A cidade das abelhas escrita por Clarice


Capítulo 41
A traição


Notas iniciais do capítulo

Boa Leitura!
Capítulo Eletrizante!



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A TRAIÇÃO

Gaya estava simplesmente cansada demais, quando deu a ordem. Talvez por isso não tivesse pensando tanto quanto deveria. Simplesmente disse: soltem a bárbara, mandem a mulher embora. Não temos o que fazer com ela. Não achava certo matá-la. Por alguma razão, simplesmente não achava certo. A mulher nem mesmo a agradeceu. Tinha olhos meio mortos. Decerto havia perdido toda a fé que já tivera na vida. Arrastava-se pela rua. Não parecia nem ter a vivacidade bárbara que ela imaginava antes. Parecia apenas mais um pobre-diabo. Enquanto a via arrastar-se ela pensava no quão triste podia ser o destino das pessoas.

Vince ganhou uma bolsa com mantimentos e roupas limpas, foi o máximo que lhe deram. Ela não pedia nada, na verdade. Apenas que a deixassem ir. Adela havia ficado comovida com a mulher e fora junto dela, levá-la até o limite do reino. Achava que deveria fazer aquilo, apesar de a mulher ter invadido o lugar. Não achava espaço para lhe ter ódio. Mas seu jeito taciturno a fazia sentir-se incomodada, como se a atrapalhasse mais do que ajudasse. Ou que estava sendo ignorada completamente.

Não forçava muito, também. Deixava as coisas correrem. Não queria de forma alguma que ela a mandasse embora. Seguiam o caminho a pé, sem pressa, por escolha da mulher mesmo. Era um desses fins de tarde que são bonitos, cheios de um momento de contemplação grande demais até para quem não gosta de poesia. As nuvens pareciam pintadas no céu, e se via ao longe pássaros de grandes asas planando tranquilamente. Conforme foram saindo do centro do reino, o som de civilização ia se tornando cada vez mais mínimo, dando vazão aos sons da natureza. Mesmo que não estando assim tão próximos a ela.

Estavam andando lado a lado em um silêncio completo, Adela nem mesmo a olhava. Tinha medo até disso, como se, olhando-a, estivesse lhe tirando totalmente toda a privacidade. E, no entanto, não achava que deveria deixá-la sozinha. Ela estar ali era mais como uma espécie de: estarei aqui caso precise. Ela não sabia bem o caminho, então, de tempos em tempos a olhava para saber em qual direção andava. Não poderia dizer que entendia bem o que estava acontecendo. Apenas seguia.

–A senhora está perdendo tempo. –Ela falou uma vez.

–Gosto de perder tempo. –Ela respondeu, e continuaram seguindo.

Faltava mais ou menos uma hora de caminhada quando, de repente, Vince parou de andar. Virou-se para ela, que logo parou também, sem entender o que acontecia. Caminhavam bastante e mesmo que estivessem devagar, Adela percebeu que a mulher suava, e parecia andar com um custo tremendo. Aquela enorme bolsa que carregava parecia pesada demais para ela. De repente, Vince caiu, desfalecida.

A garota entrou em desespero, sem saber o que fazer com ela, consigo mesma, com a situação. E então abaixou-se rapidamente, pôs a cabeça de Vince sob seu colo, fazia vento com a mão e a chamava sacudindo-a. Pegou o cantil e entornou um pouco de água em seu rosto, a água, fresca, logo fez com que ela acordasse assustada:

–Vince! Pelos deuses, o que há contigo? -Ela a olhou e havia lágrimas em seus olhos.

–Não deveria ter me tocado, agora também tem a maldição. -Disse entristecida. -Deixe-me e volte a sua casa, se esqueça de tudo o que houve. Talvez seus deuses a protejam.

–Não há maldição alguma! -Tentava anima-la. -O que está sentindo? Parece fraqueza de desidratação. Tem comido e bebido bem? -Os olhos dela não eram só tristes, como também frágeis, fracos.

–Eu sabia! -Adela reclamava, pegou novamente o cantil. -Beba. -Vince não teve muitas forças para recusar. Deu-lhe bastante água e também alimento. Em meia hora parecia melhor.

–Por que não comeu a comida que lhe demos? -Perguntava esbravejando.

–Porque não me interessa mais o alimento. -Respondeu, bebendo mais um pouco d`agua. -O melhor que faço é me deixar morrer.

–Tolice! –Sacudia-a. -Tolice! Se está viva, então viva! -Tentava traze-la a si. -Que deuses são estes que a querem morta, se lhe permitem viver?

–Você não compreende. -Ela sibilava enquanto tentava erguer-se. -Vamos, é um longo caminho.

–Um longo caminho... -Rosnava a moça.

Continuaram a sua jornada. Adela parou em uma casinha no meio do nada para pedir água. Vince bebeu bastante, ela um pouco. Estava bem, sempre fora de longas leituras e mais longas ainda caminhadas. Com aquela última intervenção, era como se ela não tivesse mais tanto medo de Vince, era mais como se a mulher lhe fosse uma preocupação. Agora, não a abandonaria por nada. A moça lhe era engraçada. Tinha uns cabelos longos e uns olhos grandes e vivos. Era alta e forte, mas parecia ingênua como uma pequena criança. Se bem que, tanto desanimo em viver a deixara velha em pouco tempo. Ela queria vê-la em seu estado natural. Tinha certeza de que pareceria como uma enorme muralha impenetrável que tinha também, mesmo que só para os amigos, um grande coração e um sorriso bonito e livre. Suas roupas barbaras a tornavam assustadora, mas agora vestia-se como uma reprodutora comum. Tinha a pele queimada por dezenas de sois de reinos diferentes, ela pensava. Quanto um bárbaro andarilho já não teria visto? O mundo todo? O universo! Pensava. Ela, com seus livros era quem sabia pouco sobre a vida. Diferentemente de Vince, que a vivia, que lutava com ela, por ela. Por isso era importante que ela voltasse a ser quem era. Por isso, mesmo inconscientemente, ela estava ali. Exatamente por isso.

Finalmente anoitecera, e aquela longa estrada de terra agora era coberta por um enorme véu negro, cheio de pontinhos brancos e cintilantes. A noite estava linda e quente. O mato dos lados da estrada cheirava fresco e úmido, os sons das pequenas criaturas ia diminuindo, elas se recolhiam ao sagrado sono. Outras, porém, se preparavam para uma noite de vigília. A colina de montanhas, ao escurecer, quase desapareciam como uma sombra que quase se encostava ao céu. Vince não tirava o cantil da boca, sempre umedecendo os lábios. Se não se cuidasse e repousasse muito bem, Adela desconfiava de que aquela desidratação poderia ser muito má. Mas ao mesmo tempo não queria parecer uma mãe funesta. Uma mãe, de repente quis rir. Talvez Vince realmente tivesse uma mãe que agisse de tal forma, pois nem de longe a sociedade daqueles bárbaros se parecia com a sua. Ela tinha mãe, pai, tios, irmãos. Ela tinha sobrinhos e tudo mais. Para Adela, o significado da palavra família era muito mais irrestrito. Quanto mais o observo, mais noto que o mundo é feito de peculiaridades. Mas, também, Adela sentia-se culpada por seguí-la somente por curiosidade. Guiá-la não passava de uma desculpa. E meus deveres de princesa estão todos atrasados. E, pelo local da estrada no qual estava, demoraria bastante para chegar ao alojamento, onde suas obrigações a aguardavam. Sem contar que Gaya deve estar preocupada comigo. Eu nunca sumo por tanto tempo, e ela sabe que Vince é instável. Estou criando um problema.

O limite do reino era uma muralha, Adela e Vince começavam a vê-la.

–Como cercaram uma terra tão vasta? -Vince ficara abobada.

–Está assim há séculos, devemos isso a nossas ancestrais. Elas eram perfeitas construtoras. Mas, no fim, essas muralhas nunca adiantaram muito.

–Por que diz isso? -Interessava-se.

–Porque mesmo com tantos feitos majestosos, ainda continuamos submissas àqueles outros.

–Os da Cúpula?

–Esses. -Olhava-a nos olhos, meio tristonha. Logo largou o assunto. -Mas esses foram outros tempos. Ao que parece, nos livramos disso.

–Sim, são outros tempos. -Vince disse com um ar contemplativo.

A caminhada era sempre no mesmo ritmo, lenta e continua. Conforme chegavam as muralhas, o terreno subia. As muralhas foram construídas sobre um terreno bem alto, o reino ficava em uma espécie de depressão geológica. Adela notava que a proximidade com o portão a deixava nervosa: não teria mais desculpas para acompanhá-la, e o pior, poderia nunca mais ver uma pessoa como aquela novamente. Aquilo lhe soou doloroso e trágico, de algum modo. Mas tenho que ir embora, de qualquer jeito. Não é como se eu fosse a uma aventura. Notava que ela estava parecendo bem. Ninguém diria que ela ainda estava um pouco desidratada e que desmaiara por isso horas antes. Gostou disso, a fez se sentir mais tranquila com relação a deixa-la ir. Mas ao mesmo tempo sentia que estava abandonando alguém que não estava em condições de ser abandonado. Isso é conversa para quando chegarmos. Ainda não chegamos.

Quando deu por si, viu que não havia mais para onde correr. Estavam no morro, frente aos portões. A muralha, vasta, para ambos os lados, parecendo infinita. Um reino muito pouco habitado, e verdade, mas vasto. Vasto e belo, rico em belezas naturais. Vince também parecia comovido com aquilo. Dos portões, olhava para o reino, de um lado a outro, observando. E então virou-se. Os portões seriam abertos, a rainha já havia mandado a autorização muitas horas antes. Adela foi ao lado de fora com Vince, e ficou observando a mulher se tornar pequena naquela estrada cercada pela mata. E então, uns sons estranhos lhe vieram aos ouvidos. Eram como diabólicos gritos selvagens. Meio bestas meio humanos. Até a vigilância do portão ficou alerta. Vince também estava, ela havia ouvido também. Todos ficaram tensos, que tipo de criatura faria aqueles sons? E, no entanto, pelo jeito que movia a cabeça, Vince se preocupava mais com a localização do que com a identificação do barulho. Preocupada, Adela berrou por ela algumas vezes. Ou estava longe demais para ouvi-la ou simplesmente decidiu ignora-la.

E então, o bárbaro desapareceu no meio do mato. O resto aconteceu tão rápido que ela mal teve tempo de respirar. Fora como o intervalo entre uma batida do coração e outra. Surgiram olhos brancos no meio do mato, muitos deles. Talvez uns vinte, todos com corpos monstruosos, criaturas horrendas sob duas pernas, correndo tão rápido! Segurando armas, rindo maliciosamente como demônios. A vigilância gritou pela princesa, que virou as costas e correu para dentro dos portões, que foram fechados. Adela entrou na cabine de vigia com as operárias responsáveis pelo portão, eram apenas duas, e uma delas olhava lá fora pelo vidro enquanto a outra se comunicava com a central de segurança, para a rainha ficar sabendo daquele louco ataque.

–Elas estão tentando subir as paredes. -Dizia a que observava. -Vou buscar nossas armas, apesar de achar que não conseguirão passar.

–E Vince? -Preocupava-se Adela, sem que alguem se ocupasse de responde-la.

–A rainha sabera em poucos segundos, mandei o alerta.

–Agora esperamos, se eles conseguirem escalar, teremos de atacá-los sem permitir que invadam o reino, você fica aqui, princesa. -Disse-lhe a mulher, tentando aparentar experiência com casos como aquele, mas Adela sabia que não existiam tais casos, a mulher devia estar tão apavorada quanto ela própria. Ao menos não tem lágrimas saindo dos olhos dela, como sei que tem dos meus. Deuses, isso é inacreditável, como foi acontecer? Estava se tremendo inteira, involuntariamente. Seu nervosismo era quase palpável.

–Deuses, estão escalando mesmo! -A que estava vigiando disse.

–Vou lá fora. -A outra rebateu recarregando a arma, colocando as laminas nos braços, munições em compartimentos da roupa. Parecia aprontar-se para a guerra.

–Não vá sozinha, esperemos o reforço.

–Quando vier, pode ser tarde demais. O importante é não deixá-los entrar.

–Então eu vou com você.

As duas se foram, Adela ficou sozinha ali. Por uns vidros de segurança conseguia vê-las atirando do topo das muralhas impedindo as criaturas de terminarem de subir, mas umas delas subiam rápido demais. Achava que não iam conseguir. Enquanto uma recarregava a ama, a outra tentava atirar nos dois lados ao mesmo tempo. Mas por mais que recebessem tiros, as criaturas continuavam subindo, por mais que caíssem, se voltavam para o muro e tentavam escalar novamente. Aquilo era insanidade, era loucura completa.

Adela tinha os olhos vidrados naquela situação. A única coisa que conseguia pensar era que iria morrer dentro em pouco. Ainda pensava isso quando uma das criaturas subiu escalando como se corresse, e então saltou e conseguiu alcançar o topo do muro, lá em cima, se movia rápido demais para que as operárias a acertassem, sem dificuldade alguma a criatura arrancou a dentadas a cabeça da mulher. A outra, mesmo assustada, continuou tentando derrubá-la com tiros, com uma braçada, foi atirada lá em baixo, caiu berrando. Adela exasperava-se, não havia mais jeito, iria morrer. De repente começou a ver todas as criaturas subindo, agora que nada as impedia subindo e correndo pelas muralhas, algumas acharam a cabine interessante de alguma forma. Não pareciam ter inteligência, mas antes, curiosidade. E hostilidade brutal, força incomparável. Umas duas estavam em sua porta, arranhando e batendo. Não demoraria para que conseguissem entrar.

A ajuda tem de vir logo, se quiserem que eu esteja inteira, e não pela metade. Seu coração parecia querer sair pela boca, o sangue corria quente e louco. Ela poderia lutar se não estivesse paralisada pelo medo. Poderia tentar correr, poderia fazer tanta coisa... Mas simplesmente não conseguia. A cada vez que respirava, tinha a certeza de que seu tempo de vida estava acabando. Quando passou a ouvir alguém gritando lá fora. Seus olhos se encheram de lágrimas. A ajuda chegou! Gaya vai me salvar de todos eles. E de repente alguém estourou a porta, entrando por ela, suja de sangue, de olhos muito vivos. Era Vince.

–Vamos sair daqui.

Não esperou que ela repetisse, foi-se junto de Vince. A mulher matava sem medo algum de nada. Preocupava-se com ela o tempo todo gritando se estava bem, para seguir junto. Na hora de descer o muro desceu nas costas dela, que a carregava como se ela fosse feita de papel.

–Eles querem o reino, não nós. Não posso impedir a todos sozinha, são muitos. –Estava um pouco ofegante quando chegaram ao final.

–Vamos nos esconder na floresta, são um bando. Não acho que encontraremos outros deles por ai. Aquela parece ser a população inteira. Deuses, eles cheiram a ódio e perdição. Adela concordava com tudo o que Vince dizia, sem ouvir direito. Sentia-se tão nervosa que não sabia o que fazer. Seguiam pela mata, ela mal sentia as pernas. Mal tinha forças para andar. Estava com os músculos rígidos, mesmo depois de entrarem em baixo de um enorme tronco caído que Vince dizia ser seguro. Ela via seus olhinhos assustados. Segurou seu rosto com as duas mãos. Suas mãos eram muito grandes, estavam sujas de sangue.

–Estamos seguras. -Ela disse. Quando soltou o rosto de Adela, ela a abraçou. Beijaram-se, depois disso. Um beijo desesperado como o de uma despedida longa e lascivo como o de jovens fugitivos.

–Eu a amo.

–Compartilho de sua maldição. -Respondeu, e voltaram a se agarrar.


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Notas finais do capítulo

Au Revoir!



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