Júpiter escrita por Izabell Hiddlesworth


Capítulo 2
As luas de Júpiter I


Notas iniciais do capítulo

Io e Europa.



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Foi no final da terceira aula. Eu só queria descer até a cantina e comprar um pão de queijo, mas o diretor em pessoa apareceu na porta da sala e me convocou.

Rostos curiosos convergiram na minha direção e eu senti vontade de subir o capuz do moletom. Alguém murmurou um “Vish” e o Igor soltou uma risadinha. Loren perguntou baixinho o que eu tinha aprontado e fingiu indiferença.

Eu também queria saber. Segui o diretor até sua sala com pinturas de pavão em silêncio. Escolhi a cadeira azul-turquesa e esperei que ele se sentasse em sua poltrona decorada com ocelos de pavão.

– Ahn... Henrique, não é? – O diretor retirou os óculos e sorriu simpático para mim. Tomei isso como um sinal de que eu não tinha aprontado nada, então relaxei.

Afirmei com a cabeça, tentando sorrir de volta. Era difícil ficar sério naquela sala de decoração tão gritante. As miniaturas de pavão na estante atrás do diretor ficavam enfileiradas lado a lado por ordem de tamanho, ridículas demais para pertencer a um adulto.

– Já deve ter conhecido Júpiter, o garoto novo que entrou em sua sala – ele estava hesitando, como se não soubesse bem como se expressar. – O Júpiter... Ele... Bom, ele tem uma doença rara que desencadeia algumas anomalias, como a cor da pele, dos olhos e até mesmo sua taxa de imunidade. Mas essa doença não tem um nome específico.

Arregalei os olhos minimamente. Mais do que a dois dias atrás, Júpiter tinha mesmo todo o direito de usar mochila de rodinhas e ficar confinado em sua carteira.

– Os pais dele preveniram que Júpiter teria certa dificuldade em se enturmar com os colegas novos, mas pediram que nós o ajudássemos a ser mais sociável – o diretor comprimiu os lábios. – Seus professores me indicaram você como o aluno ideal para nos auxiliar. É um menino aplicado nos estudos e gentil com os demais, eles disseram.

Juntei as mãos no colo, apertando-as. Apesar de estar internamente me sentido por ter sido elogiado pelos professores, não tinha certeza se queria ser um amigo forçado do garoto novo. Ou melhor, não tinha certeza se ele iria querer ter um amigo. Júpiter parecia estar tentando se fundir com a parede – quase da mesma cor que sua pele – na maior parte do tempo, e não procurando alguém com quem conversar.

– Acha que pode fazer um esforço para ajudar um garoto com alguns problemas?

Alguns problemas? Eu é que tinha alguns problemas.

Júpiter tinha uma doença sem nome e provavelmente sem cura, um olho cego e ainda era antissocial por motivos óbvios. Eram sérios problemas e um pouco mais do que isso.

Senti uma pontada fria de pena dele e o resto se seguiu automaticamente.

– Aham – respondi devagar, meio incerto do que estava fazendo. O olhar do diretor parecia implorar para que eu ajudasse, e uma hora ou outra eu iria acabar me apiedando de Júpiter de qualquer jeito.

– Ótimo! – O diretor bateu uma palma, claramente aliviado pela minha resposta. Levantou-se e eu o segui para fora da sala. – Bom, espero que comece agora mesmo, Henrique. Quanto mais cedo o Júpiter se sentir acolhido, melhor.

Ele me deu o mesmo sorriso satisfeito que exibia quando algum aluno apertava sua mão por ter recebido uma medalha de alguma olimpíada.

Livre dele, fui buscar meu pão de queijo e aproveitei para comprar um para o Júpiter.

Quando cheguei na porta da sala, todos já tinham descido para o pátio. Exceto Júpiter. O sinal do intervalo tinha batido há dois minutos, mas ele não parecia incomodado em levantar-se de sua carteira ou pegar alguma coisa para comer na mochila.

Hesitei em dar o primeiro passo para dentro. Talvez eu ainda pudesse encontrar Loren antes que o intervalo terminasse, ou talvez Júpiter simplesmente me ignorasse e me fizesse parecer mais patético do que eu já era. Mas o diretor estava contando comigo – provavelmente pela pura cara de pau de não querer lidar com Júpiter diretamente – e, definitivamente, uma pessoa não poderia passar o ensino médio sem um amigo.

– Você come? – Ofereci o salgado para ele, parando bem ao lado de sua carteira.

Ele tirou o capuz, olhando para o pão de queijo e depois para mim, desconfiado e retraído. Sentei-me no meu lugar, ainda com a mão esticada em sua direção.

– Bom, não precisa comer se não quiser – dei de ombros, recolhendo o braço e começando a comer.

Júpiter me encarava abertamente. Seu silêncio se tornou incômodo depois de três minutos, com qualquer coisa de intimidador.

– O diretor me pediu para ser seu amigo – soltei sem mais nem menos, como se isso fosse criar assunto.

Minhas mãos tremiam involuntariamente. Virei o rosto de lado, torcendo para não ficar vermelho e parecer envergonhado demais.

Ele não pareceu surpreso, ou mesmo triste por descobrir que minha interação tinha influência de um terceiro. Um suspiro baixo escapou de seus lábios finos e ele se ajeitou como pôde na carteira. Estendeu uma mão para mim e apanhou seu pão de queijo.

– Meus pais – meneou a cabeça negativamente –, sempre preocupados demais sobre a minha propensão de cair num buraco negro. Io e Europa.

Foi como se a muralha que eu sentia ao virar para sua carteira tivesse caído. Fiquei paralisado com o pão de queijo a caminho de mais uma mordida.

– Esses são os nomes deles?

– Não, claro que não. Quem teria nomes tão esquisitos? – Ele levantou uma sobrancelha, como se eu fosse idiota. – É uma coisa minha chamá-los assim.

Sua voz era baixa, mas soava firme e cativante. Eu tinha certeza de estar com a boca aberta, pasmo por ele ser capaz de realmente falar alguma coisa.

– Eles ficam gravitando ao meu redor como se fossem luas – ele gesticulou girando o pulso, representando linhas de órbitas imaginárias.

Enquanto ele comia o pão de queijo com mordidas pequenas, seu olho castanho me fitava com toda a segurança possível. Estava me estudando, testando meu caráter.

– Não se sinta obrigado a ser meu amigo. Já recebo penas demais da minha família e não preciso de um amigo por obrigação.

Júpiter realmente não precisava da pena de um colega, isso estava claro só pelo seu olhar. A visão do garoto frágil que eu projetei desde que ele pôs os pés na sala estava sumindo como se fosse fumaça. O que eu via era uma bolha de mistérios que não demoraria a alcançar dois metros de altura – Júpiter deveria ser o cara mais alto de todas as salas do ensino médio.

– Eu quero ser seu amigo.

– Você não pode dizer isso da boca pra fora – Júpiter terminou seu pão de queijo, batendo as mãos uma na outra para tirar os farelos. – Você precisa me conhecer para saber se quer ou não ser meu amigo.

De certa forma, ele estava certo.

– Tive amigos por obrigação a vida toda. Alguns desistiram de mim, outros se cansaram e aqueles que aguentaram até o fim se esqueceram da nossa amizade assim que saí da escola – Júpiter esticou uma perna no corredor entre as fileiras de carteira. – De qual tipo você vai ser?

Era um jogo. Júpiter estava colocando suas cartas na mesa uma a uma e esperando que eu fizesse mostrasse alguma. Ainda não acreditava em mim, eu podia ver. Depois de tantas experiências parecidas, ninguém podia culpá-lo por ficar com um pé atrás – na verdade, ele estava todo para trás.

– Por que você não me deixa te mostrar? – Tentei soar tão seguro quanto ele, mas, por seu sorriso debochado, eu estava sendo ridículo.

– Me entretenha, caro amigo – Júpiter abriu os braços, como se mostrasse que estava pronto.

Três dias na carteira atrás de mim e ele já era um buraco negro de surpresas, abrindo-se aos poucos.

E eu estava andando direto para ele – não conseguiria esperar até ser puxado.


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Notas finais do capítulo

Europa é única por si própria, apresentando-se com uma superfície gelada muito brilhante com riscos coloridos.
O vulcanismo ativo em Io foi a maior e mais inesperada descoberta em Júpiter.