A Guardiã do Sol escrita por Paladina


Capítulo 6
Desvantagem — Parte II


Notas iniciais do capítulo

Espero que vocês tenham MUITA imaginação para ler esse capítulo, pois será necessário. Não costumo escrever cenas de batalha, e quando o faço, não sei se faço bem... Então, peço que vocês fiquem de olho para me corrigirem e darem dicas. Grata desde já, cambada!



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Cerca de quase doze mil homens partiram do acampamento, sedentos pelo suor da batalha. O sol que antes iluminava agora era escondido por várias nuvens cinzentas. Chovia e trovejava, mas isto não abalava os guerreiros. Os passos uniformes e pesados ecoavam pela ponte, avisando ao outro lado que estavam prontos para batalhar, e morrer em campo se necessário.

A travessia da ponte fora tranquila, dando-os acesso ao outro vale. O príncipe Feril estava montado em seu cavalo negro, com Montanha em sua esquerda e Rowan a sua direita. Ambas as Guardiãs seguiam logo atrás do trio. O príncipe ergueu a mão, gesticulando para que seu exército parasse, e o som da marcha cessou. Os pingos de chuva ocuparam todo o silêncio.

— Vejam. — Apontou o príncipe para o horizonte enevoado. Era possivel enxergar o início de um pequeno vilarejo. — Aquele é o nosso primeiro objetivo. Esmagaremos avassaladoramente qualquer um que esteja lá. Incluindo civis.

— Mas aldeões, meu príncipe? — Exclamou Montanha, um tanto quanto assustado. O velho era amante da guerra, mas não da injustiça. Bufou. — Isto é um exagero, senhor.

— Eles tinham todo o tempo do mundo para mudar-se, mas preferiram permanecer com os traidores. — Afirmou Feril, com um semblante de ira e os olhos faíscando ódio. Montanha nunca o vira assim antes, mas sabia que aquela determinação não os levaria ao fracasso tão cedo. — Este será o nosso aviso.

— Ao seu sinal. — Disse Rowan, erguendo uma flecha ao céu.

Os cabelos ruivos do príncipe estavam presos em um rabo de cavalo, mas alguns fiapos colaram em sua testa devido a chuva. Os olhos ciano pareciam agora ter uma cor fosca, sem vida, dominada por algum sentimento terrivelmente assassino. Feril virou o rosto por cima do ombro, encarando todo o seu exército. Desembainhou a espada.

— AGORA! — Gritou, e Rowan atirou a flecha, dando sinal para o início da batalha.

Enquanto cavalgavam e corriam em direção ao vilarejo, dando gritos de guerra estarrecentes, Sange percebeu um movimento estranho por entre as casas do vilarejo que cada vez mais se aproximava. Infelizmente, enquanto cavalgava em seu malhado, nada podia fazer. Semicerrou os olhos, tentando enxergar melhor, e vira algo que não era humano, mas possuía forma humanóide. Aquele ser escondeu-se em uma casa. O exército finalmente adentrou o vilarejo. Não havia uma alma viva lamentando ou implorando por sua vida nas ruas. A chuva diminuiu.

— Vazio. — Disse o príncipe, liderando as tropas da frente, estranhando apenas a chuva dominar o local. Olhou para os lados, e continuou adentrando o vilarejo. — Evacuaram o local?

O vilarejo estava estranhamente desabitado, sem ninguém andando nas ruas, sem estabelecimentos de lamparinas acesas, sem nada além do vazio. Sange estremeceu.

— PRÍNCIPE! PRECISAMOS SAIR DAQUI! — Gritou Sange, em desespero.

A chuva parou. Tudo ocorreu rápido demais. Quando o principe virou-se para a Guardiã, as portas do vilarejo foram escancaradas, e de dentro das casas e lojas saíram centenas de monstruosos e gigantescos orcs. As criaturas dentuças, esverdeadas e trajando armaduras incompletas atacaram o exército que estava despreparado para aquela investida. Em poucos segundos, já haviam derrubado mais de vinte homens.

— ATENÇÃO, HOMENS! — Gritou o príncipe. — ATAQUEM NOSSOS INIMIGOS!

O exército que estava sendo atacado se recompôs e contraacatou. Os orcs estavam em muita menor quantidade, reparou Sange, mas lutavam como verdadeiros demônios. Pareciam não ter medo da morte, e a cada golpe que recebiam ficavam mais e mais fortes. O Reinado atacava, mas os orcs revidavam com mais brutalidade. Esta era a grande arma de Ventobravo; Criaturas de fora do continente, algo desumano e muito mais mortífero. Via-se nos olhos dos orcs o amor por batalha.

A Guardiã do Sol golpeava os orcs com Alvorada, desferindo de cima do cavalo cortes poderosos e flamejantes. Em sua contagem, havia abatido cinco inimigos. Quando estava prestes a abater o sexto, um orc investiu contra sua montaria, derrubando-a no chão. Sange rolou pelo campo de batalha, sujando-se de lama e ralando as extremidades do corpo. A armadura pesada impediu-a de se ferir mais gravemente. Do chão, avistou seus outros companheiros.

Montanha enfrentava três orcs ao mesmo tempo, com um brutal sorriso dourado na face. Os grandões tinham dificuldade em pará-lo, por ser baixinho e extremamente forte. Não muito longe, Rowan batalhava utilizando um par de adagas. Tinha uma agilidade quase divina, e sua destreza compensava qualquer falta de resistência que pudesse ter. Raven e Feril estavam um pouco mais afastados, ambos dando apoio um ao outro. Não avistou Cyana.

— UAAARGH! — Gritou um orc, indo golpear Sange com uma maça. A Guardiã do Sol rolou para o lado, esquivando-se e levantando sua espada de duas mãos com dificuldade.

— Vocês são bons. — Disse, enquanto dois orcs vinham em sua direção. Podiam ser muito menos que seu exército, mas surgiam de todos os cantos como vírus.

O da marreta tentou golpeá-la, mas foi aparado por Alvorada. O segundo, por sua vez, avançou contra ela com uma lança e espetou-a no antebraço. O corte foi doloroso o bastante para distraí-la, e o primeiro orc deu um novo golpe com a maça, atingindo-a em cheio no peito. Foi jogada para trás, caindo de costas para o chão. Alvorada caiu um pouco distante de seu alcance. Os orcs correram em sua direção, indo finalizá-la. Em sua posição atual, não demoraria muito para, de fato, ser morta.

— Merda. — Sussurrou para si mesma, enquanto se levantava do chão. Sua armadura parecia, no mínimo, ser duas vezes mais pesada do que o normal. Seu antebraço sangrava com um corte profundo, e sua visão estava um pouco turva. Os orcs tentaram uma investida para matá-la de vez.

O da maça mirava sua cabeça, enquanto o da lança seu pescoço. Sange olhou para o céu, e o sol iluminou sua face. A mesma luz que a banhou no dia de sua excecução descera do céu recém-chuvoso, flagelando os dois inimigos que ameaçavam sua vida e os que batalhavam contra os seus adversários. Sentiu-se renovada, e conseguiu levantar do chão sem dificuldades. O príncipe lançou-a um olhar de admiração, mas que não durou muito tempo, pois teve de se ocupar com outro inimigo.

Os olhos afiados de Sange correram pelo vilarejo, observando as outras partes da batalha. Mesmo que estivesse levando o melhor onde estava, os outros soldados encontravam-se na pior, cercados por uma concentração de orcs, e estes derrotavam-os com uma facilidade absurda. De quase doze mil homens, três mil estavam mortos ou inutilizados. Para cada orc morto, quatro soldados faleciam. A Guardiã do Sol pegou sua espada do chão e começou a caminhar em direção à concentração, e no meio do tumulto, avistou Cyana batalhando.

A Guardiã da Lua parecia ter o vento nos pés e a calmaria das águas nas mãos. A espada bastarda que possuia beijava seus inimigos com uma lancinante fúria, derrotando-os com não mais do que um golpe. Seus movimentos eram suaves, porém fatais. Aquele estilo de luta, belo de se ver e amedrontador de se enfrentar, chamava-se Dança de Espadas. A Guardiã do Sol estranhou; Aquele era um estilo falecido, inutilizado pelos povos atuais devido sua complexidade e a falta de mestres que dominassem a arte.

Um orc golpeou-a com as costas do machado, lançando-a para o lado. Sange ficou em posição de batalha, e Alvorada flamejou. A criatura sorria diabolicamente, avançando para tentar parti-la em dois, golpeando de cima para baixo. Sange esquivou para o lado, girou o corpo e tentou decapitar seu adversário, porém, o mesmo soltou sua arma para segurar a lâmina de sua espada com as mãos. Dentre as chamas da espada de Sange, fumaça subiu aos céus com um terrível cheiro de queimado. Seu inimigo continuou sorrindo, sem demonstrar dor alguma, mesmo com sua mão claramente sendo queimada. A Guardiã assustou-se. Com esta leve abertura, o orc deu-lhe uma cabeçada que a lançou no chão e amassou seu elmo.

— Mulher... Lutar... Bom. — Disse o adversário cheio de sotaque órquico. Seu sorriso permanecia na face, enquanto tomava novamente o machado que havia deixado cair. Do chão, Sange percebeu que ele não era um orc comum. Pelo menos três cabeças maior do que a maioria, e muito mais musculoso, aquele orc não utilizava armadura alguma, apenas uma tanguinha e adornos de ossos e cordas rústicas. Provavelmente, era algum tipo de soldado especializado em combate corpo-a-corpo, extremamente mortífero e sedendo por sangue e virgens. Seu corpo esverdeado era peludo e suas veias saltavam para fora, demonstrando toda a sua adrenalina.

— Obrigada, eu acho. — Respondeu Sange, enquanto se arrastava para trás. Sentiu uma dor focalizada na testa, e justamente do local onde o elmo havia sido amassado escorreu uma linha de sangue, molhando-lhe a face. O orc lambeu os beiços.

O guerreiro desferiu um poderoso chute contra Sange, que quase sem defesas, teve que largar novamente a espada para aparar o ataque. Uniu as mãos em frente ao rosto e deixou-se receber o golpe, rolando para trás. Tentou se levantar, com sangue escorrendo de sua boca, quando o orc atacou-a com o machado, e teve de se jogar para o lado para não ser atingida no crânio. Parte de sua armadura desprendeu-se e alguns estilhaços penetraram sua pele. Sentiu o ombro formigar. A cabeça agora latejava.

— Mim... Vencer... Mulher! — Berrou o orc, erguendo o machado acima da cabeça para outro golpe de cima para baixo. Antes que pudesse completar a ação, Montanha pulou em seu pescoço, enforcando-o com o cabo de sua arma.

— MIM SER O VERDADEIRO GUERREIRO SUPREMO! — Gritou Montanha, enquanto mordia a orelha do orc de uma maneira nada sedutora. O inimigo berrou e levou a mão queimada as costas, tentando tirá-lo dali. — GUARDIÃ, ACABE COM ELE!

Sange fez um pequeno esforço e se ergueu do chão. Sua espada estava longe, mas não faria disto um problema. Não apenas de armas se faz um herói, disse seu pai uma vez. Cerrou seu punho direito, preparando um soco.

— SEU ADVERSÁRIO SOU EU! — Gritou, correndo em direção ao orc, que estava distraído com o velho Montanha. Sabia que um único soco não bastaria para derrotar aquele incrível inimigo, porem, algo lhe dizia que o sol proporcionaria sua vitória. Sentiu o sangue aquecer enquanto gritava. O orc, com uma cotovelada, livrou-se de Montanha e virou-se novamente para ela, mas era tarde demais. A Guardiã, com toda a adrenalina de seu corpo, desferiu um potente soco na barriga do orc que, ao atingí-lo, fez com que todo o seu tronco explodisse em uma luz dourada. As vísceras e entranhas de seu inimigo saltaram para fora do corpo do mesmo, banhando Sange e Montanha com um sangue meio roxo. O velho capitão de Moeda Branca sorriu, mostrando-lhe a falta de um dos dentes de ouro.

— Venha. — Estendeu a mão para o velho. — Estamos no meio de uma guerra e há muito o que enfrentar.

Montanha assentiu com a cabeça, aceitando a mão da Guardiã para se erguer. Sange caminhou até sua espada, esquivando-se de alguns cadáveres aliados e inimigos que jaziam no chão. Empunhou Alvorada novamente, bastando tocá-la para que sua lâmina recebesse as chamas. Estava com a testa ensanguentada, o ombro ferido e vários ralados pelo corpo, mas em comparação a outros soldados estava em excelente forma. Procurou por Cyana em meio ao caos da guerra, mas acabou por encontrar o príncipe cercado por cinco orcs e o filho de Chato-baixo caído ao chão, com a garganta aberta. Da maneira em que se encontrava, não demoraria muito tempo até que Feril fosse atingido e morresse. Sange segurou o punho da espada com mais força, correndo rapidamente em direção aos cinco orcs para auxilar seu príncipe.

Enquanto corria, um orc jogou-se em sua direção com uma ombrada, caindo ambos em meio à lama que se tornou a terra do vilarejo. Tentou levantar a cabeça e se arrastar para ver o estado de Feril, priorizando o príncipe do que seu próprio inimigo, mas o orc montou em cima de suas costas e segurou seus cabelos castanhos, começando a bater sua cabeça contra o chão, quebrando seu nariz e fazendo com que o elmo amassasse cada vez mais. Foram tantas batidas que pensou que desmaiaria, quando repentinamente escutou um grito de ódio. Tudo escureceu, como se a noite tivesse dominado todo o ambiente. Um estrondo fez com que o orc saísse de cima de si, e finalmente conseguiu ver o que estava acontecendo.

O céu estava todo escuro, e dele chovia gigantescas bolas de fogo, como se o firmamento estivesse caindo na terra e todas as estrelas desabassem. Passou as costas das mãos nos olhos, tirando a lama e o sangue. O príncipe Feril estava em pé a sua frente, estendendo a mão. Tinha ambos os olhos sem íris e pupila, completamente brancos. Estava tão banhado de sangue quanto ela, porém, o sangue que havia em seu corpo não era seu. Ao se levantar, Sange notou que as bolas de fogo atingiam apenas os locais onde havia concentração de orcs, mas por algumas vezes atingia também os soldados do Reinado.

— Meu príncipe? Você está...? — Não estava compreendendo muito bem o que ocorria ao seu redor, e todo o seu corpo implorava por descanso. O príncipe emitia uma poderosa aura.

— Posso sentir as estrelas me chamarem, Guardiã do Sol. — Respondeu. — Posso sentir agora o que é ser um Guardião.

Sange arqueou as sobrancelhas. Já havia um Guardião das Estrelas, como o príncipe poderia ter se tornado outro? O sangue de seu nariz escorreu para sua boca, fazendo-a sentir novamente o gosto de ferro. O sabor lhe era incômodo, mas foi o que a acordou para o que estava acontecendo.

— Espere... — Pediu. O príncip virou seu rosto para ela. — Se você acaba de ser convocado pelas estrelas... Isso significa que o Joan é...

—... — O príncipe abaixou a cabeça, assumindo uma expressão triste. Sange notou que ele estava com uma mistura de sentimentos oblíquos; Perda, ódio, medo e esperança. —... O ex-general de meu pai, Joan Fanin... É falso. Ele não é um verdadeiro Guardião.

— Você sempre soube disto? — Indagou Sange, sem poder segurá-lo pelos ombros. Sua espada era pesada demais para carregar com apenas uma mão.

— Conversaremos sobre isto depois... Temos uma guerra para vencer. — Falou o príncipe, nitidamente determinado. Sange assentiu com a cabeça, e ambos partiram de volta para a batalha.

A medida com que a Guardiã do Sol e o príncipe se aproximavam, o centro da batalha se tornava cada vez mais nítido. Não mais do que quatro mil aliados e quatro mil inimigos em meio as ruas do vilarejo que pegavam fogo devido ao incêndio causado pelos meteoros de Feril. Cyana enfrentava solitária um grupo de orcs, enquanto Montanha carregava o corpo desmaiado de Rowan para longe dos inimigos. Alguns soldados do Reinado fugiam para longe, temendo por suas vidas, ao mesmo tempo em que outros se tornavam mais determinados a cada investida. O príncipe separou-se de Sange para ir auxiliar seu capitão, e a Guardiã decidiu ir ajudar à amiga. Cyana estava com um braço quebrado que pendia ao lado do corpo, com a maior parte da armadura destruída e um ferimento profundo no pescoço. Seus cabelos platinados estavam sujos de lama e sangue.

— AAAAH! — Gritou Sange, correndo em direção aos orcs que cercavam a filha do inverno. Dois dos cinco virou-se para trás, e a Guardiã do Sol desferiu um corte no ar, fazendo com que suas chamas se espalhassem nos corpos dos dois inimigos. Enquanto eles se debatiam, tentando apagar o fogo, Sange partiu para um terceiro, fincando Alvorada em seu peito. O orc rugiu de dor, desfalecendo.

Cyana aproveitou-se desta pequena distração causada pela Guardiã do Sol para invocar os poderes da lua, e os dois inimigos restantes desabaram no chão, com gravidade quase triplicada abaixo de seus pés. Caiu ajoelhada de cansaço, apoiando a cabeça no punho da espada bastarda. Ofegava desgastada pela batalha. Utilizara tanto de suas habilidades que seu corpo começou a fraquejar, negando-se a obedecer a seus comandos e executar os movimentos necessários para continuar lutando. Um braço envolveu-a, a erguendo do chão como se fosse uma boneca de pano. Não precisava olhar para saber de quem se tratava, pois sua presença era o bastante para ser identificada.

— Sange. — Chamou Cyana, com tom frágil. — Deixe-me aqui, precisamos continuar lutando.

— Eu lutarei, mas a manterei em segurança. Tenho que proteger a todos! — Afirmou Sange, pegando-a no colo. Ao redor, o solo do vilarejo estava decorado de corpos de orcs e humanos, preenchendo o ar com um cheiro de morte. Qualquer um que olhasse para aquela cena se preencheria de escuridão, mas Sange se manteve determinada e clara de seus objetivos. Agora Cyana entendia por que o sol a escolhera.

— Pare de bancar a altruísta. — Pediu Cyana, fechando os olhos, confiando-se a ela. — Isto não vai torná-la uma lenda.

— É assim que você agradece a pessoa que te salva? — Perguntou retoricamente a Guardiã do Sol, enquanto a levava para fora do vilarejo incendiado. — Fora que eu já sou uma lenda. Nunca ouviu falar sobre a-lendária-Guardiã-não-capitana?

Cyana não respondeu, e enquanto as duas se locomoviam, a voz do príncipe Feril foi ouvida, ressoante como um trovão.

— HOMENS! — Exclamou. — RECUEM! RECUEM!

Não apenas o que sobrou do exército do Reinado, como também os orcs começaram a recuar. Os grandes humanóides verdes corriam para um lado, e os soldados do Reinado para o lado oposto, ultrapassando Sange em sua retirada. Os três mil homens que sobraram escaparam do vilarejo, marchando de volta para o acampamento. Não tiveram como resgatar os corpos de seus aliados falecidos, deixando para trás os heróis mortos.

Quando finalmente deixaram o vilarejo e sua fumaça para trás, retornando para o acampamento, Feril ordenou que seu exército se organizasse para que pudesse analisar a situação. Estremeceu. Havia ali menos da metade, e todos possuíam expressões destruídas e ferimentos que não os Possibilitariam de continuar na guerra. Ao menos, o segundo grupo, composto de arqueiros e o resto da cavalaria, finalmente haviam chegado, somando nove mil homens. Não precisariam retornar para a Capital e buscar reforços, mas com aquela quantia não se tinha a vitória garantida. Sange arrastou-se para perto dele, carregando Alvorada nas costas e Cyana nos braços.

— Precisamos conversar sobre seu chamado como Guardião, Feril. — Fez uma pausa, cansada. — E também sobre o incêndio naquele vilarejo. — Abaixou a cabeça. — Eles... Tiveram o mesmo fim que Véu da Noiva.

O príncipe a olhou com pesar.

— Não é tempo para lamentações. Tivemos um empate, apesar de tudo.

— A que preço, meu príncipe? — Perguntou Sange. — A que preço?

Feril desviou-se dali, começando a se afastar de todos, indo em direção a sua própria cabana. Sentiu uma extrema vontade de chorar, e ergueu o rosto para os céus tentando impedir as lágrimas. O céu tonalizava um vermelho rubro, enquanto as nuvens assumiam uma cor alaranjada, completamente bela, e totalmente oposta à batalha ocorrida.

XxX

Cyana acordou sem sentir o braço esquerdo, e com todos os músculos reclamando de dor, recusando-se a obedecê-la. Estava um breu, mas sua visão era naturalmente adaptada para o escuro. A Guardiã da Lua olhou ao redor, notando que sua armadura e roupas estavam em um canto da tenda, assim como Sange, que enfaixava a própria coxa de costas para si, sentada em um banquinho de madeira perto da porta da cabana.

— Sange... — Chamou. A Guardiã do Sol virou-se para ela, com uma expressão aliviada. Deixou a faixa da perna incompleta e se aproximou.

— Que bom que acordou. O medico que cuidou de você disse que você poderia não acordar. Perdeu muito sangue. — Suspirou. — Fiquei preocupada. Eu me culparia para sempre se você morresse. Como estão as faixas no seu corpo?

— Médico? Faixas? — Forçou-se a se sentar e olhou para seu próprio corpo, notando que estaria nua se não fosse pelas faixas que escondiam todo o seu tronco, tampando seus ferimentos.

— O segundo grupo, aquele com os arqueiros e o resto da cavalaria... Chegaram. Haviam médicos com eles. — Deu de ombros. — Um pouco tarde, mas chegaram. Como está se sentindo?

— Como se um orc tivesse arrancado uma parte do meu pescoço. — Respondeu, mexendo nos cabelos.

— Curioso. — Disse Sange, abrindo um sorriso brincalhão. — Foi justamente o que aconteceu, de acordo com o diagnóstico do médico.

A piada sem graça fez com que o ambiente ficasse silenciosamente incômodo. A Guardiã do Sol sentiu-se culpada, e caminhou até uma mesinha, acendendo uma vela, iluminando um pouco o local. Ambas estavam extremamente feridas, com hematomas, curativos, faixas e alguns inchaços. Evitaram trocar olhares.

— Por que te chamam de filha do inverno? — Resolveu puxar assunto. Cyana manteve o olhar distante, não querendo ter de responder aquilo. — Cyana, somos companheiras de batalha. Para que me esconder seu passado?

O silêncio continuou. A Guardiã do Sol sentou-se aos pés da Guardiã da Lua, olhando para um ponto neutro da cabana. Continuou a enfaixar a coxa.

— Nesse caso, eu começo, tudo bem? — Não esperou uma resposta. — Sou filha de Vinyard, o famoso herói do Reinado, aquele que viajou para o continente proibido e auxiliou o Primeiro Rei. Ele... Era um cara legal. Foi um bom pai, bom marido, bom herói... Mas péssimo jogador. Quando abandonou sua carreira ele se afundou em dívidas, sabia? Tudo por conta de jogos de azar. — Abriu um sorriso torto. — Foi morto por um grupo de capitanos do Mercado Negro.

— Não quero saber sobre seu passado, Sange. — Afirmou Cyana, com uma voz fria.

— Espere, prometo que fica legal. — Pediu a Guardiã. — Depois da morte dele, minha família ficou sem recursos financeiros... Sabe como é, ele era o provedor da casa. Minha mãe tornou-se prostituta após seu falecimento e morrera nas mãos de um dos clientes não muito tempo depois. — O silêncio perdurou por um bom tempo. A mão da filha do inverno pousou no ombro de Sange. — Meu irmão e eu tivemos de nos virar. Ele se tornou mercenário, começou a ter suas próprias aventuras... E eu roubava pão. O problema foi... Foi... — Respirou profundamente. — O problema foi depois disto. Você conhece a história, não conhece? Um grupo de dragões... Não... Uma manada de bestas aladas atacou Véu da Noiva sem motivo algum, fazendo de seus moradores brasas e suas construções ruínas. Boatos rodaram todo o Reinado dizendo que era o continente proibido enviando mensageiros amaldiçoando a existência de meu pai. Culpam seu nome pelo ocorrido, mesmo que isso não faça sentido prévio.

Podiam ouvir os passos dos soldados ao lado de fora da tenda.

— Eu e meu irmão fomos um dos poucos sobreviventes, e tomamos rumos diferentes. — Continuou a contar. — Ele continuou sendo mercenário e eu resolvi me aventurar pelo comércio. O resto você já sabe... Virei Guardiã... Vim parar numa guerra...

O silêncio voltou a dominar o local, e desta vez, quem o quebrou foi a filha do inverno.

— Sange, eu não sou humana. — Afirmou Cyana, sem mais delongas. A Guardiã do Sol virou a cabeça em espanto, olhando-a com uma expressão de dúvida, sem hesitar demonstrar o susto ao ouvir aquelas palavras. —... Não completamente.

— Acho que você tem muito que explicar.

— Eu sou bast--...

Uma explosão interrompeu-a, vinda de não muito longe no acampamento. Sange se levantou do chão, apressadamente, vestindo a bainha de Alvorada. Ao lado de fora, barulhos de risadas infames e gritos de angústia podiam ser ouvidos.

— Fique aqui, irei ver o que está acontecendo. — Pediu a Guardiã do Sol.

— Espere, irei com você.

— Você não pode, olhe sua situação!

— Cale a boca! Olhe para si mesma!

Outra explosão abalou a estrutura da tenda, tirando a atenção de ambas. Sange, dada por vencida, entregou a Cyana sua espada bastarda e auxiliou-a a se levantar. Ao saírem da tenda, seus corações pararam de bater por um instante.

Estavam sendo atacados.


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Notas finais do capítulo

Obrigada por ler, não esqueça de comentar, e até o próximo capítulo.

P.S: Se você for um leitor fantasma preguiçoso ou apenas peculiar, não precisa comentar algo complicado, mas ao menos coloque um "legal, continue". É importante para mim receber um comentário de meus leitores, mesmo que tão simples. :)



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