Cidade das Portas Celestiais escrita por heeyCarol


Capítulo 5
Aceite tudo com calma, não questione o quão louco isso pode ser


Notas iniciais do capítulo

Hey! Esqueci que não havia programado esse capítulo, me desculpem por isso...Ah, se lembram daquele papo sobre personagens antigos aparecendo aqui? Vejo vocês nas notas finais!



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4

— Primeiro o caminhão de frutas na encosta da montanha, e agora isso…quando eu disse que queria férias não me referia a salvar vidas aqui.

Mack não sabia se queria abrir os olhos. Além de parecer estar deitada em uma cama extremamente confortável, o homem que falava não parecia nada contente.

Oh, ela estava viva. E provavelmente encrencada.

Arrastou os dedos da forma mais imperceptível possível pelo estofado, sentindo o lençol de seda envolver sua pele. Ela poderia fingir dormir mais um pouco, mas isso implicava com todos os seus instintos, que gritavam “corra antes que roubem os seus órgãos!”.

Uma hora ela teria que abrir os olhos, mas suas pálpebras pareciam ser feitas de chumbo, e a visão de suas pestanas rosadas parecia mais pacífica do que o que havia se passado antes. Provavelmente estava em um hospital de luxo, onde teria que trabalhar como faxineira para quitar a dívida.

— Desculpe tio Magnus, mas era importante…— disse uma garota. Mack reconheceu a voz, mas não associou a nenhuma imagem.

— Meu terno de paetê azul-marinho é importante, meu sapato Chanel é importante, vocês trouxeram uma garota quase morta para mim, o que, no mínimo, foi deselegante da sua parte.

Mack se sentia tentada a abrir os olhos, mas ao mesmo tempo tinha receio de acordar e ser estapeada pela realidade. Estava desempregada, morrendo de fome e provavelmente teria que pagar uma conta de valor inestimável.

— Não tivemos culpa, o sensor apitou, e eu a teria atacado de qualquer forma. — a voz da garota era hesitante, e mesmo não sabendo do que se tratava, o argumento não lhe pareceu convincente.

— Micca, eu sei que você não faria isso. Você é parecida com Alec, sabia? Não vê necessidade em desprezar seres como eu. A questão é que não importa quem foi que fez isso, se foi você, Caleb ou algum daqueles Silver sei lá o que, o Submundo está em conflito, as fadas estão planejando algo, posso sentir isso, e ando tendo sonhos…

O cômodo caiu em um silêncio que parecia sufocá-la, mas Mack continuou quieta.

— Que sonhos? Sonhos proféticos? Os sonhos que…

— Sim, esses sonhos que meu pai faz questão de enviar quando não tem crianças para devorar ou algo assim. Eles andam tirando meu sono, e são ruins, Micca, muito ruins. E o que vocês fizeram pode fazer com que outros perguntem, boatos comecem a correr...

Mack prendeu a respiração. Ela andava tendo pesadelos fazia tempos, e aquilo não era normal, não deveria ser normal, pelo menos era o que o homem fez parecer. Eles andam tirando o meu sono, e são ruins, Micca, muito ruins…

— Quanto tempo acha que ela vai demorar para acordar? — a garota inquiriu.

— Ela já está acordada. É uma de vocês, esqueceu? Está considerando se é seguro abrir os olhos, ou só querendo ouvir nossa conversa. Não faria diferente, sei o quanto sou interessante, mas minha aparência é muito melhor do que a parte interna das suas pálpebras, então...se incomodaria em abrir os olhos?

Quando Mackenzie se deu conta de que ele falava com ela, sua visão já se focava no teto de madeira escura. Era rústico, mas limpo, e a luz pálida que vinha do lado de fora dava um ar aconchegante. Se apoiou nos cotovelos para se erguer, avaliando o lugar com cautela; não estava em um hospital. À sua frente uma lareira crepitava melodicamente, e sobre a moldura de madeira lustrosa encontravam-se três vidros, um com trufas de chocolate, um com cookies e outro com alfajores de chocolate branco e negro, algo que a senhora Rosales costumava fazer para as crianças e lhe dava uma fornada fresca sempre que fazia.

Mas agora ela está morta, lembrou com amargura.

Um tapete laranja cobria o chão em frente a ela, a cama, reparou, estava coberta pela seda macia lilás, e as cortinas leves caíam em cachoeira, amenizando a entrada de luz.

— Você está bem? Sente alguma dor como...eu não sei, uma facada na coxa ou um baço rompido, uma ou duas costelas quebradas…? — Mack virou-se rapidamente sentindo-se mais firme, e se deparou com um homem alto e esguio. Cabelos negros lisos estavam levemente bagunçados, e o rosto era bonito, fino, com os olhos em formato de amêndoas, felinos, amarelos e brilhantes...astutos como se realmente pertencessem a um gato. Mack não estranhou aquilo, não mais que a calça roxa brilhante e o terno amarelo de listras de zebra.

— Não...na verdade não me sinto bem assim faz tempo. — Mack não sorriu, mas tentou dizer aquilo com toda a gentileza possível, afinal, não estava mentindo. — Por quanto tempo eu estive...eu…

— Morta? Apenas duas horas. Inconsciente? Aproximadamente três dias. Agora, eu quero que me responda claramente, está bem?

Mack assentiu lentamente, localizando a garota no canto do cômodo. Tinha cabelos negros como os seus e olhos escuros, perspicazes, mas exaustos e preocupados. Trajava uma blusa de malha azul escura e uma calça vermelha sobre a pele pálida e o corpo perfeito. Mack imediatamente se sentiu constrangida, e tentou suprimir o complexo de inferioridade.

— Qual o seu nome?

— Mackenzie DiBreau. — respondeu pronta, embora sua voz tivesse soado um pouco duvidosa.

— Quantos anos tem?

— Fiz dezoito mês passado.

Tanto ele quanto a garota arquearam levemente as sobrancelhas, ela se sentiu encolher. O que havia de errado?

— Você...você sabe…— ele piscou de leve, frustrado — que droga Miccaela, eu não sou Inquisidor!

— Você sabe quem eu sou? Sabe quem ele é?

Foi a vez de Mack piscar.

— Você estava invadindo o apartamento da senhora Rosales. E você... não faço a menor ideia de quem seja.

Ele piscou, incerto. Fagulhas azuis surgiram entre suas unhas pintadas de um preto fosco, calmas, mas potencialmente perigosas, como a chama na cabeça de um fósforo.

— Eu sou o incrível, fabuloso, se preferir, Magnus Bane, Alto feiticeiro do Brooklyn.

Mack sorriu em deboche.

— Ok, então me julgaram importante o suficiente para fazer uma pegadinha. Olhe, eu encontrei um corpo, perdi meu emprego e ao que parece fui sequestrada por pessoas loucas. Você me ajudou, e agradeço por isso, mas acho que já podem parar com essa brincadeira estúpida de efeitos ruins e me deixarem ir para casa.

Ele fechou os olhos por alguns instantes, inspirou e contou até três, e então os abriu, ferozes.

— Quem apagou sua memória foi muito bom, mas não extremamente bom. Se Ragnor não estivesse morto acharia que se tratava de alguma pegadinha sem graça. Seria bem a cara dele, sabe, trancar as suas memórias em algum lugar da sua mente e mandar você para mim.

— Não é impossível que ela não te conheça Magnus, ela…

— Parece que vive num deserto? Parece que foi criada como um animal numa caverna? Não, Miccaela, apagaram a mente dela, e poucos podem ter feito um trabalho assim, por mais amador que seja.

— Mas eu me lembro de tudo. — interveio. Odiava quando falavam dela como se não estivesse presente. Era comum que as garçonetes do The Blue Point o fizessem, já que trabalhava mais tocando do que servindo.

— E ainda camuflaram a aparência dela...por quê? — a garota, Miccaela, perguntou para ninguém em especial; o som de suas botas de salto alto ecoaram pela madeira do cômodo num som oco enquanto caminhava, pensativa.

— Camuflaram a minha aparência. — ecoou Mack, meio desnorteada.

Ambos, Miccaela e Magnus, se entreolharam por um instante, meio constrangidos, meio em dúvida. Mackenzie sentiu o nervosismo agarrar sua garganta com força, tendo de engolir em seco uma ou duas vezes para aliviar a sensação. Magnus saiu pela porta, deixando-a entreaberta. Algumas vozes ecoaram do lado de fora, e Mack soube que não estavam apenas eles ali.

— Afinal, onde estamos? — inquiriu; talvez se situasse-se não se sentiria tão insegura. Não deveriam estar muito longe, e não poderiam ter ido muito longe com ela inconsciente. Mas eles falam de criaturas do submundo, demônios e pesadelos proféticos…. e ele mesmo se diz um feiticeiro.

— Estamos em algum lugar nos Andes. — respondeu ela naturalmente.

Aceite tudo com calma, não questione o quão louco isso pode ser.

— Ele disse que sou uma de vocês. Isso quer dizer que sabem quem sou?

Miccaela a fitou com hesitação, mas sua expressão aliviou assim que Magnus adentrou no cômodo segurando uma moldura. Em um momento ela havia piscado pelo reflexo da luz no espelho, em outro contemplou a imagem de uma garota. Os cabelos eram tão loiros que pareciam brancos, com as pontas extremamente emaranhadas, e os olhos eram ...ela não soube descrever, uma mistura de cinza e azul frios que praticamente não faziam diferença, já que mais pareciam se afogar no branco de seus olhos; a pele era clara e suave, e o formato do rosto a fazia parecer uma boneca delicadamente moldada. Era bonita e delicada e nada parecida com ela mesma.

O que vocês fizeram comigo?

Não sabia como havia soado, mas Miccaela ficou sem resposta e Magnus fez uma carranca.

— Nós salvamos você.

— De algo que eles fizeram, sejam quem for. — ela se ergueu de súbito, sentindo o chão de madeira morna sob os pés descalços. Ainda trajava as mesmas roupas de quando a espancaram, mas a calça e a blusa de malha fina estavam mais sujas do que se lembrava, e podia sentir a pele roçar na parte em que a faca atravessou o tecido e seu músculo. Não sentia dores, mas aquilo pareceu mais incômodo do que se estivesse sangrando.

— Caçadores de Sombras.

Mackenzie encarou a garota com um olhar frio que jamais direcionara a alguém.

— Dane-se o que vocês são. — respondeu surpreendendo a si mesma. — E daí se vocês caçam demônios, eu quero ir embora.

— Como sabe que eles caçam demônios? — Magnus perguntou com um ar triunfante no rosto.

Gelou. Mack não fazia a menor ideia do que eram muito menos o que faziam, mas a resposta simplesmente deslizou em sua língua. Estava assustada demais para continuar.

Antes que algum deles pudesse falar algo ela andou até a porta a passos largos e saiu do quarto repentinamente pequeno demais, dando de encontro com alguém. Ergueu o olhar até os olhos verdes e o cabelo loiro, e então recuou, se dando conta de que em sua mão direita segurava nada mais nada menos que uma faca, brilhante e extremamente afiada. Ele a olhou por tempo suficiente para saber que era uma pessoa, e então se voltou para Magnus e Miccaela.

— Pelo visto não está tudo sobre controle. ele deu mais dois passos e entrou no cômodo, fechando a porta atrás de si e olhando-a novamente, assegurando-se de qualquer movimento que ela pudesse fazer, como se fosse algum animal assustado.

— Bom Caleb, não tivemos muita opção, fomos os únicos que não quase a matamos.

— Além disso eu estava brincando de Inquisidor. — Magnus disse.

— Não conseguiríamos respostas com você no quarto assustando ela— explicou Miccaela.

— Até parece que conseguiriam, vejo o quanto ela confia em vocês. — rebateu Caleb.

— Também não confio em você — disparou. Os olhares de todos se voltaram para ela novamente, lembrando-os de que ainda estava ali. Não deveria ter feito isso.

Caleb repuxou o canto dos lábios, um sorriso sarcástico se instalando ali.

— Geralmente as pessoas confiariam suas vidas a mim.

— Quase perdi a minha com você, por que deveria? Aliás, por que estou falando com qualquer um de vocês? São estranhos para mim. — ela direcionou um olhar a Magnus, que estava observando tudo com cautela agora. — Obrigada por ter me ajudado, mas espero que possa me mandar para casa, se for tão poderoso quanto diz.

— Eu sou tão poderoso quanto digo, mas acho que já estou envolvido demais nisso. — ele bufou frustrado, faíscas azuis escaparam por entre seus dedos. — Estamos investigando alguma coisa aqui, embora não saiba bem o que é. Vá comer alguma coisa, mi casa es su casa, por enquanto, pelo menos.— indicou a porta com um floreio, direcionando a ela um olhar cortês, e a Caleb, uma carranca.

Acenou em resposta. Se o lugar estava cheio deles não conseguiria fugir, não agora, e seu estômago parecia um poço sem fundo. O chalé era pequeno, mas incrivelmente acolhedor, com tapeçarias e cortinas leves de cores quentes e terrosas, contando com outra lareira na sala de estar, onde um divã encontrava-se perfeitamente posicionado para apreciar a vista das montanhas e o calor que provinha dela. Na parte de trás da sala encontrava-se a cozinha, com um balcão de mogno e alguns bancos de madeira, frutas de diversas cores e tamanhos estavam dispostas numa tigela, e em outra biscoitos de aveia e canela, que ela praticamente devorou. No final de tudo, foi até a cafeteira, onde o cheiro dos grãos de café sendo moídos preencheu o ambiente. Sentir a bebida quente fez com que se acalmasse, por hora, mas era bom saber que a casa não estava apenas cheia de Caçadores de Sombras, e de alguma forma havia simpatizado com o feiticeiro.

Antes fosse uma feiticeira do que uma caçadora, viveria muito bem com olhos de gato ao invés de espancar pessoas a esmo, pensou enquanto beberricava o café.

Depois de alguns minutos, Magnus apareceu, sentando-se logo a sua frente.

— Espero que o café esteja bom…

— E está, obri…

— Não era para você.

— Oh. — ela imediatamente baixou a caneca.

— Não se incomode, não é como se ele fosse aparecer agora. Posso trazer um café de Nova Iorque até aqui, se eu quiser.

— E quer? — ela perguntou, tomando mais um gole.

— O que quero são respostas.

Mack sorriu.

— Agora você soou como um policial, creio que um Inquisidor não seja muito diferente.— o feiticeiro sorriu, um sorriso agradecido.

— Mas estou falando sério. Não sou tão bonzinho quanto pareço, só não estou sendo bruto como eles — indicou a porta do quarto com a cabeça — porque eu realmente acredito que não saiba de nada. Mas está começando a se lembrar, e responder a essas perguntas pode ajudar você a recuperar boa parte das suas lembranças de volta.

Ela ponderou por algum momento, mas assentiu.

— Você disse que Caçadores de Sombras caçam demônios, e isso está certo. O que mais você sabe sobre demônios?

— Não mais do que qualquer um sabe. Onde eu moro as mães ensinam aos filhos sobre religião, eu ouvia as vezes… a história de Lúcifer e a queda dos anjos, a criação da Terra e, bem, senhora Rosales, a dona da casa que eles invadiram, contava histórias sobre criaturas místicas, vampiros, lobisomens, sobre demônios e ocultismo. A maioria das mães não gostava que as crianças ouvissem, mas os filhos dela adoravam isso.

Ele assentiu. Suas pupilas verticais ficaram mais finas, tensas, mas ele parecia relaxado; Mack estava começando a se acostumar com elas.

— Se tivesse que descrever um demônio, como seria?

Ela desviou o olhar, focando na borra do café na caneca por um tempo. Poderia falar para ele sobre o ser com feições malignas e um par de cascos no lugar de pés como era reproduzido muitas vezes; mas ele havia falado um demônio, não poderia existir apenas aquele. Tentou resgatar alguma coisa de seus pesadelos, ver a feição das criaturas grotescas que devoravam pessoas toda vez que dormia.

— Tentáculos no lugar dos braços talvez, escamas no lugar da pele, meio reptilianos, répteis sempre parecem assustadores quando são maiores — confidenciou, embora pensativa demais — e os olhos...tinham olhos escuros, como se você visse um poço, negros, astutos e diabólicos.

Quando ela ergueu o olhar, Magnus a encarava.

— Você disse “tinham”. Já os viu em algum lugar?

Negou.

— Não os vi em lugar nenhum. — não acordada, pelo menos. — talvez em algum livro de ocultismo, uma vez peguei emprestado um livro sobre Inquisição e Bruxaria na biblioteca, me interessei pelo assunto uma vez quando as crianças mencionaram que a mãe conversava sozinha e que tinham medo de serem monstros. Queria provar a eles que estavam errados. — ela sorriu de leve, Magnus não.

— Já a viu invocar demônios?

— Não. Ela era uma boa pessoa, não acho que tivesse o que conversar com demônios. Se é que existem — acrescentou rapidamente.

— E o que acha que as pessoas conversam com demônios?

— Talvez peçam algo, não acho que simplesmente contatariam um ser do além porque se sentem solitárias ou carentes. Mas pessoas boas geralmente levam em conta o que podem perder com isso. — ela respondeu. Seu conhecimento era baseado em filmes, mas pela expressão do suposto feiticeiro, aquilo não era de tudo falso.

— O que as pessoas poderiam perder negociando com um demônio, Mackenzie?

Ela o fitou nos olhos.

— Família, amigos, bens, talvez até…

— Memórias. — completou Magnus.

ξ

A maré estava baixa, chocando-se contra a areia branca e morna da costa. Los Angeles estava quente como sempre, o mormaço agradável a pele. Emma Carstairs, habitualmente, treinava suas corridas na praia a fim de aprimorar sua resistência, mas hoje apenas caminhava, sem conseguir esquecer as palavras da carta do jovem Herondale...

Acho que seus pais queriam avisar sobre algo, e alguém tentou impedi-los.”

A princípio ela não havia levado aquilo tão a sério, mas na primeira noite acordara de madrugada atormentada pelas dúvidas, e na segunda mal se deu ao trabalho de deitar-se pois as imagens começaram a desconcentrá-la mesmo quando estava em completa alerta. Não podia contar a ninguém sobre o que lhe foi enviado, nem sequer a seu parabatai, Julien, e isso era quase tão ruim quanto as lembranças. Nunca havia desistido da investigação, não de verdade, mas a falta de informações a havia deixado sem rumo. Por que o garoto saberia daquilo? Emma procurava pela solução do assassinato de seus pais antes mesmo de seu nascimento, e ele nem sequer tinha como investigar aquilo tão de longe.

Quando já havia desistido de deixar a tormenta de pensamentos lhe invadir, voltou para o Instituto, que nunca deixou de parecer uma cena de crime a seu ver. Ainda se lembrava de quando os soldados de Jonathan Morgenstern invadiram os corredores de sua casa, matando qualquer coisa que se movesse. Contavam lendas de que, assim que a espada de fogo celestial lhe perfurou seu sangue ficou limpo e livre do icor do qual era nutrido,e o verdadeiro Jonathan, milagrosamente limpo de todos os seus pecados, pediu perdão. Mas a senhora Morgenstern estava morta a quase três anos, e Clarissa e Jace Herondale, que poderiam ter testemunhado tudo aquilo, desapareceram nas barreiras, levando o segredo consigo. Lenda.

Assim que abriu a porta o som do violino de Jem reverberou pelos átrios, ecoando pelo mármore que revestia as paredes do Instituto. Nunca teve o mesmo talento que marcava os Carstairs, mas seu dom com a espada lhe fora mais útil do que com as cordas do violino, embora não tão belo.

Na sala de treinamento, a pequena Talía Blackthorne dançava alegremente de mãos dadas com o gêmeo Cecil, que valsava a contragosto e ficava mais vermelho a cada gargalhada de Tessa. Jules os observava de longe, o olhar alegre e contemplativo, embora sombrio a seu modo. Os gêmeos eram iguais ao pai, com a pele morena pelo sol e os cabelos cor de chocolate cacheados, igualmente bonitos. Quando olhava para eles, não conseguia ver nenhum traço da mãe, Susana Lightgale, e o parabatai, mesmo insistindo, também sabia que não encontraria nada dela ali.

Susana não havia sido a primeira paixão de Jules. Na verdade, Emma nunca soube quem foi, e ele nunca fez questão de comentar sobre aquilo; mas Susana fora uma mulher pequena, de traços nada memoráveis e personalidade forte, que sempre brigara com o amigo por motivos inexplicáveis, alguém não muito amável. Iriam se divorciar quando ela descobriu que estava grávida, e decidiram que tentariam se suportar. Se Jules tivesse morrido no dia do nascimento dos gêmeos ao invés dela, Emma tinha quase certeza de que a mulher não choraria. Mas ele chorou, e até hoje não sabia exatamente pelo que.

Ele sorriu quando a viu entrar, mas logo assumiu uma expressão séria quando percebeu que havia algo errado com ela, mesmo sem ter feito nada naqueles dois segundos para que suas preocupações se tornassem perceptíveis. Julien caminhou até ela com passos largos, tomando cuidado para que os outros quatro não percebessem.

— O que aconteceu? — quis saber.

— Não é nada Jules…

Ele lhe direcionou um sorriso afetado.

— Claro que não é nada, você nunca tem problemas Emma.

Ela olhou para as crianças, que agora perseguiam uma a outra e a Tessa; Jem os olhava com tanto amor que a fazia lembrar de seu pai e sua mãe, e o sorriso que deram a ela quando a deixaram no Instituto, pouco antes de...

Não chore Emma. Ordenou a si mesma.

Não contaria a Jules sobre a carta, não poderia contar. Investigaria em breve, e se seus pais foram mortos por simplesmente saberem de algo era melhor que ele não tentasse ajudá-la, e ela sabia que tentaria se contasse. Ele não poderia saber.

As portas abriram num estrondo, e antes que Emma se desse conta estava com sua adaga de bolso na mão, pronta para atirar. O Inquisidor olhou tudo com os olhos azuis gélidos, curiosos, e então pousaram em Emma, acenando de modo superficial. Ela fez o mesmo. Sr. Lighwood tinha o péssimo hábito de entrar sem ser anunciado, mas não era como se quisesse contestá-lo; as investigações da Clave sobre o desaparecimento de Caçadores de Sombras nas barreiras estava ligada a tudo e a nada ao mesmo tempo, e sabia qual era a sensação de perseguir algo sem resultados por muito tempo.

— Por favor, não parem por minha causa, apenas gostaria de falar com a Senhorita Carstairs e o Senhor Blackthorn, acho que se trata de um assunto do interesse de vocês. — os cabelos do senhor Lightwood eram agora mais brancos do que negros, e os olhos não eram marcados por cálidas linhas de expressão, apenas pelo tempo, que o havia tornado um homem duro e com certeza nada paciente.

Quando enfim chegaram a biblioteca, o homem de cinza teve a primeira palavra.

— Uma bruxa, em Nova Iorque, foi morta recentemente.

— Soubemos. — Emma sabia que aquilo era uma operação sigilosa, mas o rumor de que uma mundana quase fora penalizada por um crime demoníaco espalhou-se rápido, e os boatos de que a garota teria sido sequestrada começavam a fervilhar entre clãs de vampiros em quase três estados, assim como o fantasma do rumor de que os Caçadores de Sombras começaram a se livrar de testemunhas de algum crime. Para ela, a garota apenas havia decidido sair da cidade depois de presenciar uma cena como aquela; as vezes, até Emma queria.

— Ela tinha uma carta endereçada a este Instituto, e gostaria de saber que relação vocês tinham com ela.

Ambos, ela e Julien, ficaram surpresos. Ela também foi morta por saber de algo, algo que alguém aqui deveria saber, algo que eu deveria saber.

— Nunca fizemos contatos com bruxas, nem em Nova Iorque, nem em Los Angeles. — defendeu Jules — São caras e difíceis de contratar, além de fornecerem um serviço obsoleto quando podemos encontrar feiticeiros facilmente.

— O que a carta dizia? — interveio Emma, sem poder conter a curiosidade.

O Sr. Lightwood a fitou por alguns instantes, tentando ler sua expressão. Emma desde cedo aprendeu a mascará-la como ninguém.

— Foi roubada, senhorita Carstairs.

Sentiu uma pequena pontada de esperança, a qual mal sabia ter surgido, ser absorvida pelo mórbido; era algo que andava acontecendo com frequência desde que lera a carta de Caleb Herondale.

— Já sabem o que a matou? — perguntou Jules.

— Dois cães infernais. — respondeu o Inquisidor, sem fazer menção a contar mais. Ele fez uma pausa, e logo depois tirou dos bolsos um envelope pardo, com um selo de cera negra lacrando-o, o símbolo do Conselho deixando claro que não era algo bom.

— Até o fim das investigações, todos os residentes deste Instituto nos últimos dois anos, incluindo James Carstairs e Theresa Gray, estão terminantemente proibidos de se comunicarem com outro Instituto e viajarem para qualquer outro lugar sem o consentimento da Clave…

— Mas nós não fizemos nada! — protestou o parabatai.

— … isso inclui deixar de se comunicar com os irmãos Blackthorn: Ty, Livvy e Tavvy, no Instituto do Rio de Janeiro, Amsterdã e Bangladesh.

— Tavvy está com um ferimento grave, talvez não sobreviva, iria visitá-lo semana que vem.— argumentou Jules.

Iria, senhor Blackthorn, mas há acusações sérias contra vocês, e até agora são os únicos ligados ao crime.

— EU NÃO VOU PARAR DE FALAR COM ELES! — explodiu o amigo.

Jules deu um passo largo em direção ao Inquisidor, e Emma teve de segurar seu braço a fim de contê-lo, mas sabia que na verdade o estava apoiando, e não deixaria que desmoronasse em frente ao Sr. Lightwood. A notícia dos ferimentos de Tavvy tinham chegado semana passada, mas naquela semana dois licantropes se envolveram em conflitos com um clã de vampiros e mal tiveram tempo para providenciar uma visita; era um ferimento profundo logo abaixo da costela, pulmão direito perfurado pelas garras de um Devrac, e as chances de sobreviver eram poucas. Livvy já havia chegado de Amsterdã com o marido para cuidar do irmão, mas Ty não poderia, e Jules simplesmente não tinha como deixar o Instituto apenas com Emma e Jem.

— Devo avisá-lo de que sou o Inquisidor, senhor Blackthorn? Você vai me ouvir e vai ter de seguir os procedimentos, ou será afastado de seu serviço como Caçador de Sombras. Fui claro o suficiente? — o olhar do Lightwood foi o suficiente para que Emma se posicionasse a frente do parabatai, irritada.

— Você não pode nos prender! Use a Espada em mim, se não acredita, mas não vai nos confinar aqui, nem as crianças, e não vamos deixar de falar com Livvy, Ty ou Tavvy.

— O papel no envelope diz que vão, senhorita Emma. — o Lightwood indicou o envelope em suas mãos, que já o amassavam em algumas partes. — E não se preocupe, assim que tivermos mais provas substanciais vamos usar a Espada em vocês, já que, como sabem, temos que fazer as perguntas corretas.

O Inquisidor se retirou, deixando apenas Em e Jules na biblioteca. O lugar nunca pareceu tão sombrio, com os milhares de livros, manuais e grimórios empoeirados. Os expositores de vidro refletiam a luz quente que vinha da janela, direcionando-a para alguns pontos e escurecendo outros; Jules se encontrava na meia luz, retraído.

— Não vou deixar que tirem minha família de mim, Em. Não posso. Já levaram Helen, Mark morreu na Caçada…

Emma segurou o rosto do amigo entre as mãos.

— Não vou deixar que tirem eles de você, está bem? Sempre damos um jeito. Ty, Livvy e Tavvy terão você para sempre, e eu prometi o mesmo para eles quando éramos pequenos. Vamos descobrir o que essa bruxa queria nos contar, e vamos provar para a Clave que estão errados… de novo.

Ela queria ajudar Jules. Os Blackthorn se tornaram sua família muito antes de Jem ou Tessa...mas além disso, Emma queria saber quem enviou as criaturas, o que a bruxa tentara lhe contar. Tinha de encontrar aquela carta, tinha de saber porque seus pais foram mortos e porque aquilo era tão perigoso a ponto de terem de se livrar deles.

Tinha de saber o que estavam escondendo, e agora tinha outra motivação para isso.


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Notas finais do capítulo

Que bom que chegou até aqui! Por favor, dê um oi nos comentários ou mandem uma MP, quero muito conhecer vocês e saber o que estão achando da fic. Gostaram dos personagens que apareceram? Posso dizer que desde que surgiram as teorias e sinopse de Lady Midnight, fiquei um pouco temerosa com as minhas descrições sobre Em, Jules e tudo o que vai acontecer, já que agora estou ligando as histórias. Minha mente ficou um pouco bagunçada porque eu inevitavelmente quero que tudo seja plausível, mas me sinto limitada todas as vezes que pesquiso sobre o novo livro da Cassandra (eu sei que é uma preocupação idiota), e penso: "Hum...o Jules da minha fic não se parece muito com o verdadeiro" ou " Tenho que colocar mais sarcasmo na Emma" "Como será que Jem e Tessa vão estar?", e como a minha versão é obviamente diferente, tenho medo de ir dilapidando os personagens e muda-los por completo para as novas características que descobri e alterar o curso do que estou escrevendo e bagunçar a cabeça de vocês e a minha, porque é quase um reflexo. O que vocês acham? É uma questão irrelevante para alguns, mas eu não sei, gostaria de opiniões...
Bjos e até o próximo capítulo (que postarei no dia certo)
XOXO



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