Rebeldia Agridoce escrita por Lenka Volkovesque


Capítulo 2
Casamento coletivo


Notas iniciais do capítulo

Me desculpem pela falta de equilíbrio com relação ao tamanho deste capítulo e o anterior.



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Pedalar era como voar sobre o asfalto. A antiga bicicleta de Sofia não tinha um sinal de ferrugem. Milena sentia o vento fresco em seu rosto como beijos molhados nas bochechas. Seu cabelão solto era puxado para trás enquanto ela guiava sua bicicleta contra o vento. Sorria sem que ninguém mandasse. Sorria para o céu colorido em anil, lilás e salmão, via as costas de suas amigas, que pedalavam antes dela. O rabo de cavalo de Sofia, os cachos de Isabela e o sorriso de Clara. Seus dentinhos separados, covinhas nas bochechas e cabelos ondulados preenchiam o peito de Milena com alegria.

Um susto ao abrir os olhos. Pulmões se enchendo de agonia. Olhou para o teto lilás e as paredes iluminadas pelo Sol. Percebeu, lentamente para si e rapidamente para o ambiente, que ontem não estava muito distante e que o grande dia não havia chegado. Milena sentiu vontade de chorar de raiva. Por que faltava tanto para estarem prontas¿

Uma Clara de pijama arrumava sua cama e dava bom dia bem humorada para Milena, enquanto falava sobre

Milena apertou o travesseiro contra o rosto. Clara se ajoelhou perto de seu colchão. Tirou calmamente o travesseiro da amiga, que não relutou. Quando viu seu rosto inchando, lhe deu o abraço firme que uma menina de onze anos pode dar.

– Lena...

Assim que viu as conhecidas paredes do quarto limpo e infantil de Clara, lembrou-se do motivo de ter dormido ali. Lembrou-se da noite passada e do que a fez correr do barulho até a casa da melhor amiga como se fugisse de um bombardeio.

Depois do cancelamento de um show de Metalcore local, os pais de Milena decidiram dar a festa dentro de casa. Abriram as portas e suas latas de cerveja para todos os amigos que encontraram e ligaram os sons no último volume. Quando Milena apareceu no corredor reclamando, com as mãos nos ouvidos, sua mãe escancarou os olhos em espanto. Pensaram que ela estaria dormindo na casa de Clara.

– Eu moro é aqui! E não na casa da Clara – Reclamou para sua mãe, ainda protegendo as orelhas dos ruídos agressivos e franzindo o nariz para o cheiro forte do álcool.

Antes que sua mãe pudesse fazer algo além de se inclinar para Lena e tocar seus ombros, um grito de vômito surpreendeu o ambiente, seguido pelo cheiro do bicarbonato e comida degradada.

Lena achou que sua mãe mandaria todo mundo embora quando viu seu pai gritando com o autor do vômito e com quem trouxe a vodka mais forte dentro daquela casa. Sua mãe a deixou sozinha enquanto gritava com o mesmo cara. Numa solidão constrangedora no meio de uma multidão em sua própria casa, Milena olhou para os lados e viu mais que punks dançando com garrafas nas mãos. Pessoas bêbadas dormiam no tapete, sofá, chão. Gritando por sua mãe, começou um choro escandaloso, que evoluiu para medo quando três ou dois bêbados mexeram em seu cabelo e a chamaram de boneca. Tomado pelo estresse, seu pai gritou para sua mãe:

– Quê que a Milena tá fazendo aqui¿

A paralisia pelo medo por pouco não tomou conta da menina. Juntou toda a pouca energia que tinha e a superou. Correr até a porta foi o passo mais arrastado. Mal conseguiu olhar para trás e se certificar que nenhum rockeiro bêbado a seguia.

Andar durante a noite escura não lhe era tão incomum. Irreal era a pressa e o medo, que pareciam retardar sua velocidade e distanciar cada elemento de que ela se aproximava. Mas Milena não desacelerou em momento algum. Queria mais que tudo estar onde seus pais supuseram que estaria.

Clara estava dançando com Sofia ao som de um CD infantil e fazendo bolhas de sabão quando Lena tentou entrar pela janela. Clara foi abrir a porta e as duas receberam a menina chorosa. Sofia a levou para o banheiro para lavar o rosto. Quando ela saiu, as meninas enganaram a babá com uma história de esconde-esconde para explicar o aparecimento súbito da terceira menina. Sofia fora para casa; Milena dormiu ali, como fingiram ter combinado.

– Quando é que nós vamos fugir¿ - choramingava.

Clara deu um sorriso cansado. Não adiantaria pedir mais paciência para Lena, ela sabia.

– A Isabela está sempre falando sobre juntar dinheiro, juntar isso, juntar aquilo. Eu não tenho dinheiro nem pra comprar um sorvetinho, como é que eu vou fazer pra agilizar isso aí¿

– Lena, não dá pra ir embora logo agora. Você mal acabou de ganhar uma bicicleta.

– Mas sei andar muito bem, esqueceu¿ - Lena mostrou a língua – Não quero mais voltar pra casa.

– Você nem está lá – Replicou sorrindo – Vamos tomar café. Meu pai comprou ingressos pro parque hoje.

Um sorriso entusiasmado ocupou o rosto até então desesperançoso de Milena.

Milena insistira em levar sua bicicleta para estreá-la. Ela, Sofia e Clara sentiram-se secretamente aliviadas por seus gastos não estarem sob o controle de Isabela. O pai de Clara comprava seus sorvetes, tíquetes, algodão-doce. Sofia mal conseguia acreditar que um adulto era capaz de oferecer doces sem censurá-la!

Clara mostrava seus dentinhos separados rindo alto enquanto jogavam os desafios que davam direito a brinquedos. Isabela fazia questão de guardar todos os brindes que ganhava para vender na escola. Quando Sofia ganhou um par de walkie talkies, Bela se entusiasmou para guarda-los, como se fossem telefones portáteis. Milena decidiu gastar sua última ficha num jogo, a fim de conseguir mais um par dos comunicadores. Bela não teve muita fé, visto que só sobrara uma tentativa. Mas Lena adorava desafios, então apostou toda sua energia naquele mísero alvo e observou, com o coração batendo forte, a bola de borracha bater no centro.

– Não fazia sentido! Eu avisei que daquele ângulo não ia dar certo. Você teimou e mesmo assim conseguiu! – comentava Isabela, incrédula, enquanto avançavam na fila para a Montanha Russa.

– Você não considerou a trapaça dentro do parque, não foi¿ - respondeu Milena, seca.

– Trapaça¿ - Isabela trocou os olhos arregalados por uma cara de quem presta atenção.

– Os donos da barraca enchem a bola com algo mais pesado que ar. Então em vez de jogar do jeito certinho que a Isabela disse, tem que levantar um pouco mais o braço. Só que a Isabela nem procurou algum erro na bola. Não pensou que a barraca faria isso de propósito. Tudo isso, pra ficar mais difícil que você acerte.

– Por que eles nos sabotam¿ - perguntou Sofia. Todas estavam prestando atenção na explicação.

– Se todo mundo que comprasse um tíquete conseguisse um brinquedo – avançaram mais na fila. Estavam perto - não sobraria nenhum prêmio no fim do dia. Então os donos teriam de comprar mais. Acabariam tendo prejuízo em vez de lucro.

As três ouviam atentamente como se fosse uma teoria da conspiração. Depois de três segundos de silêncio, Clara disse, de olhos arregalados:

– Que loucura.

– É – sorriu Milena – Mas como eu sabia, joguei do jeito certo.

– Já é nossa vez – apontou Sofia para a cabine da montanha russa, que se abria para elas.

Dentro da cabine, a alegria foi coletiva. Vendo o parque inteiro lá de cima, elas sorriam, acenavam, sentiam frio na barriga. Era como se toda a dor infantil deixasse de existir assim que o brinquedo parasse de tocar o chão. Diante da euforia, Milena comparou com o efeito das drogas que os amigos de seus pais usavam. Clara garantiu que nunca precisariam usá-las. Pra quê¿ Bastava ir à montanha russa todos os dias. Lena as desafiou a ficar de pé enquanto o brinquedo subia cada vez mais alto. Sofia sentiu tanto frio na barriga que quase gritou. Então as quatro juntaram suas mãos, cruzando-as como se formassem uma estrela. Gritaram lá de cima, para as pessoas e brinquedos pequenininhos. Estavam perdendo tanto, os bobos!

– Sabem o que eu pensei lá encima¿ - Perguntou Clara, dobrando as mãos sob o pescoço. Estavam numa mesa tomando sorvete e comendo batatas fritas.

– O quê¿

– A gente podia casar – respondeu fazendo uma careta bem travessa.

– Casar¿

– Mas a gente só tem onze anos.

– A gente compra fantasia de noiva e casa de mentirinha – sorriu Clara, satisfeita.

– Eu apoio – respondeu Milena colocando sua mão sobre a de Clara.

– Então se casam vocês duas e eu com a Sofia¿ - disse Isabela, cruzando seus dedos com os da amiga.

– Minha ideia mesmo era casarmos as quatro – levantou-se Clara, cerrando os punhos na cintura.

– Assim, se uma de nós abandonar, ainda restará três esposas – completou Sofia.

– Ninguém vai abandonar ninguém aqui, tá legal¿ - interrompeu Milena, repentinamente irritada.

– Se as pessoas pudessem se casar com todas as pessoas que quisessem – continuou Clara, contrariando Sofia – ninguém precisaria escolher. E aí, não teria que abandonar.

– Mas a gente só pode amar uma pessoa de cada vez – rebateu Sofia, defensiva.

– Não – Clara disse - Meu pai tem duas namoradas – a mamãe e uma moça com quem ele sai à noite. Eu escuto os passos dele.

– E sua mãe não fica triste não¿ - replicou Sofia, desafiadora.

– Ora... Se elas fossem amigas, não daria briga.

Lena, Isabela e Sofia se entreolharam, confusas. Era como se Clara tivesse acabado de falar sobre dar chocolate para os cachorros fazerem cocô de brigadeiro. E todo mundo sabe que chocolate é mortal para os cãezinhos.

– Ah é¿ - pôs as mãos na cintura Sofia.

– Foi o que meu irmão disse – deu de ombros Clara.

Quanto mais Sofia e Clara discordavam, mais Milena se inquietava.

– Seu pai é um infiel! – apontou Sofia, nervosa.

– Não é, não – respondeu Clara imperturbável, sem saber direito o que infiel significava.

– Um dia, seu pai vai perceber de quem ele gosta mais. Um dia ele vai deixar você e vai embora com essa moça – falava Sofia com a voz tremendo e os olhos inundando - porque chega uma hora que o homem se cansa da família velha, da esposa e dos filhos que são um pé no saco...

– Chega! – levantou-se gritando Milena. Ela conhecia Clara o bastante pra prever sua resposta. “Se sua mãe fosse legal, seu pai não teria ido embora. Ele não saberia decidir e ficaria com as duas.” Sofia, não sem razão, teria chorado alto e nunca mais falaria com Clara. Não sabia de que lado Isabela ficaria e queria mais que tudo que as meninas permanecessem unidas.

Clara continuava com os braços cruzados e a cara de uma menina mandona de onze anos.

– É disso que nós estamos tentando fugir. Desse tipo de família. Vamos casar nós quatro juntas. Nenhuma vai largar nenhuma. Ninguém vai magoar ninguém. Todas são as favoritas de todas. Vamos pra bem longe daqui como uma família.

As três concordaram, acalmando-se. Sofia secou seus olhos. Clara lhe abriu os braços, num pedido de desculpas silencioso. Isabela e Milena as abraçaram por cima.

– Vamos para o Trem do Amor depois de comer¿ - sugeriu Isabela.

As amigas concordaram, entusiasmadas. Sofia ainda estava se acalmando, com o peito pesado e a fala úmida.

– Estão gostando do lanche, meninas¿ - perguntou o pai de Clara, sentando-se com elas depois de buscar os Milk-Shakes.

Milena fora para a casa de Clara. Quando abriram a porta, a tranquilidade evaporou em questão de segundos. A mãe de Clara deitava-se no sofá, sonolenta, pálida, como quem passa mal. A empregada, uma senhora gorda lhe servia água.

– Leva isso pra longe – a mãe de Clara entregava um frasco de metal para a faxineira.

Quando perceberam a porta aberta e as duas meninas paradas observando sem entender, dona Lurdes tratou de leva-las para a escada.

– Vão lá pra cima, vão.

– O que a mamãe tem¿ - indagou Clara enquanto Lurdes, quase guiava, quase empurrava ela e Milena.

– Ah, sua mãe está passando mal, sabe¿ - gaguejou.

– Aquilo é tequila. Tem cheiro de tequila – apontou Lena.

Aquilo pareceu deixar Lurdes mais impaciente.

– Vão!

Lá de cima, Clara ouvia da porta o que sua mãe e Lurdes poderiam conversar.

– Sai daí, Clara. Pessoas bêbadas só falam desgraça.

Clara não tirava os ouvidos da porta. Com uma cara triste, disse:

– Devo desculpas à Sofia. Ela tinha razão sobre duas esposas dum mesmo homem não poderem ser amigas.

Levantou-se. Milena lhe abriu os braços. Clara correu até ela, chorando em silêncio.


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Notas finais do capítulo

Peço desculpas também pelos ? invertidos. Quem usa Word conhece o "struggle".



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