A conspiração escarlate escrita por Drafter


Capítulo 39
Madrugada




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Kiki não precisaria ver nem mais um segundo. Assim que bateu o olho na figura formada pelo medalhão, reconheceu o lugar imediatamente. Chegou a se irritar, e fechou com raiva o Olho de Jade antes mesmo que a projeção se apagasse.

Com os dentes cerrados e os olhos comprimidos, se dirigiu a passos largos para o lugar que deveria ir. Nem sequer prestava atenção em Kurama ou Hiei; eles que a acompanhassem, se quisessem. Como se isso importasse!

Tentava expulsar da cabeça as imagens do quarto do pai, mas elas insistiam em voltar e fincar suas raízes fundas na memória. Talvez ainda estivessem recentes demais para a abandonarem. Ou simplesmente permanentes demais para serem apagadas — como as da sua mãe. O pensamento fez seu estômago doer e ela quase vomitou de novo, de raiva e de nojo.

Era estranho. Um sentimento confuso que ela não sabia descrever. Nos últimos anos, fazia de tudo para evitar o pai. Queria ele longe da sua vida — de preferência, para sempre. E agora que ele finalmente estaria, isso a machucava de uma maneira que ela nunca tinha imaginado antes. Era como se um tumor tivesse sido arrancado do seu peito e deixado um rasgo ainda maior. Um espaço vazio, oco, que ela só conseguia preencher com dor e mais nada.

Entrou no parque perto de sua casa de uma maneira automática, deixando seus pés a guiarem. Conhecia o caminho de cor, e podia deixar o cérebro livre para se ocupar de outras coisas. Como o que faria com Bozukan quando o encontrasse, por exemplo. Imagens do youkai morto nas suas mãos povoaram suas ideias de maneira fantasiosa. O rosto sem vida a seus pés, seus gritos de horror, o sangue do demônio espalhado pela grama, seu corpo estraçalhado entre as árvores. O deixaria em pedaços, irreconhecível.

Ele a estava provocando, tinha certeza. Escolhera seu pai de propósito. Deixara só a cabeça, para que não houvesse dúvida. E agora, a esperava na sua clareira, na clareira que era só dela, mas que em breve se transformaria no túmulo de Bozukan.

Com sangue nos olhos, subiu a trilha, arrancando as folhas dos galhos mais baixos por onde passava, descontando sua raiva nas mudas inocentes que sempre a protegeram do mundo exterior. Agora aqueles mesmos ramos roçavam por suas pernas e braços, bloqueando a passagem, tentando a abraçar, atrasando seu destino. Kiki, no entanto, os afastava sem piedade. Eles seriam sua testemunha.

A ausência de luz artificial e a proximidade das árvores deixavam a subida quase totalmente no breu. Ainda assim, a menina não tropeçou nem errou o caminho. Algo mais forte do que ela conduzia aquele trajeto. As trevas da sua alma eram tão profundas que a claridade já não faria a menor diferença.

Percebeu que as árvores começavam a se espaçar e que o brilho da lua invadia o local. Continuou seguindo em frente, mantendo o ritmo e sentindo a pulsação acelerar. Até que se viu sozinha no meio da clareira. Apurou os ouvidos, mas tudo que ouvia era o canto das cigarras e a relva sendo amassada debaixo de seus pés.

Um ruído chamou sua atenção. Ela se voltou agitada para o acesso da trilha, mas eram apenas Kurama e Hiei.

— Onde ele es...

— Shh! — ela interrompeu, arrancando um olhar atravessado de Hiei.

O espaço era pequeno e, apesar da madrugada, razoavelmente visível sob o céu limpo. Porém, além dos três, estava completamente deserto. Ficaram no mais ãbsoluto silêncio, tentando sentir a energia do lugar, mas nada obtinham dali.

— Você pode ter se enganado — Kurama falou, se aproximando.

— Não! — ela exclamou, ainda andando cautelosamente enquanto olhava ao redor.

— Isso é perda de tempo — Hiei reclamou — Eu não vou ficar dando ouvidos a essa lunática.

Kiki se virou com raiva e, acompanhando seu movimento da cabeça, Hiei voou até colidir o corpo em uma árvore à esquerda da passagem. Caiu de pé, atordoado, e num impulso, sacou a katana e a mirou na garota.

— O que você pensa que está fazendo? — gritou.

— Você não vai a lugar nenhum!

— E é você quem vai me impedir?

A garota sentiu seu rosto arder e teve vontade de fazer a espada atravessar a garganta de Hiei. Chegou a olhar com fúria para as mãos que empunhavam a arma, mas teve a visão cortada por Kurama, que agora se colocava entre os dois.

— Parem com isso! Vocês não percebem que Bozukan está tentando nos confundir?

— Eu sei que ele está aqui! — ela repetiu irritada — Eu sei o que vi! Você viu também!

— Talvez ele quisesse que você achasse isso. Ele já deve saber que estamos com o Olho de Jade — Kurama falou. A verdade era que tudo que conseguira ver, antes de Kiki fechar prematuramente o dispositivo, era o demônio em meio a árvores e nada mais. Para ele, podia ser qualquer lugar.

— Não! Ele tem que estar aqui! Deve estar escondido! Eu não estou maluca! — gritou, mais para convencer a si mesma do que os outros.

Hiei guardou a katana, mas lançou um olhar impaciente e acusatório para Kurama.

— Vamos olhar no medalhão mais uma vez! — a menina falou, puxando nervosa a peça do bolso — Vocês vão ver que eu estou certa!

Eles a olhavam calados. Nenhum dos dois saiu do lugar.

— Vamos! — ela pediu, ansiosa. Se virou para Kurama, incrédula — Qual o problema de vocês?

Kurama chegou perto dela. Pacientemente tocou no braço da menina que segurava o Olho de Jade e a encarou.

— Você está muito agitada. Vamos nos reunir com os outros, e depois pensamos como agir.

Kiki deixou a mão cair devagar ao lado do corpo. Olhou mais uma vez para a joia que segurava e a apertou com força entre os dedos.

— Eu quero encontrá-lo tanto quanto você — ele falou mais uma vez — Mas estamos andando em círculos. É melhor irmos.

— Não! — a garota exclamou de repente.

Com um empurrão, derrubou Kurama, que caiu no chão sem entender. O frasco com menos da metade do sangue do youkai saiu do seu bolso e foi atraído até a mão de Kiki. Hiei olhou surpreso para a cena e, como reflexo, chegou a agarrar a empunhadura da katana.

A garota fez um sinal para que não se aproximassem, com medo de que lhe tirassem a relíquia e o frasco. Deu alguns passos para trás, vacilante, enquanto abria o vidro. Pingou o líquido no medalhão, tentando controlar a mão que agora não parava de tremer.

Mas o que viu a pegou desprevenida.

Kurama e Hiei se aproximaram, estranhando aquele sobressalto.

E em vez de Bozukan, viram três corpos caídos em um gramado, inertes. Sangue escorria de cada um, formando uma poça enorme ao lado de um deles.

Os rostos estavam totalmente desfigurados, mas eles não tiveram dúvidas.

Kiki, Kurama e Hiei se reconheceram imediatamente.

(...)

A atmosfera silenciosa no Palácio Celestial, que antes tanto agradava Botan, agora a dava nos nervos. O ogro que a encontrou na Câmara dos Tesouros já tinha disparado na frente e sumira da vista da guia. Provavelmente, já tinha chegado ao Rei Enma. Provavelmente, ele já sabia do roubo. Um caos podia estar se formando naquele exato instante. Mas aquele silêncio agudo não a dizia nada.

Só quando alcançou a ala mais ao leste é que enxergou alguma movimentação. A porta da sala de Enma Daioh, ela espiou, permanecia fechada. Esbaforida, correu até os aposentos de Koenma e o encontrou de pé, com um semblante cansado, quase pessimista. Não era a expressão nervosa ou intrigada de sempre. Dessa vez eram feições que poderiam muito bem traduzir reflexão e cautela, mas Botan só enxergava tristeza.

— Que bom que o encontrei! — ela falou, indo até ele — Preciso falar com o senhor!

— Agora não, Botan. Estou ocupado — disse, a dispensando com um aceno de mão.

— Mas é urgente!

Koenma apenas balançou a cabeça, enquanto saia do quarto. A guia foi atrás, o seguindo pelo corredor.

— Meu pai está me chamando. Isso é urgente.

Botan olhou ao redor quando viraram em mais um corredor, fazendo o caminho até a sala do Rei. Aqui e ali, alguns onis passavam apressados, os impedindo de ficarem a sós. Para piorar, Koenma andava acelerado, apesar das pernas curtas, deixando a guia para trás.

— Koenma! — ela exclamou, espevitada — Me escute!

Koenma parou, um pouco surpreso pelo tom de voz da jovem. Se virou para encará-la.

— O que pode ser mais urgente do que o roubo das Relíquias Primordiais?

Botan inclinou o corpo para frente, tentando chegar mais perto, e ao mesmo tempo, abafar as palavras, as protegendo de ouvidos alheios. Não queria que mais ninguém ouvisse o que tinha a dizer.

— Eu sei quem roubou as Relíquias — sussurrou.

— O quê?! — Koenma arregalou os olhos.

— Shh, fale baixo! — ela pediu — Mais ninguém sabe!

— Isso é muito sério! Você tem certeza? Como sabe disso?

Botan torceu as mãos, nervosa.

— Eu vi, ele me atacou...

O quê?!

Koenma já estava quase gritando, chamando a atenção indesejada dos que passavam pelo corredor e fazendo Botan começar a achar que não deveria continuar aquela conversa ali. O rosto do príncipe ficou vermelho na mesma hora. Tinha uma grande estima por Botan, e, se a notícia do roubo já era ruim o bastante, saber que ela tinha sido atacada era ainda pior.

— Me prometa que não vai falar isso com ninguém — a guia falou.

— Venha comigo, você precisa falar com meu pai!

E Koenma agarrou a jovem pelo braço, mas Botan, espantada, puxou o corpo, o fazendo largar.

— Não! — disse, atemorizada — Não fale nada com o Rei Enma!

Ele a olhou confuso. Botan, apesar do jeito brincalhão e atrapalhado, era incrivelmente leal e entendia como poucos a seriedade de certos assuntos. Além do mais, nunca protegeria um agressor. A menos que tivesse um motivo muito forte.

— Quem roubou as Relíquias, Botan? — perguntou, cauteloso.

A guia contraiu o canto do olho, as mãos ainda contorcendo, agitadas. Olhou ao redor mais uma vez e se aproximou o máximo possível, colocando a palma da mão em concha do lado da boca. Hesitante, revelou o que preferia que fosse mentira.

Koenma sentiu um choque ao ouvir o nome de Kurama A revelação inesperada o deixou sem reação e pelos próximos segundos, tudo que conseguiu foi encarar Botan. Esperava que ela a qualquer momento falasse mais alguma coisa. Que tinha se enganado, ou que havia uma explicação para aquilo. Até mesmo que estava brincando. Mas ela apenas a encarou de volta, angustiada.

— O que vamos fazer? — ela perguntou.

Koenma olhou para a porta da sala do pai, no final do corredor. Ele o esperava lá, para uma reunião de emergência a portas fechadas, que talvez durasse horas. Ou dias. Ou minutos apenas, vai saber. Nunca antes alguém levara as Relíquias Primordiais do Reikai antes, aquela situação era completamente nova para ele. E, com certeza, para Enma.

— Não podemos contar para o Rei Enma... não é?

— Ele é meu pai... — disse, com cuidado — E Kurama nos traiu.

O desespero no rosto da guia ficou ainda mais evidente.

— E se ele estiver com algum problema? E se ele tiver sido obrigado? — tentou mais uma vez.

Koenma não respondeu.

No fim do corredor, a sala se abriu. Rei Enma apareceu, emoldurado pelo batente grosso e dourado da porta.

— Koenma — ele chamou, com os olhos tão cansados como os do filho.

— Eu preciso ir, Botan.

Koenma se afastou. A porta voltou a se fechar, engolindo os dois e deixando a guia sozinha no corredor. Sem chão, se deixou encostar na parede. Levou a mão fechada ao peito, tentando conter sua inquietação, olhando para o nada.

"Kurama nos traiu".

Koenma estava certo. Traição era a única coisa que definia aquele ato. Por que, então, sentia que tinha feito a coisa errada?

(...)

Kuwabara até tentou, mas não conseguiu mais pegar no sono. Era como se algo o impedisse de dormir, como se algo o quisesse acordado. Possivelmente, sua própria consciência.

Incomodado, saiu do quarto. Rumou até a cozinha, o mais silencioso que conseguiu. Não queria correr o risco de acordar a irmã. Não aquela hora.

O que o surpreendeu, no entanto, foi justamente encontrá-la também acordada, sentada na cozinha enquanto soprava distraidamente a fumaça do cigarro acesso.

— Mana?

Shizuka virou o rosto para olhar o irmão. Sorriu discretamente e puxou a cadeira ao lado, indicando que ele se sentasse.

— Não consegue dormir? — ela perguntou, assim que Kuwabara sentou.

A voz era suave e acolhedora, muito diferente da que normalmente usava, nas ocasionais broncas que dava no irmão. Shizuka tinha timbre e temperamento fortes, era dura quando necessário e cínica na maioria das vezes, mas ao mesmo tempo, tinha uma doçura que, Kuwabara desconfiava, era o único a conhecer. E da mesma forma que seus puxões de orelha eram justificados, seus momentos de retração também o eram.

— Tive um sonho ruim — explicou.

— Ah...

E a irmã ficou assim, calada, misteriosa, como se tivesse compreendido tudo. E, Kuwabara pensou, talvez tivesse mesmo. Afinal, eram nas poucas palavras que Shizuka mais era eloquente.

— Eu sei o que está pensando — a jovem falou, depois de um tempo — Por que não vai atrás deles?

Ele a olhou com admiração. A irmã realmente sempre sabia de tudo.

— Essa hora? Vão pensar que eu sou maluco...

Ela apagou o cigarro no cinzeiro, soprando a última nuvem de fumaça antes de se levantar. Caminhou até a porta da cozinha, mas parou antes de sair.

— Você está acordado por alguma razão, Kazuma. Não deixe que seja pelo remorso.


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