Pungente escrita por Shan Hanfei


Capítulo 5
Reviravolta




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Sempre tive uma péssima impressão de nossa querida diretora Adélia. Não parecia ser tão velha, mas seu rosto era acabado, infestado de rugas e um tanto gorducho. Seus cabelos loiros eram nitidamente tingidos. Ela sempre andava sorrindo, mas gritava muito quando era necessário e conseguia fazer uma expressão bem feia pra assustar.

Entramos na sala em silêncio absoluto. A coordenadora sentou-se em uma mesa na parede à direita e a diretora, no centro. Olhou para cada um de nós e por fim perguntou em voz alta:

– O que está havendo?

– São os nomes deles que não estão nas listas da manhã. – Respondeu a coordenadora.

– Bom, se os seus nomes não estão nas listas do pátio, é porque vocês estão no período da tarde, né? – Disse a diretora, sorrindo, como se fosse engraçado.

– Certo. – Disse a coordenadora, e voltou-se para mim. – Qual o seu nome?

– Gustavo Moutinho Paiva. – Respondi.

– Vamos ver em qual sala você está... – Disse ela, pegando uma pasta com várias listas em cima de sua mesa e folheando-as.

Segundos depois, ela parou e olhou novamente para mim.

– Olha, querido, você está na 8ª F, à tarde.

– Mas como 8ª F? – Quase gritei, meu coração disparando pela irritação. – Meu nome estava na 8ª A! De manhã, e não à tarde, entende? Eu liguei aqui e você mesma me disse que eu estava de manhã. E vi minha mãe assinar pela lista de material com meu nome presente na 8ª A! E não F!

– As listas foram trocadas. – Respondeu ela sem hesitar, sem sorrir, sem confortar. Absolutamente indiferente.

Naquele momento, tive a experiência de uma adrenalina que, talvez, nunca tivesse sentido antes. Cerrei os punhos e a vontade incontrolável tomou conta de mim. Não deveria dizer isso, mas seria capaz de dar um tiro na cara dela. Ou bater até não conseguir mais. Até eu começar a sentir as dores. Estava com tanta raiva, e tão chocado, que todo o meu corpo tremia. Como aquilo poderia estar acontecendo? Justo comigo? Que sorte maldita foi essa? Eu estudando no período da tarde, enquanto minhas amigas estudavam no período matutino. Júlia, no período matutino. E Manuela, a que me odiava, a que achava que a puta não iria querer um filho como eu, a que me apunhalara pelas costas, estava no mesmo período que eu. Certamente, um castigo. De todos os colegas com quem eu tinha certa “amizade”, somente Manuela permaneceu à tarde. Será que tinha caído na minha sala?

Na verdade, eu não me importava.

Aquele era o fim. Era o fim de tudo. Eu não tinha amigos que poderiam ficar comigo das uma às seis e vinte da tarde. Estaria lá, todos os dias, sozinho. Um inferno pessoal. Desamparado. 8ª F. Uma classe morta. Desconhecida. Com pessoas estranhas. Eu estava crente que 2008 seria um excelente ano. Queria sumir. Queria me enterrar.

A coordenadora ligou para os pais dos alunos que também tinham “confundido” de período, para que pudéssemos nos retirar da escola. Não vi Elica e Júlia para contar as incríveis novidades. Em meio a meus devaneios, no corredor da secretaria, uma mulher me chamou:

– Ei! – Disse ela.

Levantei a cabeça para ver o que queria comigo.

– Está doente no primeiro dia de aula? – Questionou ela, pensando que eu estava doente. Na verdade, questionando a veracidade.

Ela era bonita, até. Jovem para estar trabalhando na secretaria da escola. Mais baixa que eu, com cabelos castanhos impecavelmente lisos.

– Não estou doente. – Respondi. – Me enganei de período. Na verdade, a diretoria que se enganou. Eu estou na 8ª série da tarde, não da manhã.

Ela me encarou e então reparei no tom verde de seus olhos. Deslumbrantes. Pediu-me para relatar melhor a história. E eu contei tudo. Precisava mesmo desabafar.

Depois, ela parecia estar absolutamente perplexa. Ela me entendia.

– Você precisa reclamar na direção. Fica no pé deles! Quando tiver uma vaga de manhã, vai lá e reclama para te transferirem. Não deixe que eles esqueçam você, e nem o que fizeram!

Sorri e agradeci pelo incentivo. Minha mãe apareceu para me buscar. Não via total necessidade disso, uma vez que meu período normal era à tarde e não de manhã, então eu não tinha obrigação nenhuma de estar ali e poderia sair por livre e espontânea vontade. Podia ir embora sozinho, uma vez que minha casa fica a uma distância de 5 a 7 minutos de caminhada, da escola.

Entrei em casa revoltado. Liguei a TV e maltratei o controle, trocando de canal o tempo todo, mas nada me chamava a atenção. Programas matinais não são muito interessantes. Então, peguei o telefone. Era muito idiota e estava temendo ser anotado novamente no tal Burn Book. Mas liguei para o número de Manuela.

– Alô? – Eu disse, assim que alguém atendeu. – Poderia falar com a Manuela?

– É ela! – Respondeu-me.

– Ah! Você! Então, eu caí à tarde.

– Quem é?

Desdém, só podia ser. Mas ri.

– Gustavo.

– Ah, sim! – Ela pareceu surpresa. – Nossa, sério que você tá à tarde?

– Sim, infelizmente.

– Mas aconteceu alguma coisa? A Elica me disse que você estava de manhã.

– Aconteceu. Passei o maior nervoso agora.

– Você me conta na escola, então.

– Ok. – Respondi e desliguei o telefone.

***

Estava com vontade de explodir tudo o que estivesse na minha frente. Queria ser rico. Assim, poderia quebrar todos os bens da casa, para poder comprar outros em seguida. Revoltado era pouco para me definir. Ódio, tristeza, raiva. Dor. Uma mistura de sentimentos. Não queria mais ir para a escola. Não queria estar na 8ª F.

E então me lembrei dele. Tiago. A criatura mais encantadora de todo o universo. Ele era da 7ª F no ano anterior. Será que isso significava que estava na 8ª F, como de costume? Estremeci. Isso seria ótimo, mas também seria perturbador. Afinal, Tiago brincara comigo na frente dos canibais no ano anterior. E sofri as consequências desta brincadeira. E se ele me odiasse? E se ele risse de mim o tempo todo?

Era melhor eu pensar em outra coisa. Mudei o canal na TV, mas como comentei, os programas matinais são muito soníferos. Não conseguia tirar da cabeça o grande desafio que teria pela frente. Novo ano. Canibais novos. Eu estava sufocando.

***

Meio-dia e vinte. Estava tenso como nunca. Já era hora de sair de casa e para a escola, naquele mesmo dia. Meu irmão, Gabriel, iria iniciar a 5ª série naquele ano – falarei mais sobre minha família posteriormente. Então, ao meio-dia e vinte, saímos de casa. Sentia-me arrastado. Queria gritar no meio da rua. Isso não está acontecendo. Isso não está acontecendo. Não pensava em nada além disso. Cheguei à escola e encontrei Júlia na rua, com Elica. Manuela já estava com elas.

– Oi. – Eu disse, sem nenhuma vontade.

– Nossa, Gustavo! A gente ficou esperando você entrar na sala. O que houve? – Perguntou Júlia.

Relatei toda a história novamente. Já estava cansado, na verdade. Era difícil reviver a sacanagem que aquela escola tinha feito comigo. Elas ficaram chocadas, e ao mesmo tempo nervosas. Afinal, eu não fui o único a ver meu nome na lista da 8ª A no dia da entrega do material.

– É, mas você vai conseguir passar. – Disse Júlia para mim, enquanto Elica conversava com Manuela mais afastada.

Dez para uma da tarde. Despedi-me de Júli e Elica, e entrei na escola com Manuela. Estávamos conversando normalmente, até. Aquilo era uma coisa tão estranha. Já sabia que minha sala era a 8ª F, mas ainda assim fui até a lista para me certificar. Afinal, a droga da escola já não tinha feito confusão comigo horas antes?

E lá estava. Gustavo Moutinho Paiva. O ódio ferveu meu sangue. Olhei o restante da lista. Havia um Thiago e um Tiago na classe. Deus, será que é ele? Se for, o que faço? Comecei a me preocupar. Não saberia me portar. Sera insuportável se ele estivesse na minha sala. Eu teria vergonha. Teria medo.

Manuela estava na 8ª E. Olhei a lista dela e havia dois Tiagos lá. O meu Tiago poderia ser um deles. Chequei, então, minha primeira aula. Seria na sala 6, uma aula dobrada. O que poderia ser? Começar o ano com 100 minutos dedicados a um mesmo professor, era melhor valer a pena. Anotei o horário da semana inteira, que já estava publicado. Quando terminei, guardei a caneta na mochila e me virei para sair da aglomeração de alunos que se formara ali. E então, eu o vi.

Tiago estava na minha frente, parado. Estava lindo de morrer, desta vez com o cabelo bem arrepiado. Não sorria, mas me encarava. Estava bem sério. Congelei. Estava tão maravilhoso que parecia uma escultura. Tiago era o tipo de garoto que chamava a atenção de todo mundo. Velhos e jovens. Do tipo que todas as meninas desejavam. Assim, eu pensava. Abaixei a cabeça e saí andando sem olhar para trás. Idiota!, dizia para mim mesmo. Quando estava a uma boa distância, olhei novamente. Ele estava anotando o horário, de costas para mim. Será que seria o mesmo que eu acabara de anotar? Será que as duas primeiras aulas dele também teriam lugar na sala 6? Estremeci.

Não conseguia me entender. Por um lado, a possibilidade de Tiago estar na minha classe seria um sonho. Eu poderia me aproximar, me tornar colega, amigo. E mais pra frente, quem sabe... Se ele realmente fosse interessado. Mas então os pensamentos ruins invadiam minha mente. E se fosse tudo ao contrário? E se no lugar de sonho, fosse um inferno? Estava ficando irritado.

Fui para o local indicado para os alunos que teriam aula na sala 6 aguardar o professor. Havia um grupo de meninos lá. Inclusive Nicholas, o ex-namorado de Elica. Não quis me aproximar. Apesar de não saber quem era o responsável pelas aulas, quando eles saíssem de lá, eu os seguiria e veria quem iria nos lecionar alguma matéria este ano. O grupo parecia ser de velhos amigos. Grandes amigos.

Passaram-se cerca de cinco minutos e a professora não apareceu. Alguns dos meninos já não estavam mais ali. Então decidi subir por conta para a sala 6. Cheguei no corredor e vários alunos estavam parados à porta. Entrei em pânico: não conhecia ninguém que estava ali! Meu Deus!

Continuei distante, esperando ao longe, até que a professora passou. Ela tinha cabelos pretos, com alguns tons e mechas loiras. Não era alta, usava óculos. Tinha algumas rugas e um formato de rosto quadrado. Desviei a atenção por um segundo e reparei, no fim do corredor, uma pessoa que eu conhecia caminhando em minha direção. Bruna, que havia sido minha colega durante os três anos anteriores. Bruna era baixinha e muito magra também. Tõ branca que parecia estar doente. Os cabelos pretos, cacheados, estavam presos com uma simples chucha, caindo pelas costas. Seus lábios eram carnudos. Os olhos, castanhos. Ela estava com uma expressão de perdida.

– Que sala você está? – Perguntei, quando ela estava próxima o bastante.

– Ai, Gustavo! Na 8ª F. Não conheço ninguém! – Respondeu ela.

– Graças a Deus! – Respondi. – Também sou de lá. Vamos, a professora acabou de passar.

Entramos na sala e já estava quase cheia. O pessoal optou pelas carteiras ao fundo, então sentei à frente. Bruna, logo atrás de mim. Dei uma olhada geral na classe, e percebi que havia mais quatro alunos da minha sala do ano passado. Também reparei em alguns rostos que haviam sido meus colegas na 3ª ou 4ª série, mas que não nos falávamos mais.

Então, uma observação me deixou realmente assustado. Walter. Ele tinha sido da minha sala em 2005. Era extremamente homofóbico. Adorava rir de mim, e estava sentado na fileira ao lado da minha, algumas carteiras mais fundo. Aquilo só poderia ser um pesadelo. E dos piores. Eu tinha que acordar rápido, se quisesse continuar vivo. Freddy Krueger estava a caminho.

O restante da sala era composto por pessoas desconhecidas.

– Boa tarde. – Disse a professora, parada à frente da sala. – Meu nome é Miriam, e eu vou ser a professora de português de vocês, este ano.

Miriam começou a explicar seus métodos de dar aula. Era bem severa. Não hesitava em mandar alunos sair, caso atrapalhassem suas explicações. Em seguida, entregou a nós um jornal intitulado “São Paulo Faz Escola”, que o governo havia imposto para uso até o fim de abril. Tortura.

Em determinado momento das duas aulas, a professora pediu a leitura de um extenso texto presente no jornal. Era uma forma de avaliar a leitura pessoal. Cada um deveria ler um parágrafo em voz alta. Eu estava sentado na primeira carteira da segunda fileira. Logo seria minha vez. E assim ocorreu. Estava nervoso, como sempre ficava para qualquer coisa em que eu fosse o centro da atenção. Mas consegui ler magistralmente. O problema foi que, na metade da minha leitura, reparei em dois garotos rindo de mim. Idiotas, evidentemente. Assim que terminei, dei uma rápida olhada e Walter era um deles. Queria perguntar qual era o problema, mas achei melhor me calar.

Em outra aula daquele primeiro dia, o outro jovem que havia rido de mim durante a leitura se aproximou.

– Você é gay? – Perguntou.

O pesadelo acabara de ficar mais sério.

– Não te interessa. – Já estava cansado dessas perguntas.

– Não, falando sério. Você é? – Insistiu ele.

– Não. – Respondi, mentindo. Com medo da opressão.

E então o jovem começou a rir. Assim mesmo, na minha cara. Tentei ignorar. Não sabia o que tinha dito de engraçado. Mas eu tinha problemas demais na minha mente e não iria me deixar abater por um acéfalo como aquele.

Muitas vezes, reclamei da minha antiga classe por conta de alguns canibais que gostavam de me ofender. Mas não era uma coisa constante, frequente. Para eles, era sempre em um tom de brincadeira, mesmo que aquilo me magoasse a ponto de não conseguir suportar. Neste ano, pude avaliar com as primeiras aulas que seria vítima de bullying. Só não sabia se iria sobreviver.

Bruna não saiu do meu lado durante todo o dia. E eu estava ansiando para ir embora. Já não aguentava mais.

No intervalo, encontrei-me com Manuela e Larissa, que também tinha sido mantida no período vespertino. E Tiago estava lá, com os amigos dele. Perfeito como sempre, com aquele sorriso maravilhoso. Aquele andar diferenciado – só pelos meus olhos. Era difícil encontrar um defeito nele, o que acredito ser normal quando a pessoa está apaixonada. Por fim, ele não era da minha classe.

Apaixonado. Será que Tiago surgiu em minha vida para deixar Rafael completamente pra trás? Eu ainda sentia meu coração disparar por ele, que fora o meu primeiro amor. Mas no geral, já o tinha superado e não acreditava que seria capaz de sentir assim por outra pessoa novamente. Não queria permitir, já que não era um sentimento positivo para mim. E eu não podia estar me sentindo assim por Tiago. Com Rafael, eu tive uma relação. Fiquei amigo dele. Mas eu não conhecia Tiago. Não falava com ele. E ele era proibido.

Sentei-me em um banco no pátio, ao lado de Manuela e Larissa. Elas conversavam entre si e eu fingia estar prestando atenção, quando na verdade olhava para ele. Desejava estar ao lado dele. Imaginava ele me abraçando, me beijando. Será que me confortaria?


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Notas finais do capítulo

Olá a todos vocês que estão tirando um tempinho para ler “Pungente”. Após um recesso de algumas semanas por conta das festas de fim de ano, finalmente temos um novo capítulo.

Digam nos comentários o que acharam da reviravolta na vida de Gustavo. Algum de vocês já passou por alguma coisa parecida? Agora ele vai entrar em um período complicado, como estudante da 8ª série – e ainda vai ter que lidar com seus sentimentos (supostos, diga-se de passagem) por Tiago. Uma barra.

O próximo capítulo deve ser postado na última semana de janeiro. Até lá, comentem o que estão achando da história. Vou adorar ler a opinião de vocês.

Feliz 2016!



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