriam me achado, e já queriam partir pra briga.

A única coisa que vi foi um sujeito magrelo, espinhento, com cara daqueles moleques medrosos que cuidam de lojas am/pm. Arranquei o dardo que ele tinha atirado na minha jaqueta e olhei para o alvo que ele tentava acertar com outros dois amigos igualmente magricelos.

Mirei sem dificuldade mesmo daquela distância, e acertei perto do meio do alvo. O bêbado ao meu lado falou um alto "wow".

Já meio instável pela tensão de esperar os pela-sacos do outro traficante, fui furioso até o moleque, e o puxei pelo colarinho da camisa.

Nem vi que a Esquila me seguia, logo atrás.

— Ei, ei, calma lá. Com certeza o Tommy aqui te acertou sem querer, não foi Tommy? — Mavie falou, tentando se meter no meio.

— Foi sim cara, juro, foi mal — o moleque levantou as mãos, rendido, nervoso. Suor escorria daquela cara sebosa.

— Ele não é muito bom nisso, vamos lá, todo mundo sabe disso! — Mavie disse, e os frequentadores do bar, mais próximos, começaram a concordar, medrosos. Reparei que alguns dos caminhoneiros tinham levantado, e andavam na minha direção.

— Alguém tem algum problema com o Tom? — Um caminhoneiro parrudo e barrigudo com uma barba enorme veio até mim, me lançando um olhar de desafio.

Larguei a camisa do garoto, e me voltei para o caminhoneiro.

— Ele veio arranjar problema. — Encarei o sujeito, sério.

— Estamos achando que foi o contrário — o gordão insistiu, alguns de seus amigos o seguindo.

Merda. Os caras do Jack Pit estão pra chegar. Pensei, irritado, percebendo que não podia perder a cabeça.

— Por que a gente não decide isso de outro jeito? — a irlandesa falou, olhando nervosa para cada sujeito. — Vamos fazer o seguinte... Somos todos honestos aqui — ela começou, encarando a todos. Franzi as sobrancelhas, olhando para a garota, imaginando que merda ela pretendia inventar. Os outros pareciam fazer o mesmo.

— Eu tenho uma mira ótima, ele tem uma mira ótima... O Tommy tem uma mira de merda. — Alguns risos baixos foram escutados. O tal Tommy se tremia todo, dos pés a cabeça.

— Se eu acertar o centro do alvo, o Tommy pede desculpas, e fica tudo certo — a garota falou, enquanto os caminhoneiros escutavam. Ela parecia ter alguma moral com aquele grupo.

— Se ele acertar — a irlandesa apontou para mim — aí vocês decidem isso lá fora, e não quebram a porra do bar — definiu ela. Os sujeitos pareciam realmente considerar a ideia.

— Vai se esconder atrás de uma mulher, Tommy? — um dos caminhoneiros parrudos disse, incrédulo. Mavelle deu a ele um olhar cortante.

— Da Mavie? Com certeza — Tommy logo respondeu, covarde.

— E você? Espero que não esteja com medo de perder pra uma mulher. De novo — Mavie disse, debochada, me encarando.

Apenas balancei a cabeça, descrente, soltando um riso seco, debochado, pelo nariz. Peguei um dos dardos da mão de um dos sujeitos que antes jogava. Fui até o outro extremo do bar, mirei e atirei.

Acertei o círculo principal, errando o meio do centro dele por milímetros.

Fui para o lado direito, dando espaço para que ela tentasse. Indiquei o lugar vazio com as mãos, também em deboche.

A irlandesa não pareceu se abalar. Enquanto o bar todo parava para assistir, a garçonete andou rápido até onde eu estava. Me deu um sorriso convencido, mirou, e atirou.

A filha da puta acertou o ponto exato do centro do alvo com perfeição.

Tá de sacanagem, pensei, enquanto a garota dentuça sorria presunçosa, e boa parte do bar aplaudia. Ninguém tinha coragem de rir de mim, mas eu continuava incrédulo demais com as habilidades daquela patricinha para perceber aquilo tudo direito.

Ela voltou para trás do balcão, enquanto eu era obrigado a seguir até meu copo de whiskey, ao som dos suspiros de alívio do moleque fracote.

— Onde aprendeu a atirar desse jeito, Esquila? — perguntei, bebendo o último gole do meu copo. O bêbado voltou a pedir mais uma dose.

Mavie encheu o copo do alcóolatra, enquanto me deu mais um sorriso travesso. Talvez fosse o efeito da bebida, mas eu estava começando a achar aquilo tudo mais interessante.

— Também na Irlanda. Eu caçava desde pequena — afirmou, ao passo que guardava a garrafa de bebida.

Ia comentar alguma coisa sobre aquilo, já me sentindo mais falante do que de costume. Mas o som da porta abrindo me interrompeu.

Olhei de esguelha, reparando que uma mãe chegava com uma criança de colo aos braços. A criança chorava alto, e parecia ferida, sangrando.

— Por favor! — A mãe pediu, alto. — Nós acabamos de sofrer um acidente! Nosso carro bateu a alguns quilômetros, meu marido... Ele... Eu não sei, ele está desacordado, e a minha filha... — A criança de colo parecia fraca, sangrando muito, os olhos sem brilho.

— Eu preciso de ajuda! — Os olhos da mãe estavam chorosos. Me levantei, mas Mavie já tinha andado até a mãe, que era também amparada por alguns dos caminhoneiros. A mulher levando a filha foi guiada pela irlandesa até o balcão, onde entrou e foi até a cozinha. Segui as três.

— Ligue para alguma ambulância — a garota dentuça me pediu assim que entrei. — Vou tentar segurar as pontas aqui, mas ela está perdendo muito sangue. Minha avó é médica, sei algumas coisas, aprendi antes de... — Mavelle disse, franzindo as sobrancelhas, e parou de falar.

— O que está esperando? Vai! — a irlandesa me pediu, e apenas acenei com a cabeça. Fui até o telefone. Tirei o fone do gancho, quando a porta se abriu mais uma vez.

Quatro sujeitos. Um com um bigode ralo, outro com uma barba loira grossa, outro latino, e outro branquelo, magrelo e alto. As exatas descrições que Merle tinha me dado.

Os pela-sacos de Jack Pit.

Instintivamente, coloquei as mãos no bolso da calça. Tinha uma pistola que meu irmão havia me dado a mando de Old John. Eu precisava tirar aqueles sujeitos dali de dentro, antes que eles me vissem, antes que soubessem que eu estava ali. Antes de que desconfiassem de quem eu era.

Eles se sentaram em uma mesa dos fundos, e começaram a conversar baixo. Meus olhos não desgrudavam de cada movimento, atento a qualquer sinal de que eles entendiam o que ali se passava.

Senti duas mãos segurando meus ombros, me forçando a olhar para trás.

Voltei-me, irritado, e logo vi o rosto da irlandesa dentuça me encarando com ar de cobrança.

— Ligou para a merda da ambulância?! — ela sussurrou, angustiada, enquanto alguns caminhoneiros chegavam até o balcão, tentando ajudar, falando que não pegavam sinal de celular naquele pé-sujo.

Indiquei com os olhos o grupo dos capangas de Jack Pit. Mavelle olhou para eles também, e logo engoliu em seco. Surpreso, vi que ela abriu o balcão do bar, saindo pela portinhola.

— Sunny, ligue para uma ambulância do nosso telefone — ela pediu para um caminhoneiro careca, que logo se pôs a discar. Segui a garota maluca, que se encaminhava para a mesa.

— Esses caras são perigosos, porra — alertei, murmurando, tentando ser discreto e pará-la ao mesmo tempo.

— Eu sei — ela apenas murmurou em retorno, andando até eles, com quatro cardápios na mão.

Tive de parar de caminhar, para que eles não desconfiassem. Qualquer informação de que havia algo armado para eles poderia ter vazado, e, se eles pensassem que eu era quem era...

— Boa noite, senhores, o que vão querer? — A voz sonora da garota dentuça se fez ouvir. Sem nem dar atenção para Mavie, os sujeitos passaram a olhar o cardápio, quando o homem de barba loira levantou os olhos e me encarou.

Naquele momento vi que tudo daria errado.

Aquela fração de segundos passou como se estivesse em câmera lenta. O sujeito loiro olhou para o latino, sussurrou algo, e logo os quatro estavam olhando para mim. Coloquei a mão no cano na arma e bradei:

— Mavie, se abaixa! — Atirei no homem loiro, que já tirava da jaqueta um revólver. Atingi a garganta dele, que passou a verter sangue por cima da mesa.

Ouvi gritos, mesas sendo empurradas, copos quebrando e o som de pessoas correndo e se jogando no chão. Não vi mais a irlandesa, por mais que tivesse olhado ao redor para achá-la.

Reparei que os três homens restantes haviam se lançado para trás, se escondendo atrás da mesa que virou em cima do cadáver do loiro. Vi o rosto do branquelo alto, enquanto eu mesmo virava uma mesa para me refugiar atrás dela.

Um tiro do branquelo atingiu um sujeito que estava no grupo que antes jogava sinuca. Rangi os dentes, furioso, vendo que aquilo que eu pretendia fazer sem envolver ninguém já matara um inocente. O pobre coitado caiu no chão, morto, sem forças, enquanto uma mulher ao lado dele gritava, desesperada.

O homem de bigode ralo se levantou, tentando correr de um lado ao outro, para conseguir cobertura. Foi minha chance. Me levantei, e atingi três tiros seguidos em seu tórax. O homem caiu para trás, quebrando a porta de entrada do bar.

Tive de recuar, ao passo que o branquelo alto e o latino vinham na minha direção. Os dois tinham duas pistolas 9mm com eles, atirando sem nenhuma preocupação por todos os cantos do bar. Enquanto eu tentava gritar a todos para que se escondessem, uma bala atingiu meu braço perto de meu cotovelo esquerdo, pelas costas.

Tropecei, caindo ao chão, me esgueirando por trás das muitas mesas reviradas. Segui o melhor que pude, sangrando, até atrás do balcão, antes que os sujeitos me alcançassem. Me levantei, atirando em cheio no latino, que estava próximo de pular o balcão do bar. O branquelo tentou se esconder junto a parede, mas mirei nele e o acertei, na altura do ombro.

Os gritos das pessoas aterrorizadas continuavam, enquanto muitos corriam para fora do bar. Pude ver, pela abertura da portinhola, alguns corpos mortos de gente que não tinha nada a ver com tudo aquilo.

Odiei Old John, odiei Bud, odiei Merle... Mas, acima de tudo, odiei a mim mesmo.

— Vamos levar a sua cabeça para o seu chefe, como um aviso. Jack Pit quer deixar bem claro pra Old John... Que ele não manda em mais nada por aqui. — Olhei para cima, e vi o maldito branquelo mirando a 9mm na minha cara.

Puta que pariu. Pensei, e jurei que morreria assim.

Mas ouvi o som de uma flecha zunindo pelo ar, cravando-se no rosto do homem alto que iria me matar a qualquer momento.

Olhando ao meu redor enquanto segurava meu braço ferido, vi que Mavie havia saído por trás das portas da cozinha, e tinha assassinado o último dos bandidos de Jack Pit. Com seu arco e flecha de caça.

— Puta merda, Esquila — agradeci rosnando, enquanto segurava meu braço sangrento.

— Não há de quê — ela disse, olhando atordoada para toda aquela bagunça.

Demorei a compreender direito o que aconteceu depois daquilo. Vi alguns caminhoneiros e outras pessoas do bar que sobreviveram ao tiroteio e ainda estavam lá dentro andarem até nós, perguntando se estávamos bem. Mavie foi abraçada, e me ajudaram a me levantar.

— Vocês são heróis. Esses sujeitos assaltam a região há meses! — as pessoas ingênuas diziam, sem nem imaginar o que realmente estávamos fazendo ali.

— Caramba! Isso pareceu um filme! — o tal Tommy, que havia sobrevivido também, falou. Me olhava de um jeito imbecil, admirado.

Senti a mão daquela garota dentuça me puxar pelo braço bom, enquanto todos a chamavam de volta.

— Mavie, aonde você vai?! — Tommy insistiu, preocupado.

— Segure essa barra pra mim! Coloque aquela moça e a filha dela na ambulância! Preciso resolver algumas coisas! — ordenou ela, nervosa, enquanto me arrastava para fora do bar.

Já no ar fresco da noite, puxei meu braço para longe das mãos da garota, um pouco fraco pelo tanto de sangue que já tinha perdido.

— Que merda você pensa que está fazendo?

— A polícia local é do Old John — Mavie lembrou, entre dentes, irritada. — Não vai sobrar pra gente, se não estivermos aqui. Vão falar que foi um assalto, algo assim — retrucou.

Aquilo era verdade. A polícia de Chattanooga era reconhecidamente corrupta, uma milícia liderada pelo traficante de drogas local.

— Mas isso não pode ficar estranho demais. Levar um cara baleado pro hospital pode gerar perguntas — disse ela, com razão. — Vou te levar para a minha avó. Ela é médica, vai cuidar disso — garantiu.

— Não. Vou achar meu irmão. Tenho de ir pra casa do Bud — disse, também irritado.

— Aonde você acha que seu irmão está? — ela rebateu, furiosa. — Eu avisei ele, seu idiota!

Encarei aquela garota estranha, a olhando devagar, analisando-a como se realmente a visse de verdade.

— Você é mesmo uma figura, hein, Esquila — disse, entre o deboche e a seriedade, e ela apenas soltou um alto "tsc", me levando até seu carro.

Passei as horas seguintes sendo tratado por uma tal de Annie, que removeu a bala do meu braço e me deu um remédio forte para a dor. Nunca iria imaginar que uma velhinha de cabelos brancos daquela trabalhasse como médica de bandidos, ainda mais do Old John. Ela pareceu ler meus pensamentos, pois disse que apenas fazia o que tinha de fazer para sobreviver.

Eu compreendia muito bem aquilo.

Encontrei Merle, que estava me esperando na clínica particular aonde fui levado. Senti vontade de lhe dar um soco enorme na cara, mas me controlei. Meu irmão me abraçou, dizendo que estava orgulhoso de mim, pedindo trocentas desculpas, e eu apenas lhe dei meu olhar silencioso que expressava tudo. Deveria ter dado um tiro no rabo daquele filho da puta, mas meu irmão sempre foi meu ponto fraco.

Ele falou que Old John tinha perdoado todos nós, se despediu e foi atrás de Bud para terminar a noite, falando que nos encontrávamos no nosso apartamento. Eu só pensava no que poderíamos fazer pra fugir dali e não ter mais de trabalhar para aquele cara. As coisas já haviam passado dos limites, muita gente estava envolvida, e a tendência, eu sabia, era piorar.

Por isso eu me senti um idiota quando aquela irlandesa disse que iria me dar carona e eu topei, e ela falou que levaria a avó em casa. Quando descemos até o carro, me senti mais idiota ainda ao perguntar para ela o que diabos ela fazia na porra dos Estados Unidos, e ela me respondeu que tinha assuntos inacabados para resolver.

Me senti especialmente idiota quando ela parou na frente de um motel, e perguntou se eu tinha "coragem de arriscar uma chance".

Com todo aquele jeito de patricinha metida a durona. Com aquela maldita mira certeira, mesmo no que não envolvia atirar em alguma coisa.

Com aquela maldita carinha de anjo, sorriso lascivo e dentinhos salientes.

Não resisti. Sorri também, e a puxei para mim. Beijei aquela garota com o mesmo afã daquela noite atípica, intensa e fervente. Aquela noite repleta de tiros no escuro, a maioria deles certeiros.

Aquele era mais um deles.

Mas o que eu poderia fazer? Era da minha natureza.

Ela era uma atiradora.

E eu também.


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Notas finais do capítulo

E aí, o que acharam? Espero que tenham gostado! ^^ Primeira vez que escrevo algo em UA.Aguardo reviews, favoritos e recomendações, hehehehe!
*Ossificado: gíria irlandesa pra quem está caindo de bêbado.