Amianto escrita por MaryDuda2000


Capítulo 1
Capítulo Único - Brincar de morrer


Notas iniciais do capítulo

Olá! Bem-vindos! Essa é a minha primeira one shot e fico feliz que o título, capa e/ou sinopse tenha os atraído a história! Espero que gostem e boa leitura!



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Logo que amanheceu, a cidade começou a se movimentar. O fluxo das pessoas que acordavam cedo para cumprirem a matina, seja para o trabalho ou escolas, era o maior do dia naquela cidade cômoda, considerada por alguns bastante interiorana, apesar de ser uma capital estadual.

O sol há pouco tempo tinha raiado, talvez mais cedo que o normal, quando os primeiros ônibus começaram a rodar pelas ruas juntamente a algumas dezenas de carros que seguiam em direção a avenida principal.

Como de costume, Freya levantou-se, arrumou-se rapidamente, deu banho em seu casal de filhos, serviu o humilde café da manhã com somente alguns biscoitos e um copo de leite dividido entre ambos, saindo em seguida para não correr o risco de perder novamente o primeiro ônibus e ter de escutar as repetitivas reclamações do patrão que não fazia nada mais que isso.

Teve imensa sorte, pois o mesmo atrasou cinco minutos. Foi o suficiente para, num grito, pedir para que alguém mandasse o motorista esperar. Assim que entrou, pagou e se postou de pé, encostada a um canto qualquer.

Uma buzina a acordou do devaneio. Quando dormira? Nem mesmo se lembrava ou importava. Olhou diretamente o relógio e já faltava pouco, contudo o ônibus estava parado e muitas vozes impediam que a mulher conseguisse entender sequer o que acontecia.

Não se postou a discutir. Desceu junto com outros desconhecidos e caminhou em passos ágeis e largos até o prédio arcaico onde trabalhava. Os pés latejavam de acordo com o salto desconfortável que deveria usar para passar boa impressão, o que para ela, não valia de nada, pois assim que chegasse, deveria vestir o uniforme cinza sem graça e fingir estar extremamente bem, sem as dores da discussão noturna e conturbada que teve, seguida de um rápido abandono paterno. Pelo menos assim supunha.

Respirou fundo ao ver mais uma mobilização. Ótimo! Seria promoção de estofados? De fato, teria muitas vendas e uma tarde horrível, já que o ar condicionador da loja estava quebrando e somente sete dos quinze ventiladores funcionava, graças ao chefe sovina.

Teve sorte de conseguir entrar pelo portão dos funcionários, entretanto, logo teve que sair, acompanhando Lorde, a colega que era a única que substancialmente sabia da sua situação e desconforto em meio tudo aquilo. Agora, com gravidez de risco, precisava de acompanhamento e aqueles eram os únicos momentos que Freya conseguia para enfim respirar.

Deslocaram-se e praticamente meteram-se em meio ao motim mais próximo do prédio, dois estabelecimentos após: o museu cultural municipal. Outro prédio antigo e mofado que não rendia nada mais que teias de aranha e um orgulho frustrado dos marcantes acontecimentos que não surtiram nenhuma melhoria de vida, a não conquistar três minutos do jornal regional.

Poderia ser um dia nublado, de ventos frios e clima triste, contudo continuava praticamente tudo normal. Pessoas vindo de lado a outro, tirando os rapazes da praça que continuavam a elucidar os demais com suas sucintas e suaves canções por pura diversão, os quais se postavam a somente alguns metros das duas.

As cerca de trinta pessoas que disponibilizaram a parar e encarar a situação olhavam constantemente para cima, aquela imagem escurecida pelo sol forte e que não permitia que focassem por muito tempo. Nos poucos segundos possíveis, notava-se somente a imagem de alguém, notavelmente uma jovem de pé no alto do sexto andar.

Encarando aquele acúmulo sem justificativa válida, pois não conhecia ninguém, estava Ana. Só mais uma Ana em meio a todas que existem nesse mundo. E para completar? Ana Maria. Mais uma recém debutante, frustrada, magoada, desgarrada.

Até então, só gostava de ir ali. Lembravam-lhe os poucos momentos em que fora feliz. A efemeridade de tudo e a felicidade que sentia com aquilo. Entretanto, não tinha conhecido o outro lado da moeda. Quem sabe, o verdadeiro lado por trás de tudo. O fracasso, a traição, o abandono, a tristeza, a insatisfação, a indignação, a irritação... Aquele protesto tímido que durou várias noites de retenção no quarto, sem mais expectativa de vida ou qualquer outra coisa. Ela simplesmente mudou e ninguém notou. Ou simplesmente, não quiseram notar. Com missão completa, o que mais faria? O velho papo do não ter mais sentido... Até tinha, no entanto ela não queria mais saber. Poderia fazer uma lista do porquê de tudo aquilo, todavia não valia a pena.

Sua insignificância era só mais um espetáculo. Pessoas ali embaixo a viam, atentos, amedrontados. Uma tragédia estava para acontecer. O mundo virou de cabeça para baixo. Pessoas sofriam todos os dias e ninguém nunca ligava. O mais cômodo sempre é a melhor opção. E lá estavam eles, só suspirando. Talvez algum beato rezasse para que ela se libertasse dos demônios que a levaram lá em cima, ligando para um padre e fazendo um pedido de exorcismo imediato. Outro, para que se atirasse logo e assim teria ainda história para contar durante o jantar e motivos para chegar atrasado no serviço. Mas ninguém estava ali de verdade por querer. Era só mais uma multidão curiosa e desconhecida.

Dizem que todos vêm para deixar uma marca. Qual seria a diferença? Deixaria uma no chão, mesmo que de sangue, a qual logo sairia em uma ou duas chuvas depois. Até porque, tudo se apaga e nada fica. Só as lembranças, que levamos conosco, e assim como as pessoas que vão embora, elas vão junto, no leito de morte. História? Seria, teria. E um dia seria apagada com o tempo, a falta de interesse. Seria talvez um exemplo do que não fazer. Mas quem entende o enorme vazio que saberia o que se sente realmente.

“Eu aprendi. A vida é um jogo: cada um por si e Deus contra todos. Você vai morrer e não vai pro céu. É bom aprender. A vida é cruel!” – Estava escrito na sacada. A garota encarou, tocou cada letra feita pela tinta em grafia não muito boa, porém que somente alguém que a entendia podia escrever. Seria a primeira a estar ali, pensando naquilo?! Sua mãe passara toda vida naquele prédio. Conhecia de tudo e nunca mencionara algo de gênero. Até tudo mudar, já fora um lugar perfeito. Ela não morreu. Não fisicamente. Mas tudo que significara, sim. Se foi, como o vento. Com a velocidade que bate a asa do beija-flor. E Ana era um. Sempre a tinham dito. E talvez, tenha chegado enfim, a hora de lançar vôo.

Passou tanto tempo refletindo, que tomou um susto. Não daqueles que resultem em gritos e desespero. Somente o suficiente para lhe chamar atenção, acelerar um pouco o coração e lembrar que ainda estava ali. Numa casca viva, pele frágil, marcada e inválida.

Olhou para trás e logo notou o casal estereotipado. Uma senhora no auge da juventude, com tudo que a vida poderia lhe oferecer de melhor, em meio aos cabelos loiros tingidos e lábios em púrpura, acompanhada por um quase largado, de tão comum o homem. Barba notável, por fazer, olhos castanhos e cachos um tanto maltratados de mesma cor. Talvez, só mais um em meio ao acúmulo lá embaixo.

— Garota, escuta só! Você não quer fazer isso! – começou a mulher, aproximando-se com o salto que estalava o chão a cada passo – Isso é só uma loucura! Um momento ruim e vai passar. Lembra de mim? Eu sou amiga da sua mãe... Não quero ter que ligar para ela e avisar que está conturbada, não é?! Sempre foi tão quietinha... Vamos descer! Te compro chocolate! – sorri amigavelmente com o dente sujo de batom, que provavelmente não sabia.

— Eu estou muito bem aqui. Só estou... Olhando a cidade. É proibido? – retrucou a jovem. Em resposta, a outra somente revirou os olhos, encarando o rapaz que subira com ela, como se pedisse ajuda. No entanto, o outro nem sequer se mexeu.

— Ok! Quer saber, espera aí e veja o quanto quiser. Vou ligar para seus pais virem logo! – avisou, indo em direção a escada, murmurando qualquer coisa o menos amigável possível.

Os dois ali restantes olharam um o outro, mas não nos olhos. Ela encarava a boca do rapaz, esperando o que ele diria em seguida para que não o cumprisse com a meta. Ao contrário do que pudesse esperar, ele só olhou da sacada, viu seu tamanho, ainda pequeno, sentou-se no chão e tirou uma caixinha do bolso. Esperava que fosse de cigarro, mas logo tratou de espalhar as cartas do baralho pelo chão.

Tentou ignorar. Voltou para perto da sacada e viu, que parte das pessoas tinham ido embora. Quem sabe, cansaram de esperar. Deveriam ter só mais cinco ou sete pessoas ali. A miopia da garota não permitia que contasse. Respirou fundo. O sol começava a queimar sua pele e fazer arder. Sem ventos. Sem nada. Colocou um pé, metade no prédio, metade no ar.

Tremulou. Suspirou. Pensou. Não em algo em específico. Talvez no nada. Só tentou pensar. Pensar no que poderia pensar. Imaginar. Idealizar. E nada veio a mente. Quase por instinto, virou o rosto e encarou o rapaz, que permanecia ali, movendo de lado a outro as cartas e desfazendo tudo.

Quando percebeu, estava lá. Não mais que um metro os separava. Ele nem mesmo levantou a cabeça. Só permaneceu. Agora de perto, Ana podia ver o que dizia em meio aos traços de tinta: Mais amor, por favor! Ela só o olhou, parada e se sentou.

— Que bom que atendeu meu pedido... – disse tranquilamente o mesmo.

— Mas você não falou nada e... Eu já disse que só... – ele a interrompeu.

— Eu só pedi para sair da sacada. – levantou o olhar e só então, notou óculos discretos, de lentes finas tão quão a armação que as sustentavam em sua face.

— Não escutei...

— Não! Tudo bem! – dá de ombros e entrega algumas cartas a ela, que nem faz questão de virar.

— Não acha que é meio nova para isso? – ela não respondeu – Aqui é muito alto... Demais para pular!

— Eu... Quer saber, não te devo satisfações!

— Ela foi ligar, mas não vai adiantar nada. Quem decide é você! – largou as cartas e a olhou diretamente. Por um momento pôde notar alguma coisa de juventude por trás das lentes – Quer sair?

— Está mesmo dando em cima de uma suicida?

— Eu só ia chamar para tomar um café – um tanto desinteressado, voltou a mexer nas cartas.

— Ah... – ela reconheceu de algum modo, o jogo. Vinte e um. Não lembrava de onde aprendera as regras, mas aquilo a trouxe algo para pensar... Do que custaria um jogo?

E assim ambos continuaram. Surgindo e morrendo de quando em quando, uma conversa vaga. Mas aquilo a ocupava. Ela o perguntara, o que a vida o fez para que chegasse a ir ali em cima, jogar com uma completa desconhecida. O rapaz somente replicou que seriam os mesmos motivos que o dela.

— Mas tudo bem. Nem sempre estamos na melhor. – suspirou ele.

Mais abaixo, a loja era aberta e Lorde sentia fortes contrações. Uma loira ligava para os pais da garota que provavelmente tinha se satisfeito com a atenção que recebera pela atuação e já saíra da sacada. Dois dos rapazes a colocavam dentro de um carro e, em companhia da colega de trabalho, iam em direção a emergência, quatro quarteirões após. De fato, o trânsito não estava a favor de ninguém. Algum acidente deveria ter acontecido.

Andaram pouco mais de um quarteirão, quando Freya recebeu a seguinte mensagem. O nome já a assustou. Era a filha com um sucinto texto: Ele está aqui! Não precisava dizer mais coisas. O marido estava lá, com certeza, bêbado e aquilo era um perigo. As marcas das mãos do mesmo ainda se mostravam em seu pulso direito, assim como o corte no lábio inferior, que a própria mordera com raiva de tudo que acontecia, tentando não chorar alto, para que os filhos não escutassem a discussão.

Num apelo, desceu do carro, sem dizer mais nada, só correu em direção a casa, deixando a bolsa e ignorando os pés inchados e doloridos. Por infelicidade, virou o pé em uma esquina, piorando a dor e retardando seus passos. Prosseguiu, cruzando por mais a frente com a causa de todo o engarrafamento: um acidente entre duas motos e um carro. Não sobrara nada.

Ambos sorriram. Ana o olhou e até mesmo a aura do homem parecia mais feliz. Não sabia seu nome. Nem mesmo importava. Talvez fossem duas gotas formadas, prestes a escorrer. Porém todas as gotas, evaporam. O mesmo levantou-se, deixando o baralho com ela e seguiu em direção a escada. Suspirou. Olhou-a parada ali. Os lábios pareciam como quando ali subiu. Parados, inexpressivos. Porém os olhos sorriam. Estranhamente, sorriam. E assim, ele se foi.

Lorde chegara ao hospital. Fora levada logo para a sala e os procedimentos de uma cesariana iniciaram-se. Os médicos reclamavam das complicações. A anestesia foi ministrada. O bisturi foi pego.

Na esquina da rua, Freya esbarrou com a filha. Apesar dos oito anos, corria rápido o bastante. Não se abraçaram. Nenhuma cena de filme. Toda a corrida dela era pedindo ajuda. Juntas, correram em direção de casa.

— Moço, ninguém é de ferro! Somos programados pra cair...

O garoto, na inocência dos cinco anos, pegou somente os dois carrinhos que tinha deixado na varanda e correu, deixando o pai aos berros para trás, ao encontro da mãe. Atrás daquilo que lhe era fonte do maior amor, do zelo, do carinho, da essência... Um carro, na hora e lugar errados, freou, alguns segundos atrasado.

Gritos se estenderam pelo corredor. Gêmeos nasciam, igualmente saudáveis. Sorrisos vinham. Lorde tinha seus filhos. Suor frio lhe escorria a face. Queria sentir-lhes ali, perto dela. Como numa concha. A dor e a glória de quarenta semanas bem suportadas. Sem nem imaginar o que poderia vir. Protegeria debaixo de suas asas a prole. A rápida noite em protesto lhe resultou isso. Isso é sua mais nova e melhor responsabilidade.

Mães choraram. De alegria, emoção. De tristeza, desespero. Abraçando suas crias como se não houvesse amanhã. Seus bebês. Em meio a lágrimas, um mix de sentimentos. E tudo mais acontecia. E o beija-flor? Voou! Deixou sua marca. Bateu as asas e cumpriu o destino. Como diriam lendas indígenas, quase como a da Vitória-Régia, encontrou-se com a própria essência. Uma alma perdida, uma aura renovada.

A efemeridade seguia. Crianças brincavam. Mães cozinhavam. Pais trabalhavam. No entanto, nem toda estrutura é assim. Enquanto uns brincavam de jogo da vida... Outros, apesar de jovens demais, brincavam do que não podia... De um jogo macabro e real. Presente logo ali, na esquina. Talvez nunca se seja novo demais para brincar de morrer...


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Notas finais do capítulo

-> Amianto (Supercombo) http://www.vagalume.com.br/supercombo/amianto.html
Agradeço a atenção de quem chegou aqui! Caso queira comentar ou mandar sua opinião por mensagem privada, estou prontamente disposta a responder. Espero que tenham conseguido entender a minha analogia e interligação a história de Freya com de Ana Maria.
Até, assim espero, logo!



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