A cidade das abelhas escrita por Clarice


Capítulo 42
A Fera, Dentre Feras


Notas iniciais do capítulo

Últimos capítulos, pessoal!



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A FERA, DENTRE FERAS

A primeira coisa que conseguia se lembrar claramente era de sentir um vazio muito grande dentro do peito. Um vazio tão grande e aterrador... Mas de alguma forma suas lágrimas estavam presas, não conseguia chorar. E a tudo que tocava, sentia o cheiro, parecia-lhe novo. Como se visse aquilo pela primeira vez. Erguia-se da terra, sentindo-se sujo. Com uma fome, um vazio dentro de si tão grande que se sentia totalmente oco. Como se seu corpo inteiro existisse apenas para comportar aquele vazio. Quando abrira os olhos, e vira o céu escurecendo rapidamente, tinha lágrimas nos olhos. Estavam cheios, transbordando. Sentia o cheiro do ar, sentia-o entrar em seu corpo, percorrê-lo, fazer parte dele. Sabia que estava todo envolvido em terra e grama. As estrelas no céu pareciam pequenos focos de chama azul, tão distante que não aquecia, mas suficientemente perto para dar algum consolo de que o mundo inteiro não era só escuridão. Tentava se erguer. Meu corpo parece grande demais. Era difícil se mover. Estava pesado. Começava a se debater no meio daquele mato tentando sair dali. Um desespero muito grande o tomou inteiro, precisava sair imediatamente.

Depois que o corpo inteiro estava livre, sentou-se. Cansado, principiava a suar. Tentava acalmar as batidas do coração ao mesmo tempo em que sentia sede. Deuses, nunca senti tanta sede assim. Preciso de água agora. Foi então que percebeu que não sabia onde estava. Não tinha a mínima ideia. Só conseguia ver umas montanhas ao longe, e para o outro lado o vazio. Mas estava próximo a uma estrada. Que seguia para ambos os lados. Tinha de escolher qual caminho tomar. Mas não sabia o que tinha de fazer. Era como se estivesse se esquecendo de algo muito importante, de algo supremo em sua vida. Era como se aquele buraco fosse aumentar de hora em hora, até ele sucumbir, explodi-lo de dentro para fora. Qual era a razão de estar ali? De estar vivo? De ele próprio existir? Essas perguntas lhe davam dor de cabeça e pior: faziam ele querer chorar muito. Mas muito mesmo, tanto que ficasse sem fôlego.

–Preciso me lembrar. –Disse de si para si.

A primeira vez em que ficou totalmente de pé teve uma sensação terrível de insegurança. Parecia que iria cair de toda aquela altura, e nunca mais conseguiria levantar. Andar, de repente, tornou-se um desafio de vida ou morte. Algo que deveria lhe afigurar tão comum. Ficou um tempo parado de pé. Para se sentir estável e então dar o primeiro passo. Esse foi totalmente cauteloso. Sua perna se movia devagar para frente, e então se firmava no chão, para a partir daí deslocar a outra perna. Depois do décimo passo, já estava andando mais naturalmente, o modo robótico de se mover não era mais tão necessário. Inspirou o ar para dentro de seus pulmões até enchê-los por completo, e então foi esvaziando vagarosamente. Olhou em torno de si, e para frente. Começou a andar mais rápido. Mais rápido, e mais rápido. Cada vez mais rápido. De repente uma ansiedade o mastigava inteiro, sem nunca engolir: sabia que precisava estar em outro lugar. Fazendo outra coisa. Uma coisa importante. Mas não tinha ideia do que poderia ser. Na verdade, não sabia nem quem ele próprio era, quem dirá o que tinha de fazer! Qual! Deuses me salvem! Pensava. Precisava desesperadamente saber.

Acabou por correr, corria, sentia o vento nas faces, as penas se movimentando exasperadas, a respiração entrecortada. E, no entanto, a estrada parecia infinita. Quanto mais corria, mais parecia ter de correr. Ia se cansando, e passava da corrida para as passadas rápidas. Das passadas rápidas ao caminhar apressado. Do caminhar apressado ao vagaroso andar de um exausto. E a sede crescia dentro dele, crescia fervorosamente. Sentia a boca seca, os olhos ressecados, a garganta arranhar. Parou e extenuado, caiu ao chão, desfalecido.

Depois de ter acordado, sentia gosto de terra na boca, e não sabia por quanto tempo dormira. Ou melhor, desmaiara. Os músculos doíam, mas ainda era noite. Então sabia que ficara desacordado durante umas horas, apenas. Ou o dia viera e se fora e ele continuara ali, caído? Não tinha modos de descobrir. A noite estava fresca, mas suas roupas úmidas de suor. Gelavam seu corpo. Eram uns trapos castigados pela terra, comidos. Reparava sua pele castigada também, talvez comida. Tinha uma coloração estranha, e essa era a primeira vez em que ele atentava para o fato. A pele estava acinzentada. Quis ver o próprio reflexo, novamente esbarrou na necessidade que a água lhe impingia. Desistiu de seguir aquela estrada para o infinito, e decidiu adentrar-se na mata. Tinha certeza de que um mato denso como aquele era úmido. Úmido e cheio de criaturas vivas. Não as temia, na verdade. Desviou-se do caminho, então.

Pôr-se de pé foi o mesmo sacrifício da primeira vez. Só que com o adendo de ele estar cansado, e dolorido. Não devia ter corrido tanto. Mas, como não correr, quando uma angústia tão tremenda o tomava? Como não correr se precisava estar em outro lugar, decidindo algo realmente importante? Agora um desânimo correu seu corpo do pé ao último fio de cabelo da cabeça. O que quer que tinha de fazer, não tinha feito. E provavelmente não se lembraria antes de ser tarde demais. Será tarde demais e eu não suportarei o peso dessa verdade. Como posso sentir isso e ainda não conseguir me lembrar? Sentia-se injustiçado. Injuriado consigo mesmo. Já estava no meio do mato.

Andava no meio das árvores buscando algum vestígio de água, alguma pista de que nas proximidades a encontraria. Depois de meia-hora pensou estar andando em círculos. Todas as árvores pareceram iguais, e não, ao mesmo tempo. Estava confuso e tonto, sentia que iria desmaiar de novo, quando ouviu o som de um córrego muito fino e distante. Achou os modos de correr novamente, e correu, correu, correu! Chegando lá, pulou na água, batia-lhe na cintura. Mergulhou, limpando a terra do corpo, bebeu a água, desgrudou os cabelos do suor. Seus pés nus e ardidos pareciam pisar em uma espécie de paraíso gelado. E então fechou os olhos e boiou, pensando na vida. Ou melhor, pensando no que não se recordava sobre a vida. E ia boiando. Sentia-se totalmente relaxado, sem se preocupar com nada terreno demais.

Sentiu dor na cabeça novamente. Mas uma dor tão sucinta e forte que ele abriu os olhos com força e firmou os pés no chão, estava muito assustado. Segurava o couro cabeludo com muita força tentando suprimir a dor inutilmente. Gritava e berrava. Deuses como está doendo! Era a dor mais forte que já sentira em toda a vida. Era uma dor fatal, sabia que não escaparia dela. É a dor da morte. E então visões confusas se passaram por seus olhos como memórias vívidas de um pesadelo o gosto de sangue na boca, a cabeça parecia ter sido esmagada por algo. A fraqueza absoluta em todos os membros, o cair desfalecido ao chão. Respirava entrecortado metido nessas sensações horrendas, levou a mão direita ao queixo. Havia uma marca ali embaixo. Alguém enfiou uma faca aqui. Foi o primeiro pensamento, e então arregalou os olhos muito assustado. Como estou vivo?

Olhou seu reflexo na água pela segunda vez. Aquele rosto jovem lhe era desconhecido. Aqueles cabelos prateados, os olhos azuis. Franzia a testa para si mesmo. O rosto tinha uma barba, e estava ressecado, tanto que parecia rachada a pele. Algumas feridas pelo corpo muito pequenas, como se insetos as tivessem feito. Não doíam, no entanto. Ele percebia que sua percepção não funcionava tanto. O tato, por vezes lhe enganava.

A dor de cabeça foi desaparecendo em rajadas, mas a memória sufocante agora parecia tatuada em sua mente. Sua corrente de pensamentos sempre passava por ela: eu estou morto, eu deveria estar morto, eu morri. E a assimilação daquilo era cruelmente difícil. Tinha-se certeza de que havia morrido, porque voltara? Tinha certeza de que voltara, ou era apenas um louco que achava que tinha morrido? Aquilo era um labirinto de conclusões imprecisas. Precisava fugir dele. Bebeu água até não aguentar mais e decidiu voltar para a estrada. Menos confuso sobre a direção e mais confuso sobre as ideias que tinha, seguiu para fora, novamente sentindo aquela ansiedade crescente lhe dominando as ações, fazendo com que ele corresse desesperado no meio do mato, desengonçado, sem temer tropeçar e cair duro ao chão. Chegou à estrada. Pela segunda vez sentiu a exaustão em cada músculo, respirar doía um pouco. Apoiou-se sobre os joelhos e tentou se acalmar.

–Qual direção? –Disse em voz alta, como se esperasse que alguém aparecesse do nada e lhe dissesse:

–Caro amigo, é para lá. –E apontasse seu caminho. Não era assim, ele tinha de escolher sozinho. Sozinho.

Escolher nunca antes fora tão difícil. Sentou-se ao chão sem se incomodar com a poeira da estrada entrando em seus pulmões. Ficou ali sentado contemplando a quietude. A ansiedade se fora. Queria tanto fazer a escolha certa! Era como se, sentado ali, esperasse um sinal dos deuses. De repente, ainda sentado, passou a sentir um tremor no chão. Um tremor crescendo vagarosamente. Seja lá o que for, está com pressa. Pareciam correr desesperados à procura de algo. Seria a primeira vez que se encontraria com alguém. É disso que eu preciso, de alguém. De qualquer alguém. Não precisa ser o certo, basta que exista. Aquela solidão o fazia se imaginar sozinho no universo. Flutuando. Talvez por isso o devaneio no rio. Talvez nada daquelas memórias tenham realmente acontecido.

Ficou logo de pé, preparado para o que se seguiria. Era impossível segurar o nervosismo, sentia já o estômago empertigar-se. Lá na linha do horizonte pareciam surgir um rio de monstros saltando e correndo. Mesmo que não os visse de perto sabia que eram monstros. Nenhum humano se movia daquela forma. Ninguém se movia daquela forma. Isso só fica mais estranho. Porque não me aparece simplesmente alguém comum? Alguém simples, a mais entediante pessoa do mundo, é o que eu quero agora. Alguém que não me faça questionar todos os meus sentidos. E os monstros continuavam vindo. De repente sentiu uma queimação no peito. No pulmão, era como se respirasse fogo, ou melhor, como se o ar em seus pulmões entrasse em combustão e ele o expelia em forma de grito, nunca soltara um grito tão exasperado e libertador antes. Não sabia quem era, ou o que estava sentindo, mas deuses, como é intenso. Uma febre! O corpo inteiro vibrava ensandecido. Os músculos enrijeciam e se tornavam languidos em fração de segundo. Os olhos corriam todos os lugares, de pupilas dilatadas. Nunca antes tivera tanta energia pulsando dentro de seu corpo, querendo sair, querendo sair! E berrava, sentia que estava prestes a passar por uma transformação muito profunda, que alteraria todo o seu ser.

Seu raciocínio havia se resumido à palavra matar. MATAR! Vá lá e mate! A fúria de mil guerreiros entrava por seus pulmões e de lá saía fogo. E ele correu berrando irracionalmente, na direção de todas aquelas criaturas. O chão corria sob seus pés, o ar batia em seu rosto. Não sabia em qual velocidade estava se movendo, mas parecia suficientemente rápida para aquele conflito alucinado. Desde que se levantara, há muitas horas, essa era a primeira vez que ele tinha certeza do que estava fazendo, do que queria fazer. Essa certeza o fazia rir, de certo modo. Rir de satisfação. Por mais que estivesse correndo para encontrar a morte, ao menos era certo que estava indo pela própria vontade, correndo usando as próprias pernas.

Os monstros iam se aproximando com mais cautela, depois de tê-lo visto. Começaram a cercá-lo e emitir sons de acuamento, de raiva. Estão com medo de mim. Estão em maior número, e mesmo assim me temem. Não vou deixar que nenhum escape. Já corriam para lá e para cá, tentando confundi-lo enquanto o cercavam. Ele pressentia todas as investidas contra si, do mesmo modo que eles não conseguiam ser capazes de fazer o mesmo. Quando os acertava um prazer encarniçado o acertava como um raio divino. Quando conseguia segurar algum, e não apenas acertá-lo, então era o fim. O estraçalhava com as mãos. Não tinha qualquer dificuldade em fazê-lo. Sou o mais forte entre eles. Mas não tentavam fugir, continuavam perdendo membro a membro do grupo enquanto ele os matava um a um.

Essa guerra só acabará quando o último soldado morrer. Ele notou logo. Terei de matá-los um a um. Depois que aquele genocídio da própria espécie terminou, ele estava todo sujo de sangue e poeira. Suado e cansado. Mas satisfeito de algum modo. Não era como se soubesse o que tinha de fazer a seguir. Decidiu seguir o outro lado da estrada. Mesmo cansado, tentava andar rápido, o mais rápido que pudesse. Antes que se desse por alarmado, a ansiedade que vinha de tempos em tempos decidiu aparecer. E novamente seus batimentos cardíacos subiam vertiginosamente, e ele olhava o horizonte com coragens de alcançá-lo, de buscá-lo infindamente, até seu último suspiro de vida. A estrada parecia menos longa porque agora ele tinha o corpo de fera e corria como uma fera. Mas ainda sim, parecia que correria até envelhecer e morrer e aquela ansiedade não seria sanada. Não acabaria; E ele tinha certeza de que aquela ansiedade tinha a ver com o vazio que sentia. Acho que, no fim das contas, a ânsia era de ser completo novamente. Mas como ser completo novamente, se não sabia se já fora completo alguma vez na vida?


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Notas finais do capítulo

Au revoir!



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