A cidade das abelhas escrita por Clarice


Capítulo 20
Pelas ruas




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Pelas Ruas.

Enquanto andava pela rua envergando outra identidade que não a sua, Shai percebia como o caos se instaurara. Militares em todas as esquinas vigiavam as pessoas, todas tinham de andar com suas identidades, com funções predeterminadas. Havia toque de recolher. Havia prisão, tortura, morte, sem necessidade de julgamento ou qualquer regulamentação. A produção dos alimentos caíra, e já começavam a faltar nos supermercados. As pessoas pareciam ter mal humor, havia por todo canto desconfiança, magreza e tristeza. Sobretudo medo.

Shai pensava que, se pudesse voltar ao passado, nunca teria feito um discurso como aquele. Sentia-se mortificado pelo mal que fizera ao próprio povo. Sentia-se como lixo. E o rei o buscava, pusera um preço em sua cabeça. Ele: fugitivo, ativo. Indo daqui para lá, de lá para cá. Conhecendo quem tinha de conhecer, visitando as pessoas certas, fazendo amizades. Precisavam tirar aquele homem louco do poder, evitar a guerra. Precisavam de um monarca que tivesse os brios aventados e frescos. Shai pensava que tanto poder assim só poderia fazer mal a uma pessoa, então certamente o próximo rei tinha de ser cuidadosamente escolhido dentre os Alados disponíveis.

Ultimamente tinha tantos problemas com os quais lidar. Tinha tantas pessoas com as quais se preocupar... Sentia um peso gigante sobre a própria cabeça. Pronto para esmagá-lo. Tornara-se afoito, olhos rápidos, gestos bruscos. Pensamento firme, voz patriarcal. Presença contundente. Sabia que ter a cabeça a prêmio o faria crescer para o mundo, mas não sabia se crescera o suficiente. Não sabia se, por um acaso, novamente se encontrasse com Gaya, se ela lhe daria aquele mesmo olhar. Se ela ainda o chamaria de criança. Se ela acharia certo o que ele estava fazendo. Se teria tanta coragem como ele, de estar no olho do furacão.

Pensara bastante nela ultimamente. Se perguntava o que teria sucedido com a moça. O que aquela rainha má lhe teria feito quando viu a face de volta à vida. Se se sentia feliz com a volta dela, ou a tratara por um inseto insignificante. Queria poder falar com a moça de novo. Queria paz, também. Queria muitas coisas inatingíveis. O tempo todo se questionava se não seria melhor desistir de tudo, e deixar as coisas como estavam. Uma inquietude o tomava todo o tempo. Queria saber como pará-la.

A ansiedade tornava suas noites de sono sempre intranquilas. Quase sempre tinha insônia. Durante o dia não parava um segundo, durante a noite tudo era quietude. Ele preferia os dias. Ficar sozinho consigo mesmo durante a noite era uma tortura seguida, repetitiva. Por fim largava a cama, bebia café, lia um livro. Chorava. Quis sua antiga vida de volta. Aquela em que estava sempre em uma cama de hospital, ou em seus treinamentos de soldado. Viver como um rato não lhe trazia complicações, na verdade nem precisava pensar para ser o que era. E agora... Bem, cada passo, cada movimento de músculo, cada respiração tinha de ser premeditada. Desistia de ler, ia fazer uns exercícios físicos até fartar-se, até o amanhecer. E então o dia começava e ele estava livre de si mesmo, entregava-se de corpo e alma a sua organização criminosa.

Já contavam com bastante membros, ele não sabia se se sentia muito orgulhoso com isso, ou se os chamava tolos por arriscarem a pele. Por que alguém não lhe avisara, que quando começasse a se questionar sobre as coisas, nunca mais pararia? Por que não veio alguém de muito bom coração, lhe deu um soco no estômago e disse: meu caro amigo, nunca queira saber de nada, ou terá o gosto desse sangue na boca, e essa dor na barriga o tempo todo, mil vezes seguidas! Além de uma confusão na mente, uma tristeza irracional por saber da maldade dos outros. Queira ser ignorante, meu caro! Mas não fora o que havia acontecido. Ela é a responsável por isso. Pensou, com ternura. Estou perto de morrer para cumprir o que lhe disse que cumpriria, será que está a fazer o mesmo? Orava para que não. Ninguém merecia ter a corda no pescoço como ele. Mas, se era para evitar a morte de tanta gente...

Além da enorme opressão, o governo entrava com desespero nos templos, obrigando os líderes religiosos a espalhar uma doutrina falsa sobre o monarca. Os noticiários, os jornais, o rádio: tudo coberto de censura, de controle do Estado. Todo e qualquer veículo de comunicação precisava de uma autorização direta do rei para se manter funcionando. E tinha de dar um espaço à falar bem do governo, de qualquer forma. As crianças passavam a receber tal educação na escola, não importando a casta. Fotos do monarca e de sua mulher estavam espalhadas por todo o reino. Sorridente e bondoso parecia o homem. Shai sempre dava um jeito de pintar meia dúzia de dentes de preto, enquanto algum soldado não olhava. Depois acabava por rir sozinho do assunto.


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