O Primeiro Arcano escrita por Enki


Capítulo 5
Capítulo 05




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/660891/chapter/5

Após colocar o convento em chamas, Karen fugiu para floresta. Aquela foi uma das épocas mais difíceis para a menina. Diferente de Henrique ou Douglas, ela nunca tivera nenhum treinamento e precisou improvisar para sobreviver naquele lugar. Ciente do poder que continha e incapaz de controlá-lo, a garota decidiu que não voltaria para civilização. Estava assustada. Aquela força que sentia dentro de si não era comum e parecia possui-la. Por mais que odiasse, ela sabia que as irmãs do convento tinham razão. Ela estava possuída por algum demônio, aquela era a única explicação possível... Ela havia matado todas as irmãs, havia incinerado todas elas vivas. Como não poderia ser essa uma obra profana? Se ela perdesse o controle de novo e poderia assassinar mais pessoas. Pior, muito pior. Poderia revelar aquele poder nefasto que cresciam dentro dela, por práticas de magia negra seria acusada, julgada e levada a forca. Não. Condenada ela já estava, por um destino de vida miserável, ela certamente estava. Mas permanecia viva e, se até sua alma fora corrompida, então ao seu único bem restante, a sua vida ela se apegaria, mesmo que infame e desgraçada fosse.

Assim ela decidiu por se refugiar na floresta. Diferente dos homens, a natureza não a condenaria por simplesmente nascer. As árvores lhe forneceriam os frutos necessários para se manter enquanto os animais a fariam companhia, ou mesmo seriam sua refeição assim que ela aprendesse a capturá-los. Frágeis suas roupas logo se rasgaram, obrigando a menina a abandonar os excessos de vestimentas que usava para se esconder. Em uma semana, seus braços e pernas ficaram cobertos de machucados e ardiam sempre que se movimentava. No início, ela não tinha força para maioria das tarefas, mas aos poucos foi aprendendo a escalar os troncos a fim de comida, a atirar pedras para afastar os animais mais perigosos. Com o tempo, seus sentidos e habilidades aguçaram-se. Passou a reconhecer os resistentes galhos que aguentariam seu peso. Conseguiu diferenciar as mais variadas plantas da floresta através do cheiro, da forma e da cor.  Sabia quando uma fruta estava madura ou verdosa, boa ou podre. As folhas e raízes que eram comestíveis. Com as pedras, podia entalhar armas de madeira. Facas para o corte, flechas para o tiro. O arco e a flecha foram sua maior conquista então. A princípio se quebrou e teve diversas disfunções que a atrapalhavam e a feriam ao invés de ajudar. Mas, com o passar dos meses, uma tentativa atrás da outra, ela conseguiu um balanço bom da flecha e um modelo com a envergadura aceitável para a arquearia.

A vida na floresta, o contato com a natureza, era mais do que boa. Pela primeira vez, possivelmente em sua vida inteira, Karen estava feliz, completamente livre da presença de humanos, sem ser insultada ou desprezada. Mas as complicações dessa mesma vida por vezes a lembrava de seu passado e tudo que havia perdido. Muitas foram as noites em que passara frio. Não, não queria usar seu poder, não ousaria convocar novamente aquela maldição. Ela preferia mil vezes permanecer tremendo, com as extremidades arroxeadas e a pele queimada com o ar gélido. Lembrava-se então das salas quentes do convento, agraciadas por lareiras e mantos aconchegantes. Então se lembrava das irmãs severas, das meninas invejosas e de sua mãe desventurada e nessas horas, tudo o que passou voltava. Sua raiva reaparecia como uma lufada violenta do vento. Entrava em seu coração e o incendiava. O frio se tornava desprezível, imperceptível, pois seu corpo parecia aquecido e tomado pelo ódio contra a humanidade.

Os anos se passaram e Karen perdeu a noção de contagem dos dias. Naquela época, a falta de contato com a civilização a deixou afastada de tais convenções, de modo que os meses semanas ou anos não tinham mais significado. Para ela existia o hoje, o ontem e o amanhã, nada mais. O único contato com os homens que lhe restou, não por sua vontade, mas pela inevitável eventualidade, foi os raros momentos em que alguns viajantes atravessavam sua floresta e, por vezes, acampavam nela durante a noite. A menina escutava seus passos na floresta muito antes de vê-los. Acostumara-se tanto com o ambiente que podia reconhecer todos os sons, principalmente os sons incomuns ao ambiente, como as altas falas, gargalhadas e passos simetricamente ritmados dos aventureiros. Posto isso, ela logo tratava de se embrenhar entre as árvores e observar os passageiros, escondida aos seus olhos, a salvo do seu desprezo.

Certa vez, Karen vigiava dois homens atravessarem a floresta. Eles viajavam a cavalo e não estavam sozinhos. Levavam consigo, atada e puxada pelos pulsos, uma garota ruiva que, ao que parecia, a qualquer momento cederia e cairia no chão. Karen sentiu desprezo pelos dois homens. Reconheceu na menina todo o sofrimento que passara. Entendia sua miséria e sofria com isso. Karen não aguentou. Acompanhou os homens de longe, imperceptível no alto das árvores. Observou seus modos grosseiros e o tratamento miserável que a garota recebia e não teve mais dúvidas. Esperou eles dormirem e desceu das árvores. Tentou silenciosamente se aproximar do acampamento que eles tinham preparado. Com suavidade se aproximou da garota.

Sua semelhante ainda não tinha dormido, embora estivesse exausta. A menina arregalou os olhos ao ver uma selvagem ruiva se aproximar e sufocou um grito em sua garganta. Poderia não esperar coisas boas, mas nas condições em que estava, também não podia ficar muito pior. Assim ela aguardou a menina em silêncio. Karen se aproximou da jovem, empunhou sua faca de madeira e, com bastante dificuldade, conseguiu cortar as cordas que a amarravam. A jovem em silencio se levantou surpresa e fez alguns gestos de agradecimento. Karen então voltou-se para os dois homens que ainda dormiam. Entendendo o que ela pretendia, a estranha fez mais gestos pedindo para que fugissem dali o quanto antes. Karen não cedeu. Ela se aproximou dos equipamentos dos homens e remexeu em suas mochilas. Não tinham muitos itens de sobrevivência, de modo que se percebia que não pensavam em fazer uma viagem longa. Encontrou um jornal e correu os olhos pelas palavras. Ao ver a data, reconheceu o dia do seu aniversário e, ao olhar o ano, percebeu que faria 12 anos assim que o sol nascesse. Voltou-se aos demais itens e finalmente encontrou o que procurava. Roubou uma faca de caça, cujo metal muito mais afiado e resistente que a sua faca de madeira facilitaria muito sua vida na floresta. Guardou a lamina entre suas vestes e se aproximou dos homens com a arma que ela mesma tinha talhado. A estranha a que salvara estava nervosa, o tempo todo fazia gestos e sufocava palavras tentando convencer Karen a para com aquilo. A menina irrefreável não podia. Estava com raiva demais para deixar que eles saíssem vivos. Se o fizessem, apenas encontrariam outras garotas a quem iriam tratar do mesmo jeito.

Karen se pôs cuidadosamente inclinada sobre um dos homens. Aproximou a faca de madeira de sua garganta. Então ouviu um alto estalo de madeira vindo de perto. Voltou-se para a origem do som alarmada e viu a garota que havia resgatado correndo para as sombras da floresta. Quando olhou novamente para o homem a sua frente, ele já estava de olhos abertos e a encarava furioso.

Ela gritou quando sua mão desceu para levar a faca de encontro a garganta do seu inimigo, mas ele segurou seu braço antes que terminasse o movimento e a jogou para longe. A essa altura, o outro homem também já acordava e se levantava. Aquele a quem atacara gritou algum xingamento, levantou-se e correu em direção a floresta com uma espada já em punho. Percebendo que ele iria atrasa da fugitiva, Karen tentou impedi-lo. O outro homem, por sua vez, rapidamente a segurou e desarmou. Karen berrou e se debateu, mas a cada tentativa de se soltar, o homem apenas a segurava com mais força e machucava cada vez mais seu braço. Quando finalmente percebeu que aquilo era inútil, seus olhos se encheram de lágrimas e ela começou a chorar.  O homem sorria, um sorriso nojento que a deixava enjoada. Ainda segurando ela com força, ele a deitou no chão. As lagrimas da garota apenas aumentavam.

De repente ouviu a voz do outro. O homem que perseguira sua fugitiva pela floresta estava de volta. Karen sentiu um momentâneo alívio quando ele interrompeu o que estava prestes a acontecer, mas em seguida foi tomada pelo medo de que ele se juntasse aquela perversão.

“Afaste-se dela.” O homem declarou para sua sorte. “A nossa escrava não vai voltar. Não consegui captura-la de volta. Ela tentou me atacar e tive que matá-la para me proteger. Eu sei, meu amigo, essa é uma perda considerável e terrível, porém, por mais que eu queira ver essa megerazinha sofrer pelo dano que nos causou. Acredito que ela possa ser a solução de nosso novo problema. Veja os cabelos ruivos dela. Debaixo dessa selvageria e total falta de vaidade, eu vejo que há beleza suficiente para torna-la uma bela moça. Com sorte, poderemos vendê-la no lugar da outra sem que nossos compradores percebam. Sim, é isso que faremos! Cuidaremos da garota para deixa-la apresentável e depois a levaremos aos compradores sem mais demoras. Se ela é inteligente, entende nossas palavras ou é capaz de imitá-las, pouco me importa. Não nos foi requisitado uma garota estudada, mas virgem sim era a única condição. É verdade que não saberemos se ela é pura se não a provarmos nós mesmos, mas isso automaticamente faria ela perder seu valor. Vamos vendê-la e diremos aos nossos fregueses que é o que procuram. Assim que recebermos o dinheiro, partiremos antes que descubram a situação dessa infeliz.”

Com essas palavras, ele empurrou seu parceiro para que ele saísse de cima da garota. Ela tentou se levantar e escapar, mas mais uma vez seu captor fora mais rápido. Minutos mais tarde estava amarrada, pernas e braços ao tronco de uma árvore. No dia seguinte, completando seus doze anos, Karen foi levada como escrava para fora de sua floresta.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "O Primeiro Arcano" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.