O Primeiro Arcano escrita por Enki


Capítulo 4
Capítulo 04




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Nada fácil foi a formatura de Henrique e Douglas na Escola de Guerra de Valéria. Ao Valeriano, não bastava estarem forma e treinado. Um garoto, para se tornar homem e soldado, precisava demonstrar que estava preparado para enfrentar as situações mais difíceis, precisava demonstrar coragem superior ao medo, independente de quão perto da morte estivesse. Um torneio severo era organizado então, não como as justas ou os Ludi Circensis de gladiadores feitos pelos nobres, mas selvagem e desafiador, de modo que muito altas eram as chances de um competidor sair morto. Os formandos, ou condenados por assim dizer, eram jogados além das muralhas, durante o inverno de nevascas mortais, sem ração, agasalho ou arma, precisando sobreviver ao frio, à fome, à sede e enfrentar os atrozes ursos das florestas nos arredores da cidade. Formado e reconhecido com homem de armas seria o garoto que retornasse com a pelagem como prova de sua vitória, mas rejeitado e envergonhado seria aquele que retornasse sem nada. Ainda aceito como soldado ele seria, mas sempre lembrado e marcado por sua vergonha estaria até que conquistasse uma vitória gloriosa em batalha durante o exercício de sua profissão, ou morresse tentando.

Dessa forma, os torneios de formatura da escola de guerra eram um grande evento na cidade, ocorrendo apenas uma vez a cada ano. Todos, tanto plebeus como nobres assistiam festividades inicias. Danças de ditirambo eram feitas com homens e mulheres em homenagem aos competidores. Todos os soldados já formados compareciam com suas armaduras e aos garotos era entregado uma taca de vinho para cada um, abençoado pelos espíritos dos heróis de Valéria que morreram em batalha. A festividade era tão importante que todos estranharam quando o Rei de Valéria não compareceu.

De todos os garotos, Henrique e Douglas, ambos com seus quinze, eram os mais novos do grupo que participaria do desafio e eram, por isso, os mais despreparados para a tarefa. Por sempre protegerem um ao outro, os meninos progrediram muito rápido na escola de guerra e, naquele momento, prestes a serem lançados na selva, não parecia mais aquela uma vantagem tão boa para eles. Ainda assim, eles não recuaram, não podiam recuar. Conheciam as consequências de tal ato. Precisavam confiar então em suas habilidades. Douglas era sabido, muito bem estudado e mais inteligente que qualquer menino de sua idade. Após seus constantes treinos com Henrique, também se tornou robusto, sendo mais alto e musculoso que o próprio amigo. Já Henrique era mais rápido e não deixava de se nivelar com o amigo em força.  Ambos atravessaram a muralha aquele dia com mais cinco garotos. Uma vez do lado de fora, os meninos mal se entreolharam. Sabiam que não haveriam ursos adultos para todos e estavam ali competindo entre si. O primeiro que completasse a tarefa era o que tinha mais chances de retornar vivo. Douglas e Henrique os observaram sumir no campo de neve. Depois, encararam um ao outro e souberam que só tinha um jeito de voltar daquilo vivos. Apenas sobreviveriam se apoiassem um ao outro, como sempre fizeram na Escola de Guerra. Eles já sabiam o que fazer. A principio, precisariam de armas. Com uma lança ou um arco poderiam caçar. Da caça, poderiam tirar carne para comer e pelagem para se aquecer. O problema é que levariam horas para encontrarem uma pedra boa e lapidarem até a tornarem afiada. Da mesma forma, demoraria demais para conseguir um pedaço de madeira que fosse resistente para aquelas dificuldades. O frio insuportável os desafiaria e tentaria fazê-los ceder muito antes que conseguissem algum resultado. Aquele era a primeira prova de resistência. Os dois meninos tinham passado tanto tempo juntos que mesmo seus pensamentos haviam se tornado coordenados, ambos arranjaram a mesma solução para o problema sem ao menos precisar dialogar.

Eles correram para a floresta atrás de madeira. O material estava úmido da neve e não era favorável. Henrique pegou algumas folhas macias que ainda restavam nos arbustos e cobriu sua mão para não machucá-la enquanto manuseava as toras. Com algumas horas, eles conseguiram juntar o suficiente para fazer fogo e com tochas, eles se mantiveram aquecidos. Assim, voltaram aos ensinamentos que receberam, armas e caça.

Os dias se passaram e os dois meninos foram levados ao limite na situação em que estavam. Embora soubessem que haviam outros, como eles, enfrentando as mesmas dificuldades, é verdade que não chegaram a ver nenhum dos competidores na floresta por um bom tempo. Da mesma forma, também não viam nenhum urso atroz para acabar com aquele desafio. Já haviam explorado boa parte da floresta e estavam preocupados quanto ao sucesso de sua missão. Sem mudanças, um mês se deu, até que finalmente algo mudou o curso daquele torneio.

Enquanto isso, dentro dos muros de Valéria, os dois meninos há haviam sido dados como mortos. Era costume local tomar essa iniciativa para que as pessoas não insistissem em mandar equipes de busca, embora, extasiada o suficiente com expectativas de um retorno glorioso,  a população continuasse esperando os meninos voltarem. Naquela noite, poucas horas após a declaração publica de óbito dos competidores, ninguém entendeu que estava acontecendo quando toda a população da cidade sentiu sua garganta arder terrivelmente e o ar faltar-lhe nos pulmões. 

Henrique e Douglas estavam sentados em torno de uma fogueira, assando um coelho que haviam encontrado, uma refeição farta, mesmo que fosse a única do dia, pois em outros as vezes eles não tinham nada para comer. Vestiam peles de veados que haviam capturado semanas antes. Tinham finalmente encontrado o urso e matado, com muita dificuldade. A neve caía singela naquela noite. Eles se preparavam para voltar vitoriosos aos portões da muralha, quando ouviram ouviram barulhos estranhos vindo de não muito longe, como algo grande que explodia a pancadas. Se levantaram antenados e montaram guarda. Os barulhos foram se aproximando, agora somado a gritos. Das árvores, uma pessoa apareceu correndo, assustada ela pediam por ajuda. Surpresa de encontrar Douglas e Henrique no meio do caminho, hesitou por alguns instantes. Os meninos a reconheceram, eram outro competidor, dos mais velhos e mais experientes. Era decerto incomum encontra-lo naquele estado, precisando de um horror sem igual para deixa-lo assim. Transtornado, então, o rapaz voltou a correr, desaparecendo atrás da floresta. Seguindo ele, as estrondosas batidas se aproximavam. Os dois amigos, mais uma vez sozinhos, pensaram em se armar, mas, sem saber o que estava vindo, a razão falou mais alto e eles se esconderam entre arbustos para ver o que acontecia. Viram duas filas de cavaleiros negros passarem cavalgando pelo seu acampamento. Vinte homens, pelo que os meninos contaram, iam em direção a cidade. Logo em seguida uma carruagem passou, coordenada por um escravo sem cabeça na coxia, conduzindo os cavalos negros.

Uma vez fora de vista, os meninos resolveram seguir a carruagem e os cavaleiros incomuns. Ao chegarem aos muros, não foram recebidos com comemorações ou alegria. Naquela noite, um terço da população de Valéria morreu com os ventos ácidos, entre elas o Rei e toda sua família. Quando seu corpo foi encontrado, o anel contendo o brasão Real que sempre usava em seu dedo havia desaparecido. Os boletins públicos armazenados na biblioteca real descrevem os acontecimentos daquela noite, divergindo de muitas formas entre suas causas. Ideias mirabolantes inventadas para acalmar a população, mas a verdade era clara ninguém pode explicar aquele evento.


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