Pungente escrita por Shan Hanfei


Capítulo 6
Desilusão




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Depois da tarde horrorosa que tive como primeiro dia de aula, fui para casa me sentindo irritado. Muito irritado. Nem mesmo o conhecimento de que Tiago estava estudando à tarde, o que significava vê-lo todos os dias, amenizava. Afinal, eu queria estar na companhia da minha melhor amiga, no período matutino.

Minha mãe percebeu que eu não estava com um bom humor. Logo, comecei a reclamar para ela sobre tudo o que havia acontecido, como se ela tivesse alguma culpa.

— Por favor, mãe! – Implorei, quase chorando, após relatar tudo. – Vá à escola e peça para eles me trocarem de período!

— Mas eles já não disseram que é só na base de sorteio? – Questionou minha mãe, pacientemente.

— Ah! De qualquer forma, vá lá! Por favor! – Supliquei.

Fiquei reclamando por quase uma hora inteira, até que desisti. Minha mãe perdeu a paciência comigo e, para tentar esquecer o dia horrível que eu tivera, fui acessar a internet.

Tinha de haver um jeito, uma maneira, uma saída. Qualquer que fosse para eu mudar de período. Minha classe era horrível. Eu não tinha amigos. Manuela me odiava. Eu não poderia contar com Bruna, pois era hábito ela faltar frequentemente às aulas no ano anterior. Como isso era possível? Este ano seria tão perfeito, e estava afundando aos poucos. Estava me sentindo no Titanic e a água acabara de tomar a proa. Eu já estava me sentindo acabado e 2008 nem tinha começado apropriadamente.

Com o passar dos dias, reparei que eu, na verdade, era um intruso na 8ª F. Todos os alunos da classe, que fora “montada” – ou seja, os alunos foram pescados de classes diferentes e jogados ali –, estava acompanhado de seu melhor amigo. Todos, sem exceções. Isto é, tirando a mim mesmo. Três pessoas apenas de minha classe do ano anterior, e eu mal falava com eles. Era um grande castigo. Uma grande tortura. Na minha outra encarnação, devo ter sido um crápula. Nada justifica as coisas ruins que me ocorrem.

A situação foi ficando tão precária, que passei a chorar bastante em casa. Queria que minha mãe fosse à escola de qualquer jeito. Cheguei a pedir que ela inventasse para a diretora que eu estava deprimido, que o caso poderia complicar. E nada adiantou. A resposta era sempre a mesma: “nós fazemos um sorteio quando surge uma vaga. Deixe o nome do seu filho e o incluiremos no sorteio”. Era revoltante. Por vezes, desejei que a escola explodisse.

Como se não bastasse, a classe era infestada de canibais. Noventa por cento dos meninos dedicavam grande parte da tarde para me infernizar. Eu não tinha paz. “Gay!”, passei a ouvir com bastante frequência. Sempre estavam rindo de mim. Riam quando eu abria a boca. Passavam a mão em meu cabelo. Sempre havia alguma coisa, qualquer coisa, e eu me segurava muito para não chorar e dar essa satisfação a eles. Era muita humilhação.

Por mais que tentasse, não conseguia entender a razão por trás de tantas ofensas. O que eles pensavam? Que se eu me assumisse publicamente como gay, eu iria querer algo com algum deles? Não é porque sou gay, que vou me interessar por todos os meninos do mundo. E eu nunca irei me atrair por nenhum daqueles nojentos, eles poderiam sossegar quanto a isso. Além disso, o que eles tinham a ver com minha sexualidade? Será que o fato de beijar rapazes iria mudar alguma coisa na vida deles? Qual o interesse?

Minha classe também foi presenteada com algumas garotas bonitas. Eu estava tão neurótico e irritado com as ofensas, que cheguei a cogitar me aproximar de alguma delas para pegar, e assim, ter um pouco de paz. Porém havia dois problemas: primeiro, eu não me interessava por nenhuma delas, pois o meu jogo é outro. E segundo, os meus trejeitos jamais permitiriam que uma menina me namorasse. Ela seria motivo de piadas, assim como eu. E isso era frustrante as hell. Infelizmente, é assim que as coisas funcionam. Por mais que você tente se incluir, por mais que você tente ser aceito.

Júlia tentava me confortar dizendo que eu ia conseguir passar para a 8ª C. E também dizia que, caso não conseguisse, ela pediria transferência para a minha sala, à tarde. Era egoísmo eu não discordar dela, mas eu mentiria se não dissesse que me sentia contente e confiante.

Para o sorteio da manhã, também havia um novo obstáculo: “Quando sorteado, nós olhamos o histórico de notas do aluno”, eles diziam. E era só o que me faltava. Tão injusto. Juliana, aquela falsa amiga, tinha todas as notas vermelhas e tinha conseguido passar para a manhã. Por que os sorteados tinham que ser submetidos a isso?

Ainda assim, eu tinha algumas notas vermelhas. Poucas, mas elas existiam. Como exemplo, uma média 3 em matemática. Isso me tirou a confiança rapidamente. Será que, no fim, eu teria de mudar de escola?

As semanas foram passando e eu continuava inconformado. Bruna ainda não havia começado a faltar freneticamente, mas eu sabia que era só uma questão de tempo. Durante o intervalo, ela sempre andava com Renata, sua amiga no ano anterior. Renata era loira, com um formato de rosto oval bizarro, lábios carnudos e olhos castanho-claro que se destacavam. Seus cabelos eram loiros tingidos e não era muito alta. Eu, particularmente, não gostava muito de ficar com elas. Sempre ficava com Larissa e Manuela, mesmo sabendo dos sentimentos desta última em relação a mim. Também gostava de ficar em algum lugar onde a visão de Tiago estivesse em meu alcance. O sorriso dele compensava algumas coisas.

Naquela tarde, no entanto, decidi passar um temo conversando com Bruna e Renata. E elas tinham bastante o que discutir.

— Ai... – Começou Bruna. – Na minha sala só tem menino feio, Renata. Dá vontade de chorar!

Muito obrigado, pensei.

Logo me toquei que os assuntos das duas eram sempre sobre meninos e eu não queria estar envolvido, justamente porque era meu trabalho esconder minha sexualidade. Disse à elas que iria me juntar a Larissa e Manuela, que sempre ficavam paradas na porta de vidro do corredor da diretoria. Junto delas estava Letícia, que fora uma grande amiga minha no ensino fundamental, ciclo 1. Letícia tinha o cabelo bem cheio, porém liso. Era preto, mas tinha um tom loiro dado por cima, para dar um mero destaque. Ela usava óculos, tinha bastante sardas no rosto e seus dentes lembrava um coelho. Juntei-me a elas e decidimos ir ao refeitório, apenas para conversar, já que era mais tranquilo.

Foi então que eu o vi. Entrando no refeitório, ao lado dos amigos. Meu coração disparou e rapidamente senti meu rosto ficar vermelho. Apesar de desejá-lo muito, mais que a qualquer coisa no mundo, eu não o queria perto de mim.

— Ei, vamos para o pátio! – Pedi. E então fomos caminhando em direção à porta. Ou seja, em direção a eles.

Não olhe para mim. Não olhe para mim, eu pensava. Se o fizesse, iria perceber o quanto estava vermelho. Estava tremendo conforme me aproximava. E então, quando passei bem ao lado dele, ouvi as seguintes palavras sendo sussurradas em meu ouvido direito:

— E aí, gayzinho?

Sem acreditar, olhei diretamente nos olhos dele para me certificar de que aquilo realmente acontecera. E era mesmo Tiago. O encantador garoto por quem eu estava perdidamente apaixonado.

Senti meu corpo congelar, mas lutei para permanecer andando. O vaso do encanto caiu no chão e espatifou-se em mil pedaços, de tal forma que não haveria como consertar. Senti como se houvesse algo dentro de mim com unhas incrivelmente afiadas, que cortavam meu peito com tamanha facilidade que parecia ser feito de papel. Nunca, em toda a minha vida, tinha sentido algo do tipo. E desejei nunca mais sentir. Era uma dor imensa. Pensei que fosse cair ali mesmo. Mas me mantive forte e falei em voz alta para as meninas, para ele mesmo ouvir:

— Eu odeio esse menino!

Como é irônico. Tiago passou ao meu lado, roçou o braço em mim e sussurrou em meu ouvido. Pude ouvir atentamente a sua voz. É uma pena que as palavras tenham sido tão curtas e tão devastadoras. Certeiras. Como um flecha no coração.

— Quem você odeia? – Perguntou Manuela.

Epa. Não estava esperando questionamentos.

— Um desses meninos que estão aí atrás. – Respondi, tentando disfarçar.

— Qual deles? – Voltou a perguntar ela. – Eles são da minha sala.

Da sala dela. Ah! Então Tiago era da mesma sala de Manuela. Ele era da 8ª E. A empolgação que tomou conta do meu corpo me deu raiva. Afinal, ele acabara de me insultar.

Assim que saí do refeitório, reparei em um dos bancos estilo “pracinha” vazio, o que era um milagre para os padrões do intervalo. Sentei-me e me permiti devanear.

Meu dia agora estava completamente destruído. Eu desejava morrer. Queria chorar e gritar de forma que deixasse todo mundo surdo. Estava tudo errado. Não era pra eu estar ali. Não era pra eu ter ouvido aquilo. Eu deveria estar em casa, assistindo à 35456ª reprise de “Maria do Bairro”, ou alguma outra novela que o SBT estivesse reprisando. Era pra eu estar com minha amiga. Desta forma, eu estaria distante de Tiago. Eu poderia esquecê-lo. Ou, no mínimo, não teria sua imagem manchada como acabara de acontecer. Tiago era um canibal.

Decidi pelo mais óbvio: segurei o choro e os gritos, pois todos perceberiam e obviamente iriam querer saber o motivo. E eu não estava são o suficiente para inventar uma história convincente. Além disso, todos pensaria que eu era louco, e idiota, por chorar no meio do pátio. Só eu, mesmo.

— Deixa pra lá. – Eu disse a Manuela, alguns segundos depois.

— Eu quero saber! – Afirmou ela.

— Sério, deixa quieto. – Foi minha última palavra.

Manuela, Larissa e Letícia passaram a falar sobre o período da manhã e suas esperanças de conseguirem passar. Era uma surpresa, aliás, que Letícia não tivesse conseguido: ela era a aluna nota 10 da classe, o cérebro. Inteligente de uma forma que até assustava. Mas foi ignorada pelos professores na hora da decisão. Enquanto conversavam, eu tentava me concentrar e me animar. Entrosar. Mas por dentro, eu estava gritando.

Ainda não conseguia acreditar que o som lindo daquela voz tinha me destruído de uma forma tão negativa. Não seria capaz de esquecer tão cedo.

Voltando às aulas, mergulhei em meus pensamentos. Bruna era quieta, não abria a boca se não falassem com ela. Passei o restante das aulas sozinho, pensando. “Como você pôde fazer isso comigo? Eu gosto de você, você me fez gostar de você”.

Na última aula, os 50 minutos que deveriam ser bem rápidos, passaram como 50 meses. Estava na aula de ciências, com a carismática professora Carmen. Ela era uma mulher alta, morena, de cabelo liso provavelmente feito com prancha. Menos sua franja, que dava a aparência de ter algas em sua testa.

Finalmente, quando o sinal bateu, fui um dos primeiros a sair da sala. Bruna desceu a meu lado, mas nós mal nos falávamos. Meus olhos estavam cheios de lágrimas, e eu lutava para não deixá-las cair. Era tudo um pesadelo. E estava tudo acontecendo de uma vez. Despedi-me de Bruna no ponto de ônibus e continuei seguindo pela rua escura, às seis e meia da tarde. E então permiti que as lágrimas caíssem. Era bom desabafar assim.

“Idiota, seu idiota. Você é um burro, você se deixou levar por nada. Se iludiu com alguém que não liga pra você”, dizia a mim mesmo. E era tudo verdade. Eu era patético por estar chorando. Por um garoto. Que não merecia. E agora eu tinha certeza. Com aquelas palavras, eu pude ter certeza que ele não queria ficar comigo no ano anterior. Foi tudo uma brincadeira, uma humilhação. Ele nunca iria querer nada comigo.

Chegando em casa, limpei as lágrimas, esperei alguns minutos para apagar vestígios de que havia chorando, e entrei. Minha mãe estava na cozinha preparando o jantar e eu corri para o meu quarto sem ao menos dizer “oi”.

Meu irmão estava usando o computador – o único da casa – e eu o fiz sair de lá. Ele tinha o hábito de chegar em casa antes de mim, mesmo saindo no exato mesmo horário que eu. Queria me distrair. Como de costume, Júlia estava online no Facebosta e eu a chamei. Ela começou a falar de sua amizade com Elica e como as coisas estavam indo na 8ª A. Um excelente assunto, só que não.

Conversamos por algumas horas, até que decidi ficar offline. Comi pouco e então me deitei para dormir. Não falei com ninguém, então eles já sabiam que havia algo errado. Quando eu estava irritado, era natural não dirigir uma única palavra a ninguém. Dormir foi uma opção ruim. O tempo todo, o “e aí, gayzinho” surgia em minha mente, com Tiago dizendo isso olhando diretamente em meus olhos. Que pesadelo.

E então tive um dos sonhos mais realistas da vida. Estava na escola, sentado em um dos bancos do pátio. Outras duas pessoas estavam a meu lado, porém eu não os conhecia. E a escola estava cheia. Provavelmente, hora do intervalo. Reparei que a pessoa sentada na outra ponta do banco era Tiago. Corei quando reparei nele. Senti meu rosto ferver. Levantei e dei três passos para me afastar quando senti alguém puxando o meu braço. Me virei e lá estava ele bem diante de mim.

— Fica comigo? – Foram as palavras que saíram de sua boca, a voz perfeita me hipnotizando.

Olhei bem em seus olhos. E então respondi:

— Sim.

Ele segurou em minha cintura e passei meus braços por seu pescoço. Ele inclinou o rosto para me beijar e aí... Eu acordei.

Inferno! Infernoooooo!

Foi um dos sonhos mais bonitos e intensos que tive. Tentei voltar a dormir para tentar revivê-lo, mas não foi possível. Nem em sonho eu conseguia realmente ficar com Tiago. Devia ser algum tipo de aviso. Era tão frustrante. Mas torci para que tivesse a mesma sorte na noite seguinte.

Quando cheguei à entrada da escola, Júlia estava conversando com Elica e Manuela. Esta última chorava de verdade, por querer estar ao lado da melhor amiga. As coisas não deviam estar fáceis para ela, também. E eu estava a um passo de chorar também. Mais uma tarde com aqueles desconhecidos. Ninguém merecia. Era uma tortura.

Percebi quando Tiago chegou à escola. Em um táxi branco, com um homem de óculos ao volante. Não consegui ver muito dele. Tiago saiu do carro junto com uma menina e um menino novinho. Deveriam ser irmãos. Eles eram muito parecidos. E então me vi perguntando: “por que me ofendeu, por que eu?”. Tiago me encontrou e encarou por alguns segundos, sério. Depois entrou na escola sem olhar para trás.

O assunto entre as meninas tinha mudado. Júlia estava chamando meu nome e eu nem me dera conta.

— Gu?! Alô?! – Chamou ela novamente, e lhe dei atenção. – Surgiu uma vaga na minha sala hoje. E na 8ª A também!

— O que?! – Eu quase gritei, surpreso, a ansiedade tomando conta de mim. – Como assim?

— Saiu um menino da minha sala, e na 8ª A também. Surgiram duas vagas. – Respondeu ela, feliz.

— Mentira! – Eu disse, sorrindo. – Meu Deus! Tenho que passar!

— Eu quero também! – Afirmou Manuela.

— Ai, vocês não estão entendendo. Eu tenho que passar! – Eu disse, novamente.

Duas chances. Duas vagas. Uma oportunidade. Se eu não caísse na classe de Júlia, ainda assim ficaria feliz. Pois sairia da sala de canibais a qual haviam me colocado.


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Notas finais do capítulo

Olá amigos do Nyah!.

Estou ficando um tanto desanimado com a total falta de comentários dos leitores em “Pungente”. Em todos os capítulos, peço para que deem suas opiniões sobre os rumos da história, sobre o que está funcionando e o que não está, e não há retorno.

Quando comecei no Nyah!, eu exigia reviews nos capítulos e apaguei várias de minhas histórias por conta disso. Porém, isso foi lá em 2009-2010, quando eu tinha por volta de 16 anos, e os tempos são outros. Não faço mais essa exigência, porém é verdade que uma review dá motivação a um autor. E isso não está acontecendo aqui. Acredito no potencial de “Pungente” porque: 1) está há muito tempo em meu imaginário e, de lá pra cá, vi e vivi muitas coisas que podem ser reproduzidas através de meus personagens, que agregam mais à crônica cotidiana que proponho; e 2) em sua primeira publicação aqui no site, consegui reunir um número considerável de comentários em menos capítulos do que agora.

Enfim, espero que vocês estejam gostando da história e tenham curtido esse capítulo, que já representou mudanças significativas para a vida do nosso protagonista. O nosso próximo encontro será na próxima semana. Espero ver vocês lá.



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