Dracologia escrita por Tia Cafira


Capítulo 4
Trina




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Meu nome é Trina Kodia, e eu morava na Ilha Kure, a mais afastada do Havaí. A minha vida na ilha era calma, para não dizer monótona. Eu ia a escola e voltava para casa terminar minhas tarefas e cuidar das minhas duas irmãs mais novas, já que papai trabalhava sendo piloto de helicóptero, é dono de uma agência de turismo ecológico. Mas minha mãe tinha uma rotina um pouco diferente da minha. Ela foi parar nos EUA em um manicômio pelas suas "práticas". A comunidade de Kure decidiu que não queria a Sra. Kodia, quando a viram de noite na praia desenhando símbolos na areia. Em Kure, as pessoas sabiam que aquilo era bruxaria. Elas sabiam o que ela era. Só não a queriam lá. Então, eu, papai e as meninas tivemos que nos virar. Eu tinha 12 anos.

Quando fiz 15, tive meu presente de aniversário: uma viagem para a Disney. Eu estava louca pra ir, mas fugi do meu grupo e corri para um táxi e dei as coordenadas do lugar onde Mama Kodia estava. A encontrei sã, conversando com outros pacientes e ajudando a dar comida a um deles. As enfermeiras sabiam do relatório dela, mas não podiam dar alta já que as ordens de meu pai, era que ela continuasse lá.

–Mamãe?

Ela me abraçou e eu afundei minha cabeça no peito dela, sentindo o cheiro do sal dos cabelos dela, que eu me lembrava tão bem. Nós duas choramos muito, depois rimos e conversamos. Implorei que ela voltasse comigo, e depois do clima ficar tenso e falarmos alto uma com a outra, ela resolveu me mostrar os livros dela. Todos os grimórios todos os artefatos, tudo. Disse que existia um mundo diferente do nosso e que eu poderia vê-lo. Nas minhas mãos, ela pôs uma chave e disse que eu voltasse pra casa. Ela disse que não poderia dar mais nenhuma pista. Depois ela me deu um colar e disse para ir para a viagem de aniversário e ligar para Papa pois ele já teria recebido a ligação da gerente da excursão. No fundo, nós duas sabíamos que ele já suspeitaria. Mas ficaria furioso de qualquer maneira.

–Mama?

–Sim? - ela vestia branco.

–Papa já veio te ver?

–Todo final do mês. Nós vamos jantar e dormimos juntos. - ela sorriu. - Não se preocupe.

–Ainda não entendi por que você tem que ficar aqui. As gêmeas, eu e Papa sentimos muitas saudades... - uma lágrima minha escorreu até minha boca, e eu pude sentir o gosto salgado e lembrar de casa.

–Também morro de saudades, Leilani. - ela beijou minha testa. Leilani quer dizer "menina celestial" em havaiano. Ela nunca me chamou de Trina. - Mas não tem como Papa largar a agência, que dá dinheiro, e viver em outro lugar, só pra eu morar com vocês. O dinheiro diminuiria e já não é muito, não quero que meus 3 hibiscus passem fome, Leilani.

–Então pare de fazer.... essas coisas e diga que mudou! - as lágrimas agora eram tantas, que já não me lembravam mais de casa, e sim, do mar aberto e eu me sentia afogada. - A ilha pode aceitar você de volta!

–Ah, Leilani... - ela aperta minha mão, a qual está com a chave. - Você vai entender. Faço por Papa e pelas minhas 3 flores. Por favor, não diga mais palavras tão duras, filha. Mama está bem, Papa está bem, Leilani está bem e as duas hibiscus estão bem. Perdoe Mama. - ela me abraçou.

Terminamos bem, eu disse que ia tentar achar qualquer coisa em casa e que iria voltar para vê-la. No fundo, nós duas nos sentíamos sozinhas. A família estava separada, mas ninguém tinha deixado de se amar menos, e eu sempre achei isso lindo. Trágico, mas lindo.

A viagem a Orlando foi maravilhosa, mas a bronca que levei de Papa nem tanto. Depois de muita bronca pelo telefone, e depois dos 7 dias de viagem, voltei pra casa. Contei da chave e ele disse que eu teria de descobrir, assim como um dia seria a vez das gêmeas.

Eu achei um alçapão debaixo da cama de casal de Mama e Papa. Tinha uma fechadura, e quando encaixei a chave, ele abriu. Lá dentro era forrado de tapetes que Mama trançava ela mesma. Seguindo em frente, acabava sem saída, e eu não sabia por quê. Decidi voltar, mas quando abri o alçapão novamente, estava no meio do nada. Não havia mais casa, era areia. Era sem dúvida a mesma ilha, mas parecia outra época. Atrás de mim, o alçapão abre de novo e era Papa:

–Lembrei o quanto foi perigoso quando sua mãe me trouxe aqui. E como ela me guiou, acho que ela gostaria que eu fizesse o mesmo já que não pode estar aqui.

–Que lugar é esse Papa?

–É Kure ainda, Trina. E é a mesma época, respondendo sua próxima pergunta. Só é uma realidade diferente. Eu não sei explicar porque sua mãe também não me explicou direito.

Então ele pegou na minha mão, e fomos andando descalços pela areia branca. Foi quando notamos uma enorme gruta, que eu tenho certeza que é escondida por um matagal enorme, mas não havia nem grama na frente, só areia. E de dentro da gruta, mulheres velhas saíram. Depois, algumas mais novas a seguiram, e até meninas da minha idade. Mas todas mulheres.

–Leilani? - uma velha cega se aproximou de mim, e eu fiquei com medo. Apenas minha mãe me chamava de Leilani.

–Trina, essa é a mãe de sua mãe. Vovó Lilo.

E então, meu pai soltou a minha mão e se ajoelhou, dizendo que não podia ficar muito tempo. Primeiro porque não pertencia aquele lugar, e segundo porque era homem. Apenas mulheres podiam entrar na gruta. Ou seja, eu teria de ir sozinha com aquela idosa horripilante e as jovens moças.

Então Lilo começou a passar a mão pelos meus ombros e sorriu:

–Parece que Malia já protege você há muito tempo. Não precisa de magia alguma.

Malia é o nome da minha mãe.

Quando entramos na gruta, foi algo mágico. E isso define tudo o que me disseram e mostraram. Foi um experiência espiritual muito forte e entendi por tudo que Mama passou e pude sentir o arrependimento das palavras que eu havia dito nos EUA. Como machuquei Mama, sendo que ela fazia tudo para nos proteger... Apaixonei-me pela magia e bruxaria e fiquei lá por anos. Exatos 4 anos, e recebi aulas e muita hospitalidade. Também ganhei amadurecimento e isso mudou a minha vida toda.

Foi quando eu estava na praia, pensando quando voltaria para Papa que algo se mexeu no fundo, há alguns metros de onde meus pés estavam. A água cobria até os meus tornozelos. E então, uma cabeça reptiliana surgiu, do tamanho de uma cabeça de cavalo, ou algo assim. Bem grande. Eu me assustei e corri para a areia, pensando que não me alcançaria. Foi quando eu percebi que aquilo estava me observando. Começou a serpentear pela areia e parecia uma cobra no deserto, eu só consegui ficar imóvel, pensando em todos feitiços de defesa.

Mas de repente, tombou a cabeça na areia e parecia deitar-se. Depois de longos minutos, cheguei mais perto e vi que estava ferido. Analisei a ferida e a criatura deixou tocar-la sem medo, e eu fiz as mandingas que eu havia aprendido. Depois de fazer o possível, fui na gruta chamar Lilo e as meninas para ver o monstro, mas quando voltamos, não estava mais lá. E então, elas me explicaram o que era. Era um dragão. Um espírito do mar que refletia a realidade marinha. As duas realidades.

Depois daquilo, voltei para Papa e contei tudo. Contei para as meninas que se deliciaram com as histórias e juraram segredo, mas não contei do jeito que tinha contado para Papa. Agora, eu tinha 19 anos. E ele me convenceu a continuar do outro lado do alçapão. Estava orgulhoso e tinha respeito pelas bruxas como minha mãe, e que eu devia seguir os passos dela. Depois de contar o acontecimento com o Dragão, ele notou meu fascínio e disse para tentar.

Voltei para a gruta e disse que poderia tentar cuidar de Dragões. Foi quando houve uma grande reunião, e quando souberem que Papa apoiava e que Mama ficaria orgulhosa, disseram que uma bruxa formada em Dracologia seria precioso para a tribo. Eu fiz a prova e foi um susto quando descobri que havia passado, mas a verdade é que eu não queria ir. Queria continuar na ilha e plantar as ervas mágicas com Lilo e as moças, e ter uma vida tranquila. Estar próxima de Papa e essa realidade.

Mas não houve remédio e me colocaram em um navio para Irlanda e agora, estou na faculdade. Eu esperava algo mais "mágico" para um mundo mágico cheio de coisas extraordinárias. Mas parece que tudo é tão burocrático quanto o Ministério da Magia de Harry Potter.

A verdade é que respirando fundo, não sei como minha vida mudou dessa maneira e como vim parar aqui. E a verdade é que estou pensando em fugir ou mudar de curso, qualquer coisa. Mas estou com medo de não pertencer a minha realidade ou a realidade na qual me encontro agora. Simplesmente não encaixar em qualquer realidade que exista.


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