Tempestade escrita por Bunnat


Capítulo 5
Myléne


Notas iniciais do capítulo

Mais um!! yey! E eu esqueci de agradecer a Arima Kousei, me anima muito vc ♥



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Com pouco mais de onze anos eu rolei uma ladeira. Na hora pensei que ela era interminável e no final dela tinha um enorme caminhão esperando para esmagar meus miolos. Mas atualmente percebo que era uma ladeira mediana e mesmo que o caminhão viesse, ele ouviria meus gritos de pavor.

Eu superei a queda e jurei não correr em ladeiras, mas nunca esqueci ou quis esquecer o que houve em minhas pernas.

A ladeira parecia em chamas com todas aquelas folhas vermelhas, laranjas e amarelas; facilmente escorregadias e, assim como umas tabuas farpadas pareciam estar me esperando, elas também, e se deliciaram ao ver a madeira penetrar minha pele ao mesmo tempo que me arrastavam mais para o suposto fim.

Perto do ligamento do joelho, atrás das pernas, elas me furam e jorram vermelho. As folhas foram coloridas e em minha mente maluca a dor me fez alucinar. Além de pontinhos pretos na visão e mal-estar, sentia que virava as folhas do chão, que o vento poderia me carregar em suas costas e me mostrar o mundo sem complicações. Afinal eu seria uma folha.

A ideia me agrava tanto, mais tanto, que todo ano no outono, eu busco essa mesma alucinação. Até chego a quase desmaiar, mas nada daquela sensação. Então só mais um ano que falha e nos próximos voltemos ao vermelho. Pois é a época, é um momento agridoce.

...

Mais um dia pacato na universidade. Só que hoje, um carro me espera. Vovô está se movendo para me convencer a desenvolver o meu ‘talento’ (palavra rude aos esforçados e a mim mesma que só possuo afinidade com teclas, mas negação com cordas se não me esforçasse).

Entro no carro. Era um diferente, deve ter alugado para me agradar, pois alugou um Fiat Palio de 97, o mesmo de minha mãe e isso só traz lembranças boas. Mas como todo passado, o bom vem junto ao desagradável.

Ele gosta de ligar o rádio e fazer um trajeto tranquilo. Tinha começado a tocar Je Te Dis Tout. Uma musica calma e magoada, mas muito bela. E a voz de Myléne tem um toque de seda pura, com seus sussurros no encantador francês. Isso me faz adormecer, me faz lembrar de algo que a muito forçava esquecer.

...

Houve um tempo, uma semana no máximo, em que morei com meu pai e meu irmão. Foi tão rápido que quase se apagou da minha memória. Foram momentos muito importantes.

Minha mãe teve ataque de pânico e depressão. Uma vizinha gentil me ajudou a sair de lá e chamou ajuda, uma ajuda nada gentil com minha mãe. Eu não podia ficar com nenhum outro familiar, era uma época difícil na família de mamãe, então fui encaminhada para a casa de meu pai.

Leo queria me receber quando chegasse, mas ele estava num colégio integral e ao voltar pra casa já era bem tarde e papai já tinha me trancado no quarto. Acho que ele não queria que Leo se apegasse a mim e vice-versa pra não ter complicações depois.

No segundo dia daquela casa, percebi como era vazia. Estava afastada da escola pra não causar rumores e reboliços, então meus dias eram ficar sentada num corredor de madeira corrida, olhando pra porta esperando alguma alma chegar, alguém que não fosse a empregada.

No terceiro dia a empregada não veio, devia ser a folga ou teve algum problema, e pra me alimentar meu amado papai comprou guloseimas e comidas congeladas. Eu comi o que podia, não tenho o maior apetite do mundo, mas abro espaço para doces, como qualquer criança que se prese.

Mais tarde no mesmo dia eu vomitei até sair minha bile, até ela acabar e então nada vinha, mas eu continuava a regurgitar. Também fiquei desarranjada.

Por fim desmaiei numa das idas ao banheiro naquele dia.

A empregada me achou na tarde seguinte e cuidou de mim. Ela avisou meu pai e que precisava dele ali por mim, mas lembro claramente dessa parte, dele falando ao telefone com ela:

– Não dá. Tenho que tratar meus dentes. Não posso deixar isso de lado, mas estou preocupado, limpe o que ela sujou e não esqueça o bom ar. – o tom de desinteresse dele me fez chorar naquele dia e gritar por minha mãe.

Fiz a empregada ir embora e não sai do banheiro pra não sujar a casa do papai.

Fiquei com medo de comer qualquer coisa que não fosse feita pela minha mãe ou hambúrgueres. Sendo assim passei mal por três dias. Fraca e sem forças.

Só saí daquela casa porque Leo ouviu um de meus tombos, roubou a chave do quarto e me tirou de lá. Depois daquele dia meu pai me mandou pro hospital e fiquei internada num quarto que parecia mais melancólico que a casa.

Na primeira noite do hospital eu chorei chamando por Leo e mamãe, mas tinha uns poucos soluços em que eu falava: pai.

...

Às vezes lembranças me incomodam. Por mais boas que tenha as vergonhosas é que parecem estar sempre vivas na mente. As mais tristes também.

“Os dentes de um inútil tem mais valor que a minha saúde.” É o que eu diria com meu ódio transbordando para meu eu do passado, para o meu pai do passado. Porque é bem capaz dele, sim, ter esquecido.

Pensei que dormi de mais, mas a própria musica não tinha acabado.

Os ecos da voz de Myléne poderiam parar uma multidão. E dessa música eu vejo plumas e deuses num infinito looping do tempo, vendo a eternidade entediante e invejando a curiosidade e desejo humano. Parece uma súplica desesperada e o piano complementa como apoio e a bateria negligencia pra dar forças a continuar. Os deuses continuam e ao final deixam esfarelar sua insegurança... Deixam o próprio tempo carrega-los lentamente enquanto veem os seres inferiores sendo tragados mais rapidamente. Deixam a terra os guiar e à medida que ela seca os sussurros se intensificam ao ponto de parar o universo e a musica termina amarga como limão, como um amor não correspondido, como uma esbelta solidão.

Por sorte o sono não me abandonou e voltei a dormir no inicio de uma outra musica qualquer. Dei tchau para os deuses em minha pestana e esperei no meu mundinho até que vovô me acordasse.

...

– Dorminhoca... Hora de acordar. –Ah... tão gentil. Por que não é assim com Leo também?

Murmurei uns resmungos e me ajeitei para sair do carro. Estávamos no meio do nada.

Se queria me matar era só falar, sei de lugares melhores e quero partir tendo uma bela vista do pouco que sobrou dessa terra.


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Notas finais do capítulo

Hm... acho que já me perdi na historia... mas vai tudo se encaixar, vai sim!



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