A cidade das abelhas escrita por Clarice


Capítulo 19
Gaya


Notas iniciais do capítulo

Momento de aceitação
Boa Leitura



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GAYA

Chegava ao quarto com a cabeça cheia de pensamentos nulos, eram como milhares de ruas labirínticas que não tinham saída, no fim das contas. Um sufoco lhe corria o corpo inteiro, um medo do futuro que lhe ofuscava a visão. Um desespero que lhe fazia faltar o ar. Afinal, o que dera naquela velha louca? Afinal, como diabos conseguiria ser uma boa rainha? Afinal, o que sobraria para ser reinado, já que a guerra estava programada, e era difícil imaginar situação onde haveria maior genocídio. Finalmente chegara ao quarto. As outras camas estavam vazias, todas as princesas haviam ido. Só restara ela. A mais despreparada, a menos bela, e a mais confusa, no fim das contas, seria a herdeira.

Havia momentos nos quais queria rir disso, mas rir com tanta vontade que perdesse o ar e morresse pelo sufocamento. Sentir as lágrimas jorrando, o abdômen em uma dor nauseante, e riria, e riria até os olhos saltarem para fora das órbitas. Mas não adiantaria de nada. Sentiu de repente o peso de mil bigornas sobre os ombros, antes de chegar à sua cama bagunçada já estava chorando. Oprimida. E sozinha. Tenho logo de me acostumar a isto. O poder vem junto da solidão, acredito. E riu um pouco enquanto chorava. Por um momento me esqueci de que sempre me senti sozinha na vida. Não há como eu perder o que nunca tive. Enquanto se encolhia em posição fetal, com tantas perguntas irrespondíveis pairando como urubus lhe aguardando à hora da morte, apareceram operárias em sua porta. Chamaram-na, dizendo que tinha de ir com elas a um lugar seguro. Teve vontade de estapeá-las, berrar: NÃO EXISTE LUGAR SEGURO! E não existia. Pois onde quer que estivesse, sua consciência estaria lá.

Foi guiada pelos corredores do castelo sem saber para onde ia, sem dar acordo de si, sem se importar com nada. Saíam pelos fundos. Ela era levada como uma débil, como uma criança. Operárias seguravam suas mãos e diziam coisas tranquilizadoras. Eram velhas mulheres que achavam que essa guerra traria algo de emancipatório. Tinham tão boa fé no futuro... É porque não sabem que eu estarei no encargo dele. Pensou amarga. Sentindo o gosto do próprio veneno na boca. Não fazia diferença, ácido ou não, não fazia diferença. Tudo perdera o sabor. A cor, o aroma. Não via nada, nem tanto ouvia. Apenas ia seguindo. Tudo acontecia em câmera lenta, ela dava respostas monossilábicas, desinteressadas e sem sentido. Foi posta em um carro fechado, e o carro seguia para o portão principal daquele reino. Dentro em pouco saiu do carro, pegou então outro. Isso aconteceu algumas vezes, depois de algumas horas. Ela não se dava conta. Não estava desperta e nem tanto dormindo.

Anoiteceu e Gaya custou perceber. O corpo ia ficando cansado de permanecer sentado, mas ela não se movia. Amanheceu, e então saiu de um carro e a guia lhe disse que o resto era seguir a pé. Estavam em mata fechada, mas ela não sabia precisar em que lugar do mapa. Podia tanto ser o bosque que cercava o reino quanto outro em qualquer parte do globo. A caminhada durou um bom tempo. Quando chegou, estava exausta, suada. Havia uma pequena casa escondida dentre os arbustos. Toda feita de madeira, ao pé de uma montanha. Depois de entrar, viu que a fachada facilmente se escondia, e a casa era a entrada para uma caverna. Lá dentro, apesar de pouco iluminado, não era quente. Era fresco, quase gelado. Havia muitos rostos desconhecidos, dentre machos e fêmeas. As fêmeas eram todas operárias, prontas para lhe servir, os machos, bem, eram apenas machos.

Não disse nada além de: tenho fome, depois de sanada a fome: preciso de um banho, e por último: preciso dormir. Não quis saber o nome de ninguém, nem mesmo ouvir suas histórias. Apesar de muitos deles mostrarem grande interesse por ela. Não eram importantes, nada daquilo era realmente importante. Estava em um estado zumbificado de consciência. Tudo lhe passava sem efeito. Foi dormir. O resto do grupo ficou se conhecendo durante o jantar.

A casinha era modesta e bonita. As paredes de pedra tinham desenhos e retratos. Iluminada por substâncias da natureza que traziam um brilho verde, meio fluorescente. Ali dentro não tinha energia elétrica, e tudo era feito com materiais que a floresta pudesse prover. Os bancos e mesas de madeira talhada, o fogão à lenha, tiveram de desenvolver um dispersador de fumaça para esconder onde estavam. As camas de madeira, colchão de palha. Roupas de algodão trançado. Os sabonetes feitos de óleos de sementes. Os livros eram feitos a mão. Se estivesse em boas condições de faculdades mentais, poderia ter se interessado pela história daquela residência. Mas havia dormido, mesmo sem sentir que dormia. Quer dizer, o prazer de entrar no sono profundo, de adequar o corpo em uma posição confortável, em aconchegar-se. Tudo isso lhe passou despercebido.


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