Pungente escrita por Shan Hanfei


Capítulo 3
Bloqueio




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Estava começando a me preocupar com as notas. Tinha consciência de que a 7ª série do ensino fundamental não era um ano reprovável – só se o aluno tivesse muitas faltas, o que não era meu caso. No entanto, não me sentia confortável com um boletim vermelho. E matemática certamente era o meu ponto mais fraco. Eu já não conseguia entender muito os novos conteúdos quando estava prestando atenção. Agora que tinha a peste de um garoto invadindo minha mente, tudo estava pior. Era assustador.

De qualquer forma, eu queria saber mais sobre ele. Muito mais. Queria saber seu nome, se tinha irmãos. Coisas básicas para quem tem interesse em conhecer qualquer pessoa. Mas o problema principal era: como fazer isso? Eu não tinha nenhum colega ou amigo que fosse da mesma classe que ele. Não tinha uma pessoa para quem eu pudesse fazer minhas perguntas. E então eu lembrei. Elica. Ex-namorado. Nicholas. Ele faz parte do grupo de amigos de Tiago, e estava no pátio na aula vaga em que tudo aconteceu. Isso só podia significar que eles eram da mesma classe. E eu teria que falar com ele para saber mais sobre meu alvo. De qualquer forma, a pergunta persistia: como? Nicholas não era nem ao menos meu colega. Eu só entregava as cartas de Elica para ele e não trocávamos nenhuma palavra. Como eu faria perguntas sem demonstrar estar interessado? Eu não podia demonstrar interesse em uma escola onde eu já era motivo de piadas. Além disso, quão estranho seria eu fazer perguntas sobre aquele que supostamente queria ficar comigo? “Oi. Sabe o Tiago? Conte-me tudo sobre ele!”. Eu era um perfeito idiota.

Foi então que a ideia mais razoável surgiu. Em um final de semana, acessei a internet e criei um perfil fake no Facebook, a rede social mais desprezível que poderia existir no mundo. Como estamos falando de mim, uma pessoa sem criatividade, peguei a foto de uma cantora estrangeira pouco conhecida e criei uma personagem com o nome Gabriela. Perfil pronto, procurei os meus colegas de escola. Após alguns minutos, encontrei o perfil de um jovem que conheço apenas de vista, e por pura sorte, encontrei Marcos entre os amigos dele. Cliquei no perfil, e busquei Nicholas nos amigos. Só havia um e era justamente quem eu estava procurando.

Acessei o perfil de Nicholas e tentei visualizar suas fotos, mas estavam trancadas. Ele havia deixado poucas coisas visíveis para quem não era amigo. Não tive outra escolha. Mandei uma solicitação de amizade, junto de uma mensagem: “Oi. Sou do Mont Carvalho. Aceita?”.

Eu ainda estava logado quando a resposta veio. Nicholas ainda não tinha me aceitado, mas estava me questionando:

“Quem é você”, recebi em resposta. Então eu resolvi mentir:

“Oi, meu nome é Gabriela Almeida. Eu era da 7ªB do Mont Carvalho, mas mudei de cidade e tive que sair da escola. Você poderia me passar o perfil do Tiago? Preciso dar um recado pra ele, mas não encontro. Acho que ele é da sua sala. Você é da 7ªF, certo?”.

Ele não me respondeu de imediato. Para sustentar ainda mais a minha mentira, saí mandando solicitações para várias pessoas aleatórias. Conhecidas e desconhecidas. Assim, ninguém poderia questionar a veracidade do perfil – a menos que alguém reconhecesse a cantora estrangeira da foto, mas como a maioria dos brasileiro se liga mais em funk e sertanejo universitário, concluí que isso não seria um problema. A cantora nem era tão bonita assim.

Passaram-se três dias até eu acessar o facebook fake novamente. Nicholas tinha me respondido, mas não com as informações que eu solicitara. Não dizia se conhecia Tiago, se ele tinha um perfil, e muito menos me mandara um link. Eu ia ter que ser chato e insistir. Pedi novamente, mas não me dei por convencido. Entrei novamente em sua página de amigos e reconheci um dos jovens que tinha se aproximado de mim naquela tarde horrorosa. Mandei a solicitação e fui aceito imediatamente.

“Quem é você?”, foi a primeira pergunta que ele me fez.

Respondi quem eu era da mesma forma que fizera para Nicholas. Mas este garoto era mais desconfiado. Ele quis ver uma foto original da Gabriela e eu não tinha. Claro que não tinha. Estava começando a me irritar, estava pensando em desistir quando Nicholas de repente me enviou uma novamente mensagem, contendo o link de um perfi.

Hesitei antes de clicar. Era agora. Tomei coragem e acessei o link. E lá estava Tiago, lindo de morrer. Seus olhos castanhos claros bem ressaltados em uma bela foto de perfil. O cabelo não estava arrepiado como de costume, e sim caindo em uma bela franja absurdamente linda em sua testa. Para escrever seu nome, Tiago usou vários caracteres estranhos que eu não reconhecia. Demorei muito para ler Tiago no meio de tudo e me dei conta que se fosse procurar por ele usando apenas seu nome, jamais iria encontrá-lo. O sobrenome era indecifrável e diferente. Na página de amigos, um total de 150. Tudo certo. E agora, qual seria o meu próximo passo? O que eu ia perguntar? Mandei uma solicitação de amizade, comuniquei que havia saído da escola. Estava pronto para conhecê-lo ao máximo sob pseudônimo.

Como Tiago não me aceitou de imediato, corri para a busca e digitei nomes de meninas aleatórias. Acessei seus perfis em busca de fotos para que a minha Gabriela tivesse alguma identidade real. Por sorte, encontrei uma menina que morava no Mato Grosso, com fotos bem razoáveis e por volta da nossa idade. Decidi que ela seria minha Gabriela.

Estava ansioso para à escola, surpreendentemente. O motivo é bobo: eu iria vê-lo. Teria que enfrentar a senzala, mas iria vê-lo e isso valia o esforço. Estava até me arrumando com o intuito de vê-lo. Anormal, eu sei.

No pátio, eu sempre o procurava para dar aquela olhadinha básica. Eu queria vê-lo na entrada, no intervalo, e no horário da saída. Detestava perdê-lo de vista em qualquer uma das ocasiões. Quando passava por ele em alguma troca de aula, era um bônus muito, mas muito feliz.

***

Ao mesmo tempo em que estava ansioso para vê-lo, também temia o que teria de enfrentar por parte da minha sala. A intolerância predominava. Como se não bastasse, Elica passou a pegar no meu pé. Ela era cínica, uma idiota mesmo. E estranha. Mais branca que a neve, aparentemente não sabia o que era praia, sol... Por mais que não se considerasse, Elica era o que podemos chamar de gótica. E agora ela andava com Manuela. As duas eram carne e unha, chatas como elas só. Sempre davam um jeito de rir da minha cara. E eu sempre ficava muito triste com Manuela, porque ela fora minha melhor amiga no ano anterior. “Melhor amiga”, que ironia. Posso dizer que nossa relação nunca foi verdadeira, já que caiu ao ponto da minha querida amiga ficar rindo de mim pelas minhas costas. Elas me acusavam de ser gay a qualquer hora. Sofria muito bullying por parte das duas. Queria ser amigo delas, teria ser capaz de produzir uma conversa normal com as duas. Mas era uma tarefa impossível.

– Gustavo –, chamou-me Manuela certa vez, no corredor da sala 7. – Tem uma menina querendo ficar com você.

– Quem? – Perguntei por perguntar. Eu não ia ficar mesmo.

– Uma loira. Ela é da 7ªE. Disse que quer ficar com você. Vai querer? – Ela estava sorrindo até demais. Elica, a seu lado, fazia o mesmo.

– Claro que não. Eu não sei quem é. – Respondi.

– E isso é motivo? – Perguntou Manuela e Elica caiu na gargalhada.

– Sim, é o meu motivo e isso não diz respeito a vocês.

Não suportava ver as pessoas rindo de mim. E o fato de algumas pessoas ficarem me empurrando para cima das meninas era perturbador. Não pelo fato de que eu não sou atraído por elas. Não pelo fato de estar desesperadamente desejando um que mal conheço. E sim pelo fato de ser desconfortável mesmo.

Mais tarde, descobri que a loira da qual Manuela falava jamais existiu. Sim, estavam zombando de mim mais uma vez. Elas não sabiam o quanto me fazia mal com essas brincadeiras.

Neste dia, quando cheguei em casa, corri para o computador como de costume. A primeira conta do Facebook que acessei foi o fake Gabriela. Haviam algumas notificações. A primeira: Tiago aceitou sua solicitação de amizade. E havia uma mensagem inbox me esperando. Era dele também. Meu coração acelerou.

“Quem é você?”, foi a mensagem dele. Eu já tinha dito meu nome falso e inventado uma mentira. Então por que raios ele perguntou de novo quem eu era? Não sabia o que responder. Estava com medo de dizer qualquer coisa que fosse me causar arrependimento depois. Então mandei um recado muito simples:

“Oi, eu era do Mont Carvalho. Tudo bem? Sou a Gabriela, rs. Lembra de mim? Já me apresentei. Eu queria falar com você, mas acho que é pessoal demais para ser por aqui... Não confio muito em Facebook. Tem outro lugar pra gente conversar?”.

A resposta veio três minutos depois.

“Eu não vou falar nada com você em lugar nenhum até me dizer seu nome inteiro, idade, e de que série você era no Mont Carvalho. E sobre o que você quer falar comigo? Não te conheço. Se não me falar nada, eu te deleto e bloqueio da minha lista de amigos.”

Quanta emoção! Ele me perguntou justamente o que eu queria perguntar para ele em questão de segundos. Nossa, como eu era idiota. E mais idiota ainda por me chamar assim. Onde eu estava com a cabeça quando tive a ideia de criar uma conta fake?

Ainda assim, respondi. Meu coração quase saltando pela boca. Inventei que o assunto era delicado e que não poderia ser tratado em uma rede como Facebook. Sua resposta foi curta e grossa: ou eu respondi as perguntas, ou ele me deixaria falando sozinho. Fiquei triste e não voltei a responder.

No dia seguinte, acessei novamente o perfil da Gabriela e reparei que ele já não estava na lista de amigos. Tentei colocar seu nome da busca. Procurei-o através do perfil de Nicholas. Mas não encontrei. Nada deu certo. “Se não me falar nada, eu te deleto e bloqueio da minha lista de amigos”. Ele cumpriu a promessa. Quase chorei quando percebi isso. Mas que idiota! Querer chorar por um motivo tão bobo. Deletei o fake no mesmo segundo. Não fazia mais sentido levar aquela mentira adiante. Eu mal acessava meu próprio Facebook, imagine o de uma pessoa imaginária.

Tudo o que me restava agora era bloquear minha mente ao máximo para o nome Tiago. Para seu rosto, para toda a sua pessoa, o que era impossível. Eu não podia evitar procurá-lo e apreciá-lo, mesmo que por pouquíssimos segundos. Em alguns desses momentos, reparei que ele estava olhando de volta. Tinha que tomar mais cuidado para não ser pego.

Em uma ocasião, aconteceu de encararmos um ao outro por um tempo considerável. Estávamos em uma aula dobrada de geografia, na sala 17. Na troca de período, a professora Débora, sempre atenciosa, permitia que os alunos saíssem da sala para ir ao banheiro e tomar água. Matei minha sede e encostei-me à parede, enquanto Júlia enfrentava a pequena fila no bebedouro. Foi quando olhei para a sala 18, que ficava bem à nossa frente. A porta estava aberta, e os alunos muito bem acomodados lá dentro. Provavelmente uma aula dobrada com um professor mais rigoroso. A porta se localizava no fundo da sala, de modo que podíamos ver as últimas carteiras de cada fileira. E lá estava ele. Tiago, sentado perto de Nicholas e de outro jovem que eu não conhecia. E ele olhava para mim. Foi uma troca de olhares desconcertante. Júlia puxou o meu braço, sem reparar no que estava acontecendo, e me puxou de volta para a sala. Encarei Tiago te virarmos no corredor e ele desaparecer da minha vista.

***

Nas semanas seguintes, Júlia se aproximou de Elica e Manuela, para minha desgraça. Eu sempre estava perto da minha melhor amiga, mas as duas demônios sempre me excluíam, ou sempre falavam alguma coisa para me rebaixar e me deixar de lado. Um dia, algo realmente surpreendente me ocorreu.

Estávamos assistindo a uma aula de história, na sala 12, com o adorável professor Fábio. Nossos lugares nas carteiras eram determinados por uma ordem definitiva dele – no início do ano, ele anotou os lugares que escolhemos em seu diário de classe e tivemos que obedecer aquela ordem desde então. Júlia sentava atrás de mim, e Juliana atrás dela.

Manuela e Júlia conversavam muito sobre um show de talentos que ia ser promovido na nossa escola. E era justamente o assunto Show de Talentos que fazia Júlia ficar colada com Manuela o tempo todo, me deixando sozinho, pois eu não era convidado para a conversa delas. Neste dia, a aula tinha sido decretada livre pelo professor, desde que os alunos copiassem no caderno um pequeno texto do livro didático. Aproveitei para desabafar com Júlia sobre estar me sentindo excluído, o que ela não negou.

– Eu entendo, Gu. Mas mesmo assim, eu tenho que ficar mais com a Manuela para ver as coisas do Show de Talentos. – Justificou ela.

E depois disso, Júlia simplesmente virou a cara para mim. Estávamos intrigados, brigados, mesmo sem estarmos. Surpreendente e frustrante. Não fosse por Larissa, uma das nossas colegas que sempre conversava comigo durante as aulas, eu teria ficado completamente sozinho. O último plano de Elica e Manuela era tirar Júlia de mim. Malditas.

Em uma das aulas posteriores, as carteiras eram colocadas na parede de forma que ficassem de frente para a parede seguinte, e não para a lousa no centro da sala. Sentei ao lado esquerdo de Larissa. Elica, ao meu lado direito. Júlia a seu lado e Mariane na carteira da frente. Larissa abriu seu fichário e reparei em um pequeno caderno encapado com a foto de um gato estampado. Era bonitinho. Peguei o caderno sem Larissa perceber e abri na primeira página. Havia um título bem grande e uma pequena mensagem nas últimas linhas:

THE BURN BOOK. Nem esperamos o mês começar para soltarmos o veneno – 25 de agosto.

– O que é isso? – Perguntei à Larissa, intrigado, e ela rapidamente tirou o caderno de minha mão.

– Nada! Elica, toma! – Disse ela, exasperada, e passou o caderno para Elica.

– O que tinha lá? – Insisti.

– Nada. – Respondeu Larissa, então voltei a olhar para o caderno, agora nas mãos da branquela.

– O que é isso? – Perguntei a ela.

– Nada, Gustavo. – Respondeu, com voz de cansada, como se eu estivesse torrando a paciência dela há um bom tempo.

Então Júlia viu o caderno nas mãos de Elica e perguntou:

– O que é isso? Eu posso ver?

Sem hesitar, Elica passou o caderno à Júlia, e neste momento, Larissa quase pulou da cadeira.

– NÃO! – Ela quase berrou. – Tem coisa dela aí!

Elica arrancou o cadernos das mãos de Júlia e folheou algumas páginas, de forma rápida e ainda tentava esconder o conteúdo tanto de Júlia quanto de mim. Reparei quando ela arrancou duas folhas e guardou-as em seu fichário. Depois, entregou o caderno a Elica novamente.

Fiquei desconfiado. Por que Júlia podia e eu não? Eu, que estudava com Elica e Manuela há mais de dois anos. Conhecia Larissa há mais de um. Eu não podia ler, mas Júlia, que havia começado a conversar com elas há poucas semanas, podia? Eu só precisava confirmar, mas já estava certo. O conteúdo daquele caderno tinha coisas ruins a meu respeito.


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Notas finais do capítulo

Comentários abertos para todos que tiverem críticas construtivas a fazer sobre os rumos de “Pungente”. Por favor, deixem a sua opinião. Tem algo incomodando, algo incoerente? A trama segue com uma boa estrutura narrativa? Vou adorar ler as opiniões de vocês.

Contem-me o que acharam das atitudes de Gustavo. Alguém já criou conta fake em alguma rede social para se aproximar de um crush? Deu certo? O personagem fez certo, ou deu bobeira?

Vejo vocês no próximo capítulo. Até lá!



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