Lances da vida escrita por Jana


Capítulo 8
Revivendo o passado




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SOLUÇO

– Espero que tenha passado nas provas. Minha mãe grita da cozinha.

Estou tentando tirar o tanto de tinta que tenho no cotovelo. O casal do asilo me fez pintar a cozinha deles de um rosa bem berrante para combinar com as rosas de plástico do vaso da mesa da cozinha. – Eu dei o meu melhor. Eu disse.

– Espero que seja o suficiente.

Quando será que ela vai parar de me tratar como um estranho. Eu ainda vou romper essa bolha. Um dia, bem em breve.

O telefone tocou, minha mãe atendeu e passou para mim. – É para você, é o Bocão.

– Alô.

– O gerente da loja disse que você chegou atrasado.

Droga. – Eu tive que ir depois da escola, porque-

– Eu já sei de tudo isso, me poupe. Ele fala gritando.

– É tolerância zero. Você assina o ponto do serviço comunitário na hora. Ponto. Entendeu? Entendi.

– Isso vai para sua ficha, Soluço. Posso pedir o juiz para mandar você de volta para o DOC. Continue pisando na bola e farei isso.

Ele continua soltando um monte para cima de mim, mas já estou nem prestando atenção.

– ...Eu pedi para ser um cidadão modelo e chegar no horário, você me decepcionou. Que isso não se repita.

– Eu não tive culpa.

– Se eu ganhasse dez centavos por cada vez que ouço isso estaria milhonário.

Sargentão. – Entendi, mensagem recebida.

– Ótimo. Checarei com você amanhã.

Quando desliguei, notei que minha mãe estava para ali perto e tinha ouvido a conversa.

– Está tudo bem?

– Sim.

– Bom. Ela pega sua bolsa. – Vou ao mercado. Vou fazer minhas almondegas especiais para o festival de outono no sábado.

Minha mãe sempre é voluntária para essas besteiras. As almondegas dela sempre vencem todo ano o concurso das ajudantes das mulheres. Ela coloca todas as medalhas na prateleira na sala de estar.

– Ela é louca, sabia? Luane aparece na porta.

– Você acha que as coisas vão voltar ao normal um dia? Ela me pergunta

– Espero que sim. Eu vou passar meus dias tentando, a começar agora mesmo com minha irmã. Ela caminhava até a cozinha. Quando eu disse de repente. – Você já falou com, você sabe, a Asty?

– Não.

– Nem uma vez desde o acidente?

Ela sacudiu a cabeça. – Eu não quero falar sobre isso. Não agora.

– Então quando? Ela não responde. – Um dia vamos discutir isso, Luane. você não pode evitar essa conversa para sempre.

Eu que vou preso e a minha família é que enlouquece. Que ironia.

No dia seguinte vou com meus pais saber o resultado de meus exames. Isso é uma droga.

Millor abre uma pasta. Eu observo. Pastas também são uma droga. Parece que agora minha vida se resume ao que está escrito em pastas.

O advogado de defesa tinha uma pasta resumindo o acidente, a prisão, toda história da minha vida. O diretor do DOC tem uma igualzinha. Eu deixei de ser um garoto, agora sou resumido ao que escrevem sobre mim em uma pasta. Até o Bocão tem uma maldita pasta.

– Apesar de Soluço ter ido bem em quase todas as provas, Millor dirigi sua atenção ao meu pai. – Ele não passou na prova de estudos sociais.

Que novidade, dado o que Luane me falou.

O sorriso de minha mãe foi embora. – Certamente tem algum erro.

Olhei para meu pai, que olhou para mim antes de falar. – Soluço frequentava o programa acadêmico, bem, no departamento de correção.

– Pode ser Dr. Strondus, mas ele não passou em estudos sociais.

Quer saber, vou falar o que sempre quis dizer desde o inicio, dane-se as consequências.

– Eu vou abandonar a escola.

Minha mãe se enfureceu. – Soluço, não. Uma reação verdadeira em público pela primeira vez.

Meu pai se pronuncia. – Filho, você não vai abandonar a escola, tenho certeza que Millor tem um plano.

O cara franziu a testa e pegou outra pasta. O que quase me fez rir.

– Bem, eu posso botar ele numa turma de estudos sociais no junior e mantê-lo em todas as outra matérias no sênior.

– Ótima ideia, diz minha mãe.

Meu pai concorda com a cabeça.

– Ele terá que fazer o curso de verão e se formar mais tarde, não é o ideal, mas-

– Tá ótimo, né Soluço?

Curso de verão? Por que não enfiam logo um bambu nas minhas unhas?

– Como quiser, pai.

Peguei o papel com o quadro de horários com a secretária e me dirigi à sala onde ocorria a aula de inglês. Só o Millor para me fazer entrar no meio da aula.

Posso até ouvir a voz de apresentador de televisão. Atenção, e agora com vocês, diretamente do departamento de correção, o ex-presidiário Soluço Strondus. Posso sentir sessenta olhos queimando minha nuca, enquanto caminho até o professor. – Posso ajudar?

– Sou dessa turma. Estendo o papel para ele.

– Ok, sente-se então. Caminho para o fundo da sala e me sento ao lado de Melequento. Nós costumávamos sair juntos, sabe... antes.

Depois da aula vou almoçar, deixo falarem do ex-detento o quanto quiserem. Encara-los é mole para quem encarou os caras do DOC.

Quando viro o corredor encontro com Kendra. É a primeira vez que ficamos próximos desde que cheguei.

– Oi, Soluço. Ela fala em um tom provocativo. – Melequento me falou que esteve com você na aula de inglês. Confirmei

– Lembra quando tínhamos aula de inglês juntos? Se me lembro. Pediamos para ir ao banheiro ao mesmo tempo e nos encontrávamos no corredor para se agarrar.

– Sim, me lembro.

Ela abriu um sorriso com seus lábios brilhantes. Eu poderia beijar esses lábios a vida toda. Ainda posso.

– Então nos vemos depois.

–Depois. Eu disse olhando o balançar de sua bunda.

Depois das aulas fiz alguns reparos e instalações elétricas. Chegando em casa verifiquei

A secretária eletrônica e só uma mensagem do Bocão. Pego o telefone e ligo de volta.

– Alô

–Soluço?

– Sim.

–Bom trabalho hoje. Chegou no horário.

– Obrigado.

–Continue assim. Eu ligo em dois dias.

Huh, dois dias sem ouvir a voz de Bocão. Meu pai vai trabalhar até tarde hoje. Estamos na mesa jantando. Luane brinca com a comida, minha mãe conversa no telefone com as amigas como se nem estivéssemos à mesa. Gosto mais quando estão todos dormindo, é o único momento onde parece que nada mudou.

Rolo na cama, sem conseguir dormir. Muitas coisas passando pela cabeça. Acho que vou precisar de um colchão igual ao do DOC para conseguir dormir novamente.

Fico em pé e caminho pelo quarto. Olho a foto de Kendra em minha cabeceira como se ela sorrisse para mim. Como se houvesse uma promessa secreta entre nós dois. Pego o telefone e disco o número privado que só toca no quarto dela, mas desligo antes que toque.

E se ela estiver com alguém? E se ela não me quiser mais. Não vou correr atrás dela se ela estiver saindo com outro.

Olhei pela janela, pensando quanto tempo faltava para o sol nascer. No DOC tinham muitos que sofriam para dormir. Os novos detentos eram os que mais sofriam.

Percebi a luz do quarto da Asty acesa. Tenho aulas de informática com ela. Eu sento lá no fundo enquanto ela senta na frente. Quando o sinal toca ela é a primeira a sair.

Será que ela acha que é a única afetada?

ASTRID

Acordei novamente de um pesadelo, ainda bem que não acordei gritando. Dessa vez o pesadelo foi diferente. Ao invés de Soluço no volante, eu via a Kendra Grover. Sempre nos meus pesadelos era ele.

Talvez isso seja porque eu vi Soluço com ela no refeitório ontem. Ele não me viu porque sentei perto da porta para comer e sair sem ser notada.

O refeitório é um lugar estranho, cada um tem sua área. Os populares tem sua área vip, os normais sentam cada um com seu grupo e os solitários espalhados por ai.

Eu costumava ser popular por ser atleta, agora sou a estranha solitária que não se encaixa em lugar nenhum.

Soluço não tinha medo de atenção, caminhava de cabeça erguida como se fosse o próprio Sr. Millor. Depois foi até Kendra Grover e disse algo que a fez sorrir. Todo o refeitório parou para ver esse momento. Será que ele sabe que Kendra e Logan estão juntos? Pela forma que ele olhou para a bunda dela acho que ele ainda não está ciente de tudo o que ocorreu durante o tempo que ficou fora. Algumas coisas pelo visto não mudaram.

Abri minha cortina e olhei a janela de Soluço, já são mais de três da manhã e ele deveria estar dormindo feito um bebê.

Mas ele não está, a luz do quarto dele está acesa e vejo ele andando pelo quarto.

Fechei a cortina e apaguei a luz e me deitei. Não posso deixar velhos hábitos voltarem.

A verdade é que sempre tive uma queda por ele.

Ele zoava a mim e a Luane quando brincávamos de barbie, mas quando precisavamos de um menino para nossos Shows sempre podíamos coagi-lo a participar. Quando bricavamos de apresentações de balé ele sempre fazia o papel de espectador.

Mas a verdadeira paixão surgiu quando ele assumiu a culpa quando quebrei um vaso de porcelana chinesa da mãe dele na sexta série.

Eu estava na sala esperando Luane para jogar tênis. Soluço me surpreendeu descendo as escadas correndo com seu sabre de luz. Agitando –o no ar. Eu ri comecei a travar uma batalha com ele usando a raquete. Sem querer acabei acertando o vaso. A mãe dele correu para a sala com o barulho e ele assumiu a culpa. Soube que ele ficou de castigo por um mês. Nós nunca contamos para ninguém que foi eu.Depois disso ele virou meu herói.

Em seguida passei a observa-lo pela janela. Quando se juntava com os amigos ou se reunia com os escoteiros. Na sétima série ele começou a cortar a grama do quintal e eu não conseguia me concentrar nos estudos mais. Às vezes ele percebia que eu o observava e acenava para mim.

Soluço nunca admitiu que gostava de mim, além do que amiga. Por mim tudo bem. Bastava a esperança de que algum dia ele me olhasse diferente.

Ele teve algumas namoradas, mas nenhuma séria.

Até Kendra.

Eles começaram a namorar e ela não saia da casa dele. Sempre que os via eles estavam se agarrando.

Foi na mesma época que meu pai saiu de casa. Eu era uma garota desesperada para que os dois me amassem como os amava. Meu pai e Soluço.

O que eu podia fazer para chamar a atenção deles? A única coisa em que eu realmente era boa. O tênis.

Então pratiquei e me tornei uma das melhores. Quando ele visse meu desempenho me notaria e mandei artigos para o meu pai para ele saber o quanto eu era boa. Quando ele visse meu desempenho me notaria.

Naquela época meu pai não veio assistir meus jogos.

Também foi quando Soluço perdeu a virgindade com a Kendra.

Eu vi eles dois no jardim de casa. Nunca contei para ninguém, mas posso jurar que o Soluço olhou para minha janela e viu que eu vi.

Ele nunca disse nada, e eu nunca contei para Luane. Mas depois disso fiquei tão envergonhada que parei de vigiá-lo.

Eu continuei repassando na memória a noite do acidente e a conversa que tive com o Soluço antes do acidente e as histórias que soube.

Ele com certeza estava bêbado, o policial confirmou, mas até que ponto ele não sabia o que estava acontecendo?

Por mais que ele tenha odiado a nossa conversa, era a verdade. Sua namorada estava o traindo.

– Você está mentindo. Ele disse

Eu estava determinada a lhe contar tudo naquela noite. – Não estou, Soluço. Eu a vi com outro cara. Só não acrescentei que o outro cara era o melhor amigo dele.

Ele me segurou muito forte e tive medo. Ele nunca havia me tocado assim antes.

– Eu te amo. Disse a ele. –Sempre te amei. Abri o jogo naquela hora. – Abre os olhos Soluço, a Kendra está te fazendo de idiota.

Ele tirou a mão de mim, depois disse algo que me doeu demais. – Você não entende, Astrid? Nós nunca vamos ficar juntos. Agora pare de espalhar mentiras sobre minha namorada ou você pode se machucar.

Eu sei que foi um acidente, mas ainda há uma dúvida persistente. Será que não poderia ser proposital?

Cheguei da escola e tinha uma mensagem da Senhora Reymond na secretária eletrônica.

Retornei a ligação e ela disse que queria me entrevistar para um trabalho de meio período como sua acompanhante.

Fui na entrevista na casa dela, conversamos e ficou combinado que irei de segunda a sexta das três e meia até as sete e algumas horas nos finais de semana e ela me pagará mil e quinhentos dólares por mês. Assim poderei pagar a viagem para o Canadá. Começo na segunda.


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