Zodíaco escrita por Ágatha


Capítulo 1
Super Nova


Notas iniciais do capítulo

Este capítulo em particular não tratarei como o começo desta história. Ele falará sobre uma parte cinzenta e sua transição de cores, lentamente, e inegavelmente causada pelo aparecimento do ser mais intrigante de minha vida.
Desde muito tempo cogitei diversas maneiras de contá-los tal história, mas poucas eram consideradas boas quanto á sua essência real. Traduzindo, não acho que o leitor conseguiria sentir o verdadeiro Eric caso eu apenas contasse o básico até então (leia até então como “até o ocorrido”): meu amigo.
Entretanto, a perplexidade de Eric não é algo plausível às entrelinhas. E apesar de sentir que ela se perderá ao longo da história, não se esqueça que ela existe.



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Conheci Eric Jones em um dia das coincidências. Quase todo dia é de coincidência, na verdade. Estranho, contraditório? Talvez não. São coisas pequenas, até bobas. Tais quais, ler a palavra “alegria” e segundos depois, minha mãe citar tal palavra, enquanto perambula pela casa.

A coincidência do dia em questão foi minha própria cabeça maquinando coisas aleatórias, e elas acontecerem. Enquanto andava na chuva em direção ao curso, imaginei que estamos todos em um gigantesco RPG, e alguém (nossas almas, nós mesmos) nos controla lá de cima. Isso teoricamente me daria o poder de descobrir o que está acontecendo daqui a alguns quarteirões, considerando que meu “ser controlador” pudesse dar uma espiadinha. Dessa maneira, nos vãos mais profundos do inexplicável da mente humana, senti que algo estava acontecendo, no caminho do curso.

Não demorou muito para eu virar a rua e me deparar com um pequeno aglomerado de pessoas ajudando um velhinho, sentado, na chuva. Passava claramente mal. Acredito que as pessoas que tentavam ajudá-lo só complicavam o processo. O intuito era tirá-lo da chuva, mas ele insistia em ficar ali. Pelas mãos que muitas vezes perseguiam o peito, imaginei que estivesse enfartando. Senti extrema pena, a ponto de parar do outro lado na rua, tanto para me abrigar da chuva (a qual já encharcara meu corpo, meu cabelo, meu material), quanto para ver as próximas ocorrências. Não de certo modo para vê-lo sofrer, mas para pensar, de alguma forma, que ele iria melhorar. Só possuímos um coração, e em sua falha, a dor psicológica tende a ser tão ruim quanto a real.

A ambulância chegando, a chuva engrossando. Eu permaneci em frente à lanchonete. Não estava muito longe do curso, mas não estava atrasada também. Nem ao menos queria ir mais, considerando que havia ignorado a chuva e saído sem guarda-chuvas. Queria andar pela cidade, fria e chuvosa, dar voltas e me perder. Me perder, perder.

Dessa forma, observando o muito e o nada, vi Eric Jones. Apenas Eric, na verdade. Trata-se da segunda coincidência de meu dia. O sentimento, a palavra. A secura do C, o acento intrínseco no E. Eric. O nome surgiu do silêncio da camada mais externa da atmosfera, do barulho mais ensurdecedor da ambulância, da chuva, do tempo desacelerando os acontecimentos. Pude sentir o aroma do café, pude sentir até mesmo o que não havia percebido antes: o cheiro da chuva. O aroma mais nostálgico de todos. Um aroma o qual acreditava só ser possível quando a chuva bate na grama e parece nunca parar.

Eric permanecia na chuva. Olhava o céu, do outro lado da rua, não muito longe da ambulância, do velhinho, do enfarto, das pessoas. E muito próximo da chuva. Chovia tanto que mal entendi como ele permanecia olhando para o céu, para as construções. Pouco entendi a partir do momento em que o vi. Não pareci entorpecida pelo fato de seu nome ter apenas surgido. Acontecera antes já, entretanto nunca acertara-os de fato. Imaginei que nunca descobria se o acertara ou não. Eric estava há uma travessia de distância, mas parecia estar em outro mundo, em outra realidade, quase impossível de tocar.

Vestia uma blusa azul e calças pretas. As pessoas não paravam para olhá-lo. Seu cabelo era provavelmente castanho claro, ou escuro. A chuva o tornara negro. Eu poderia passar os próximos anos descrevendo a ternura de seus traços, de sua pele, sua singularidade, entretanto isso pouco formava Eric. Ele era como explosões solares: aconteciam a cada segundo, mas pouco as pessoas notavam.

– Senhora? – uma mulher chamou minha atenção. A reconheci como sendo uma das garçonetes. – deixarei o cardápio aqui, certo?

Percebi até então que havia deixado minha bolsa em cima das mesas da calçada, cobertas. Devido à forte chuva, ninguém ficava ali, preferindo ficar dentro da lanchonete em si. Desfiz-me do topor e sentei-me na cadeira molhada.

Enquanto a chuva parecia diminuir, observei rapidamente o cardápio, virando algumas vezes para olhar Eric. Algo de vazio tomava meu peito quando não o olhava. Senti um desconforto e tentei apenas aceitar, ou esquecer. Logo sairia daqui.

Levantei-me, olhando uma última e dolorosa vez para a pessoa que tanto deixou-se a observar. Não olhava mais para o alto, mas sim para o outro lado da rua. Como se fosse embora. E talvez fosse.

Entrei na lanchonete, dirigindo-me à uma das mesas mais do canto, de quatro lugares. Começara a ter frio na rua, e apesar de não estar com fome, pedi um café.

No aguardo de meu café, pouco pensei. Pouco senti. Não se tratava da primeira vez em que eu conseguia alguma conexão estranha com alguém e a perdia por desencontros da vida. Por não saber o que dizer, não saber como explicar. Não saber, apenas sentir, e expressar sentimentos não trata-se de uma tarefa fácil.

À medida que a garçonete se direcionava à minha mesa, senti novamente sua presença na mesma direção. Tive medo e olhar, mas já sabia que se tratava de Eric. Pediu licença e sentou-se em minha mesa, um pouco afastado de mim, mas ainda sim na mesmíssima mesa, permitindo só então que a garçonete me servisse e virasse o rosto para ele, entregando o cardápio.

Eric ergueu a mão e pude ouvir sua voz pela primeira vez. Claro, um tom acima de meu coração, nesse momento esmagando minhas costelas.

– A conta, por favor.

Nesse instante, permanecia observando o café e sentindo seu calor em meu rosto, entretanto a palavra ‘conta’ despertou meus sentidos. Olhei a garçonete e sua confusão refletiu em meu rosto. Quase que instintivamente olhei para Eric, o qual olhava a garçonete, virando seus olhos rapidamente para mim, logo voltando para a garçonete.

– E um café também. – concluiu.

A garçonete deu-se por convencida e saiu, deixando toda sua confusão escorrer em minha alma. Já não conseguia não fingir constrangimento.

Eric vestira uma jaqueta de couro fina, marrom. Conseguia vê-la, sem muitos detalhes, pelo canto do olho. Minhas mãos tremiam um pouco, portanto não arrisquei tomar o café por um bom tempo. Minha cabeça latejava na idéia de ele ter percebido que fiquei encarando-o por uns dois minutos na rua. Dois longuíssimos minutos.

Ele começa certa agitação, talvez mexesse em uma bolsa, mochila. Arrisquei olhar um minuto e seus olhos caíram sobre os meus enquanto ele empurrava algo sobre a mesa. Um livro.

Meu livro, claro. Só que irreconhecível. A pobre ‘A Majestade do Xingu” estava encharcada. Não havia acabado de ler a história do amigo de Noel Nutels, mas ali estava ela. Acabada.

Devo ter feito a expressão mais triste da história, porque Eric nem sequer pediu uma confirmação. Toquei o livro e abri suas paginas, molhadas ainda. Algumas mancharam. Secaria, mas as manchas permaneceriam, marcando o livro para sempre.

– Caiu ali na rua, nas mesinhas. – ele disse.

Mal conseguia proferir uma palavra sequer, parecia um engasgo de emoções.

– Era meu livro preferido – consegui dizer.

– Desculpe. Eu vi quando caiu, poderia ter avisado.

Não conseguia olhá-lo. Não estava chateada. No fundo, não sabia o que sentir, parecia uma batalha de emoções para ver qual prevalece, qual falará por si. O fato de Eric ter visto meu livro cair implica que ele estava olhando em minha direção. Refletindo um pouco, não cheguei a perceber quando coloquei minha mochila em cima da mesa. Talvez tenha sido nesse momento, no momento em que minha mente enganou-me, fazendo meu corpo trabalhar involuntariamente enquanto meu coração permaneceu observando ele. Apesar disso, não lembro de ter sentido seu olhar.

– Tudo bem. Obrigada.

Atrevi-me a olhar Eric nesse momento, e ele me observava. Tinha olhos castanhos claros, de uma beleza interna assustadora. Ali formavam-se as explosões, super-novas, mundos, o inexplicável das conexões. O velhinho já havia ido embora há muito tempo, mas nada parecia ter mudado. O tempo parecia ter desacelerado. E talvez tivesse mesmo.

Apesar de parecer estranho, saímos de lá amigos. Costumo deixar meu número nos livros, caso perca-os, o qual Eric pegou. Conversamos um pouco sobre literatura, sobre chuva, sobre cafés. Não perguntei o motivo de ele ter ficado tanto tempo na chuva, ou quando me percebeu observando-o, nem no dia, nem nos outros. Ligou-me alguns dias depois. Encontramos alguns gostos mútuos incomuns, tais quais jardinagem. Talvez não devesse definir isso exatamente como jardinagem, mas gosto de plantas, de cuidar delas. Ele foi em minha casa e ficou admirado com a quantidade de cactos. Meus pais chegaram a conhecê-lo e minha mãe manteve uma forte relação com ele. Não cozinhava bem, mas adorava comer. Gostava de praia, apesar de ter sua pele translúcida. Fui a sua casa algumas vezes. Tinha um irmão, Vitor, o qual pouco freqüentava a casa pois morava perto da faculdade. A partir do momento que Eric entrou em minha vida, montei um álbum mental de todos seus momentos. O primeiro sorriso. A primeira vez que fomos em uma festa e perguntaram trinta e sete vezes se éramos um casal. Às vezes em que ele percebera meus ciúmes. Apesar disso, nunca me aproximei demais de Eric. Não por medo, mas por gostar das coisas como estavam. Também não gostava da idéia de que o namoro torna tudo mais extremo: quando acaba, a amizade torna-se algo complicado e diferente dentro de nós. Não passamos a ver a pessoa da mesma forma que antes, mesmo se a amizade prevalecer. Dessa forma, a amizade de Eric tornou-se algo muito mais importante que qualquer namoro que já tive. Algumas de minhas amigas chegaram a ter certa paixonite por ele, mas acabou por dar na mesma, não porque tínhamos um acordo, mas simplesmente por ele não querer. E não é algo que eu saiba por perguntar, e sim por perceber. Não conversava sobre quaisquer coisas desse gênero com Eric. Paramos de freqüentar tantas festas a partir do momento que a insistência em nosso suposto namoro passou dos limites.

Eric era um ano mais velho, com 18. Trabalhava em uma floricultura no centro de nossa cidade, a qual eu parara de freqüentar por justamente não gostar da garota a qual Eric substituiu. Não estudava mais, mas pretendia cursar Oceanografia, em um momento futuro. E apesar de tantas qualidades já expostas, Eric era comum. Tinha um sonho, um gato, um hobbie, alguns amigos. Não se irritava com freqüência, mas a partir da segunda vez não passei a me sentir tão mal. Pedia desculpas. Chateava-se quando não aparecia na floricultura por muito tempo. Dormia no sofá da minha casa, ou na minha cama, quando eu demorava para chegar do curso. Pegava chuva e chegava encharcado. Acordava no meio da noite para ler, ou ficar parado, olhando a janela. Por muito tempo. Percebi que à medida que Eric aparecia em minha vida, as pessoas o notavam, e isso o incomodava. Logo desistiam, assim como eu desistia delas, a partir do momento em que questionavam nossa amizade, ou o famoso “por que ele não conversa com a gente?”.

Um ano e meio passou desde que Eric entrou em minha vida. Uma das últimas vezes que o vi irritado, tratava-se de uma das ultimas vezes em que via minha própria casa.


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Notas finais do capítulo

Aceito comentários e correções.