Coração De Seda escrita por Maria Fernanda Beorlegui


Capítulo 18
Capítulo 18




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A última cheia fez o rio Nilo transbordar e nos favorecer ainda mais com a vegetação e o consume de água. O que seria do Egito sem o rio Nilo? Nada.
Mas eu vim sozinha até as margens do rio não foi para agradecer aos deuses como de costume, muito menos me lembrar do dia em que tentei me afogar por conta do desespero que tomava conta de mim por não poder gerar filhos.
As águas deste rios carregam mais histórias do que eu possa imaginar.
O Nilo trouxe Moisés para mim, mas também levou Anippe para longe. Eu não faço a mínima idéia de onde Moisés está, ou de como Anippe está.
Ultimamente venho sofrendo com as ações dos meus filhos, mas não deixo de amar eles mesmo assim.

—Princesa. —Meu coração acelerou ao ouvir a voz de Gab. Eu estou totalmente sozinha com ele, é isso? Recusei até mesmo a guarda real de me acompanhar. Eu permaneci calada, sem demonstrar o meu incômodo em ter a presença de Gab. —Eu vim lhe pedir perdão. —Eu o olhei com tanta fúria que se pudesse queimá-lo vivo, eu faria isso apenas com o olhar.

—Você não conseguiu o que queria, príncipe. —Falo provocativa. —Não conseguiu fazer com que Hur se voltasse contra mim. —Minto, porém minha mentira faz Gab se abater. —Não sei com qual ousadia você veio até mim.

—Não foi ousadia, foi remorso. —Gab fala. Seu semblante era penoso e sereno, mas não deixei me levar por sua farsa. Sim, pode ser uma farsa para tentar me enganar mais uma vez. —Eu só me dei conta do que fiz quando soube que a princesa Anippe partiu.

—Ela não foi embora por causa da discussão que tivemos.

—Então pelo o que foi? —A curiosidade de Gab me enfurece mais uma vez.

—Me desculpe, príncipe. Mas o que acontece na vida da minha filha não lhe diz respeito. —Falo rudemente e faço com que ele se envergonhe. —Não sei como foi capaz de caluniar sobre a paternidade de minha filha. Insinuar que a princesa do Egito teve uma filha bastarda?

—Me perdoe, princesa. Mas se a rainha do Egito é bastarda, por quê a princesa do Egito vulgo sua filha também não poderia ser? —Gab me enfrenta.

—Por quê, ao contrário da mãe da rainha, eu sou uma mulher honrada com princípios. Eu sou filha do faraó Seti, não sou uma qualquer. —Falo por entre os dentes. Quem Gab pensa que é para me igualar á Yunet? E como ele soube que Paser não é pai de Nefertari? —O senhor está indo longe demais. Não sei como ainda não pedi a sua cabeça ao rei...

—Seria um escândalo ao qual a princesa se mancharia. Não de vergonha, mas sim do meu sangue. —Gab fala seguro pela sua vida.

—Já fui manchada de vergonha uma vez, de sangue nunca. Mas sempre existe uma primeira vez, principe. —Meu tom de voz é de total ameaça. E a minha ameaça faz com que Gab se assuste. —De tanto ser envenenada, aprendi a envenenar.

—As cobras sabem se entender. —Gab fala na defensiva.

—Tenha muito cuidado comigo. —Falo. —Quando eu me sinto ameaçada e vejo o perigo rondar a minha família, tendo a atacar o calcanhar de quem me ameaça. —Gab se afasta ao se deparar com minha perversidade. —Se afaste, príncipe Gab. Se nesta história alguém sair ferido, este alguém será você.

—Acho que sua resposta para o meu perdão é não. —Gab fala e sorri desconfiado. Ele não resiste as minhas provocações e deixa claro que realmente quer o meu perdão.

—O que o senhor esperava? —Pergunto. —Que eu o convide para um partida de Senet? Não existe nada que me faça voltar a dirigir a palavra ao senhor.

—Mas eu tenho. —Gab se aproxima, mas eu me afasto. —Se lembra de quando contei que a mulher que eu amava tinha se casado com outro homem?

—Me contou sobre isso da primeira vez que veio ao Egito. —Falo ao me lembrar da história que Gab havia me contado.

—Essa mulher é você...

—Que horror! —Esbravejo indignada e plena de asco ao descobrir a verdade. —Eu não sabia da sua existência quando me casei com Hur.

—Mas eu sabia da sua quando se casou com Disebek. —Gab me revela mais um detalhe e me deixa atordoada. —Talvez, sem sombra de dúvidas, o faraó Seti e minha tia Nayla nunca contaram sobre o meu pedido.

—Pedido?

—Eu pedi sua mão em casamento ao faraó Seti, pensei que tendo minha tia como segunda esposa de seu pai, talvez ele aceitasse. —Gab me deixa assustada ao revelar seu passado. —Eu nunca havia lhe visto, mas eu sabia da existência de sua estonteante beleza. —Gab fala e sorri descaradamente para mim. —Mas o rei tinha planos de casar a princesa com o general. —Nunca fui tão grata ao meu pai por ter me feito casar com Disebek ao saber que Gab havia pedido minha mão em casamento. —E então fui privado de vir ao Egito.

—Meu pai o proibiu de vir até mim...

—Depois de trinta anos, depois que soube que a princesa havia enviuvado, tomei a decisão de vir ao Egito. —Gab fala agora olhando para o horizonte. —Mas então a notícia de que a princesa se casaria com um nobre egípcio se espalhou... —Ele volta a olhar para mim. —Mas cinco anos se passaram, e eu decidi conhecer a mulher que, nunca havia visto, mas eu amava da mesma forma. E quando chego ao Egito... —Gab fala com dificuldades e desvia seu olhar novamente. —Me deparo com Jahi conversando com a princesa do Egito. Grávida... —Gab oprimia os seus olhos como se quisesse esconder algo. Eram suas lágrimas... Lágrimas? —A mulher da minha vida estava grávida.

—Eu não sou nada sua. Tudo isso não passa de uma obsessão juvenil. —Sou rude mesmo depois de ouvir a comovente história de Gab. —E mesmo que isso fosse amor, eu nunca me casaria com você.

—E por quê não? —Gab pergunta se aproximando de mim mais uma vez, mas desta vez eu não recuo.

—Se meu pai não aceitou seu pedido é por quê você não inspirava confiança. —Falo frente a frente com Gab, ele me olhava furioso, todavia não me deixei intimidar. —E mesmo Disebek tendo sido o miserável que foi, eu preferia ter passado mais anos casada com ele do que com você. —Minhas palavras o feriram. —Por quê foi assim que consegui ter Hur em minha vida...

—Eu sei que ele faz a princesa feliz...

—Muito mais que isso. —Falo me aproximando ainda mais de Gab. —Hur me fez ser mãe, duas vezes, me fez ver as coisas de outra forma, me ensinou que a vida vai mais além que a riqueza do palácio. —Falo gesticulando com as mãos. —O amor que tenho por Hur é mais valioso que qualquer tesouro, é mais polido que o mais delicado e precioso diamante, é mais fino que a melhor seda do Egito... —Revelo fazendo Gab me olhar desesperançoso. —O amor que sinto por ele é maior que eu, príncipe. Mas ele não vai além das fronteiras do Egito, ele é capaz de ir além da morte.

—A princesa tem a certeza disso?

—Tenho. —Respondo segura. —Tenho tanta certeza disso que sei que, quando nós dois morrermos, a prova do nosso amor estará viva neste mundo.

—Seus filhos... —Gab fala lastimoso.

—Eles são a nossa continuação, príncipe. O meu amor por ele atravessará gerações e gerações, não tenha dúvidas disso. —Falo. —Hur não é apenas o amor de toda minha vida, é também o da minha morte. Por que nem mesmo a morte será capaz de apagar esse amor.

—Eu me rendo. —Gab fala fracassado. —É inútil separar vocês dois. —Gab fala e segura as minhas mãos, eu permito o contato. —Mas eu te amo tanto... —Gab insiste e antes mesmo de me pronunciar mais uma vez, ele continua. —Tanto que desejo que em todas as vindas que suas almas derem para este mundo... —Ele exita em falar, mas acaba falando. —Se encontrem e sejam felizes. —Ele solta as minhas mãos e respira fundo antes de terminar a conversa. —Adeus, Henutmire.

—Não ficará para a recepção?

—Não quero te ver ao lado de Hur, isso me dói. —Gab fala e força um sorriso. Ele dá meia volta para se retirar, mas eu o chamo.

—Príncipe Gab?

—Sim? —Gab me atende e me olha com curiosidade.

—Ao partir do Egito terá o meu perdão. —Falo irônica e ele sorri.

—Não se preocupe, princesa. O terei o mais rápido possível... —Gab fala. —E não voltarei se quer para visitar Radina.

—Assim espero. —Falo e Gab se retira. Agora estou livre da obsessão de Gab, não tenho com o que me preocupar mais. Eu agora preciso salvar o meu casamento com Hur, mas estando magoada como estou, não sei se irei conseguir olhar nos olhos de Hur novamente.

Tudo o que disse para Gab sobre o amor que sinto por Hur é verdade, mas a grande mágoa que sinto por Hur ter duvidado de mim está se tornando maior. Meu amor por Hur não diminuiu, mas está se tornando pequeno e fraco diante da minha mágoa. Sinto uma vontade gigantesca de me afogar nas águas do rio Nilo todas as vezes que me lembro do olhar duvidoso de Hur.
Mas eu não posso me matar somente por isso. Até por que eu sei que Hur e Djoser sofrerão com a minha morte.

—O que eu faço?

(...)

—Eu já contei como você andou pela primeira vez? —Ouço Hur pergunta assim que me passo pela oficina de jóias.

—Não exatamente. —Djoser responde e eu me escondo para ouvir a conversa.

—Todas as crianças do palácio já estavam andando, inclusive Amenhotep. —Hur fala risonho e faz Djoser rir. —Mas você não andava. Eu falava para a sua mãe que era estranho, mas ela dizia "Ele andará quando tiver para onde ir".

—E eu tive para onde ir? —Djoser pergunta curioso.

—Você teve, mas não andou. —Hur fala deixando Djoser confuso e me faz chorar ao lembrar deste episódio. —Você correu. —Eu comecei a soluçar ao ouvir Hur falar com emoção. —Você foi correndo para os braços da sua mãe, Djoser. —Hur fala erguendo os braços. —Eu te coloquei no chão, mas quando você viu sua mãe entrar na sala do trono, no aniversário do faraó, você correu até os braços dela.

—E como ela reagiu? —Djoser pergunta.

—Ela parou de andar ao te ver correndo na direção dela. Ela não parecia acreditar no que estava vendo... —Hur fala e chora junto com Djoser. —Eu chorei ao ver você e Anippe nos braços de Henutmire. Vi que minha vida tinha sentido, tinha sentido por quê eu era o pai de vocês. —Hur fala entre lágrimas e eu tento silenciar o meu choro. —A cena foi tão linda, tão linda que eu pensei que estivesse sonhando.

—O meu lugar era nos braços dela. —Djoser fala e acaba abraçando o pai. —Os braços dela é o meu lugar... —Meu filho sussurra chorando. Eu entro no local sem fazer barulho, e sem que eles me notem. Os dois estão tão emocionados que não me vêem próxima deles, eles só notam a minha presença quando os abraço.

—Mãe? —Djoser pergunta assustado. Ele está tão envergonhado pela bebedeira que teve, que ao me ver abaixa a cabeça.

—Olhe para mim. —Peço, mas ele teme a minha fúria. —Estou pedindo, Djoser. —Falo e ele finalmente me olha nos olhos. —Está tudo bem. Não estou brava com você. —Minhas palavras fazem meu filho sorrir de alívio. —Mas não me faça passar por outra vergonha como esta.

—Eu prometo, mamãe. —Me orgulho ao ouvir meu filho me prometer. Meu filho me abraça fortemente e começa a dar gargalhadas de alegria por saber que não estou mais brava com ele. Djoser rodopia comigo em seus braços e me faz rir alto, a sua alegria acaba me contagiando.

—Ponha-me no chão, menino! —Falo já tonta pela quantidade de vezes que Djoser rodopiou comigo em seus braços.

—Mas é claro, alteza. —Djoser tira proveito da situação e me coloca no chão como pedi. —Mãe, será que o meu tio deixaria eu ir atrás de Anippe?

—Para quê ir atrás de sua irmã? —Pergunto.

—Djoser acha que pode convencer Anippe para que ela desista do sacerdócio. —Hur responde no lugar de Djoser. —Já disse para ele que é impossível.

—Mas eu preciso tentar. —Djoser fala. —O soberano não vai ver isso como uma afronta.

—Já basta Bezalel ter saído do palácio. —Hur fala. Bezalel saiu do palácio?

—Meu sobrinho saiu do palácio? —Djoser pergunta incrédulo. —E para onde ele foi?

—Bezalel abriu mão de todo o luxo do palácio por causa das suas origens. Ele não se sentia bem vendo os hebreus sofrerem... —Hur explica.

—E ele prefere sofrer junto com eles? —Djoser pergunta com ironia. —Ele não vai aguentar viver a base de pão e água!

—Claro que consegue. Bezalel é mais um entre todos os hebreus. —Falo sem pensar e os dois entendem errado. —Mas Bezalel cresceu no palácio... —Tento me redimir.

—Uri deve estar arrasado. —Djoser fala. —Eu não posso se quer imaginar Bezalel como um escravo.

—Quem me dera que Anippe tivesse o mesmo orgulho que Bezalel tem em ter origens hebréias. —Hur fala ganhando minha atenção.

—O senhor também gostaria de ver Anippe levando chibatadas enquanto trabalha? —Djoser pergunta enfurecido. —Prefiro que minha irmã se torne uma sacerdotisa do que ser uma mera escrava.

—Você também? —Pergunto indignada. —Agora vai odiar os hebreus?

—Não é questão de odiar. É questão de não ter do que se orgulhar, mãe. Se eu não fosse seu filho, talvez eu estivesse sendo açoitado como os escravos, sobrevivendo a base de pão e água, sendo tratado pior que um animal. —Era Djoser quem falava, mas eu vi Anippe em seu lugar, vi suas palavras de fúria se igualarem ao desprezo que meu pai sentia em relação aos hebreus. —Os deuses me salvaram de um destino cruel, mãe. É neles que devo acreditar e não no deus sem rosto e sem corpo dos hebreus.

—Chega! —Peço brava e ele se assusta. Hur estava se sentindo um miserável ao ver Djoser desprezar os hebreus. —Eu não quero que você se volte contra os hebreus como Anippe, Djoser.

—Nem mesmo Uri que é hebreu suporta isso, mãe.

—Uri não é meu filho, você é! —Minhas palavras acabaram por ferir os sentimentos de Hur, notei ao ver sua expressão de dor. —Você é hebreu tanto quanto é egípcio, Djoser. Você não é meu filho apenas...

—Eu não tenho do que me orgulhar, mãe. Ganho mais como egípcio do que como hebreu. —Djoser encerra a conversa e se retira.

—Eles estão certos. —Hur concorda. —Uri,Anippe e Djoser estão certos. Não temos do que nos orgulhar em sermos hebreus.

—Então por quê Bezalel se orgulha? Será que na vila existe mais luxo do que aqui? Ou será que o conforto do palácio não era o suficiente para ele? —Hur não responde a nenhuma das minhas respostas. —Lá tem algo que aqui não tem, Hur.

E eu um dia irei saber o que é este "algo". Se Moisés foi capaz de trair o faraó, se Bezalel teve coragem de largar os pais e todo o luxo deste palácio, é por quê algo naquela vila os fez mudar. Talvez a crença? Talvez os hebreus realmente sejam fiéis ao deus deles. Ou será que são loucos?
Eu não devo pensar tanto nisso, não devo questionar tanto. Mesmo que lá tenha algo ainda desconhecido, desconhecido continuará sendo. Até por quê eu nunca mais irei até aquela vila, não existe nada que me faça ir até lá.


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Notas finais do capítulo

Sabe de nada inocente...