A conspiração escarlate escrita por Drafter


Capítulo 28
Asfixia




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Kiki bateu a cabeça com força no chão depois de cair de um pequeno lance de escadas na lateral do corredor. Ao contrário das outras escadarias que atravessaram, essa era apertada e discreta. Quem não soubesse de sua existência, certamente não teria muita facilidade em localiza-la a primeira vista.

Ela sabia que não tinha sido uma mera distração da sua parte tropeçar naqueles degraus. Descobriu isso no momento em que tentou abrir a boca para chamar o nome de Yusuke e encontrou os lábios colados e as cordas vocais, imóveis.

Eram apenas meia dúzia de degraus, que terminavam em uma curva de ângulo reto em uma salinha de dimensões reduzidas. O espaço apertado lhe dava uma sensação de claustrofobia e, mesmo não sendo muito abaixo do terceiro nível, aquele lugar conseguia ter um ar ainda mais denso do que o corredor onde estava antes.

Depois de alguns segundos se recuperando da batida da cabeça, a sensação de emergência lhe tomou conta, e Kiki se levantou em um pulo. O coração batia em uma velocidade vertiginosa, principalmente porque ela sabia quem poderia ter sido capaz de arrastá-la até ali. Tinha sentido seus poderes naquela maldita festa, quando ele a sufocou e prendeu seus braços sem nem precisar toca-la.

— Ora, ora... e não é que você veio mesmo pra cá? — a garota ouviu uma voz familiar que a fez gelar a espinha — Descobriu minha passagem secreta, não foi?

Akira a olhava do outro lado da sala com uma expressão tranquila. Apenas dois metros — todo o comprimento da câmara — os separavam. No rosto, as marcas remanescentes dos machucados provocados por ela no dia anterior.

A luta que travaram na casa em Chiba tinha sido rápida, mas devastadora para ambos os lados. Culminou com Akira desacordado no chão da cozinha e Kiki ferida e atordoada escapando pela fenda dimensional que encontrara na saída da casa. A passagem, quase uma ligação privativa do advogado com o Mundo dos Demônios, era uma das descritas nas informações que encontrara no seu escritório, e visava facilitar sua ida até o Mercado Negro quando necessário.

— O que foi, Kiki? O gato comeu sua língua? — ele perguntou, emendando em uma risada — Eu devia ter feito isso com você antes, evitaria aquela bagunça na minha cozinha. Tudo bem, já aprendi a lição.

A garota tentou se mexer, correr até a escada, fazer qualquer coisa para sair dali, mas ao invés disso, seus joelhos se dobraram placidamente e ela sentou de pernas cruzadas no chão. A impotência diante do próprio corpo foi desalentadora e ela só pode torcer para que Yusuke percebesse sua ausência e a descobrisse ali embaixo.

— Aliás, desde quando você ficou tão forte? — ele continuou, levando a mão até a própria mandíbula e a massageando. Ainda estava dolorida dos golpes que levara da menina — Está até conseguindo respirar aqui no Makai! Parabéns, eu quase morri quando vim pela primeira vez.

Akira colocou a mão no bolso da calça e remexeu o conteúdo, como se procurando por algo. Quando puxou a mão de volta, estava segurando um pequeno estojo de metal.

— Precisei de duas dessas para não apagar de vez — comentou, enquanto abria o objeto e pegava um comprimido com os dedos — Claro, hoje não preciso mais disso. Tomo só por diversão. Você devia experimentar.

Aquela conversa sem sentido só deixava Kiki mais tensa. Não conseguia prever o que ele faria com ela e estava se achando vulnerável naquela posição. Tentou varrer o quarto com os olhos na esperança de achar qualquer coisa que a pudesse ajudar a sair daquela situação. Para o seu desânimo, a única coisa que avistou foi um par de correntes enferrujadas presas na parede, que terminavam em duas argolas de metal grosso e que pareciam pregadas de maneira firme demais para serem arrancadas facilmente. Ficou se perguntando no que aquelas algemas já tinham sido empregadas antes, mas o pensamento a deixou ainda mais perturbada.

O advogado, por sua vez, parecia se divertir. Mastigava a pilula com os olhos fixos nela, as costas apoiadas na parede de forma descontraída e os braços cruzados na frente do corpo.

— É o seguinte — ele se manifestou, após engolir a pastilha. Seus olhos pareciam mais brilhantes do que nunca — Estou gostando de ver sua carinha de assustada, mas vou ser rápido, prometo.

Akira se aproximou. Sentou no chão, ficando na mesma posição que ela, seus rostos na mesma altura.

— Minhas visitas ao Makai afetaram minha aura de alguma maneira... é como se a energia maligna daqui alimentasse minha própria energia espiritual. Com o tempo, descobri que posso controlar organismos vivos a distância.

E como que para ilustrar sua explicação, o braço de Kiki levantou involuntariamente, ficando esticado ao seu lado.

— Viu? — Akira perguntou, sorrindo — E isso não é só com músculos, mas também com quase todos os órgãos internos. Não é incrível?

E o braço da menina caiu suavemente, voltando para a posição original.

— Isso me divertiu por um tempo, e você não sabe como é útil! Mas venho pensando em como expandir ainda mais minhas habilidades. Sei lá, talvez manipular as pessoas a nível celular. Ter total domínio sobre seus pensamentos, sobre cada molécula do seu corpo... já pensou?

Kiki franziu os olhos. Não estava gostando nem um pouco do rumo da conversa.

— Interromper a circulação sanguínea, criar tumores, fazer uma pessoa enlouquecer... são milhões de possibilidades! — Akira continuou, com uma animação quase pueril — Eu precisava de uma cobaia, e estava pensando em usar uma das crianças da Red Society para isso... mas para que desperdiçar uma mercadoria valiosa se eu tenho você, não é mesmo? Você sempre foi minha preferida, Kiki.

O terror tomou conta da garota, e o brilho nos olhos do homem sentado a sua frente só deixava tudo ainda mais apavorante. De repente, o corpo de Akira foi empurrado para trás, pego completamente desprevenido pela ação improvisada de Kiki — que enfim se deu conta de que mesmo com os membros paralisados, ainda podia manipular sua energia.

Por um segundo, ela se viu livre do controle dele e aproveitou para levantar, mas Akira se recuperou rápido do baque. Antes que ela pudesse alcançar a escada, ele já a tinha dominado de novo. Sem sorrisos no rosto dessa vez.

— Sua imbecil! Ainda acha que pode ser melhor do que eu? — ele gritou enquanto derrubava a menina no chão e a arrastava pelas pernas, ralando os braços e o rosto de Kiki no piso áspero — Eu não vou ter o mesmo descuido que tive com você lá em casa!

Kiki foi jogada contra a parede, e sentiu as costas doerem com a pancada.

— Cansei de ter pena de você — Akira murmurou, chegando perto dela — Vamos ver se vai ser tão valente agora.

Ele a puxou para cima, a segurando pelo pescoço com uma das mãos enquanto com a outra acionava um canivete que tirou do bolso do paletó.

— Merda, Akira! — gritou — Se quer me matar, por que não faz isso de uma vez?

A mão no pescoço dela atrapalhava ainda mais a sua respiração. Ela soltava o ar com força pelo nariz, engolindo a saliva com dificuldade. Sua boca estava seca e sua vista queimava com aquele ar empoeirado.

Akira esticou os lábios em um sorriso cínico e aproximou a lâmina do rosto dela.

— É claro que vou te matar... mas antes quero brincar um pouco com essa sua cabecinha...

O canivete tocou sua testa e ele o arrastou lentamente por toda a extensão, criando um corte fino. O sangue começou a escorrer, manchando de vermelho as bochechas da menina.

O líquido espesso caiu-lhe nos olhos, a fazendo piscar repetidamente. A testa ardia com a incisão, e ela notou que seu pescoço já estava livre das mãos do homem. De repente, uma tontura a atingiu com força, e ela tombou, desmaiada.

(...)

Yusuke sentiu falta do som da respiração pesada de Kiki a seu lado, e se virou, procurando a garota. O corredor estava vazio e silencioso, a iluminação parca dificultando que ele enxergasse muito adiante.

— Procurando alguma coisa? — ele ouviu uma voz falar atrás dele e se virou bruscamente.

Uma silhueta o encarava a alguns metros mais a frente do corredor, escondido pelas sombras bruxuleantes das luminárias.

— Quem é você? — ele perguntou — e o que você fez com Kiki?

— Eu não sei de quem está falando — o sujeito respondeu. Sua voz era clara e pausada, muito diferente dos timbres roucos da maioria dos demônios daquele mundo — E o meu nome é Ao-Bozukan, muito prazer.

Yusuke viu a silhuete se dobrando para frente, como se fizesse uma reverência.

— Você pode me chamar de Grego, se quiser. Foi o apelido que ganhei quando assinei o acordo com a Red Society. São apenas palavras, não fazem muita diferença para mim, mas sei que algumas pessoas levam isso muito a sério — ele continuou com seu tom tranquilo.

— Chega de papo furado! — Yusuke exclamou. Aquela calma só o deixava mais agitado — Eu não vim aqui pra conversar, e sim para acabar com esse negócio imundo. E se você é um dos responsáveis por este lugar, vou começar agora mesmo!

Uma risada discreta se ouviu no corredor e o demônio deu alguns passos lentos para a frente, saindo da penumbra e revelando sua forma.

Possuía uma coloração azul-esverdeada, e vestia uma túnica de cor clara presa no ombro e amarrada pela cintura, deixando o comprimento cair livre até os pés, quase tocando o chão. O rosto humanoide era marcado por rugas típicas de um ancião, e os braços à mostra conservavam um pouco da musculatura forte de outrora por baixo da pele envelhecida. Yusuke se perguntou se aquela seria a aparência real dele.

— Eu sou o responsável pelo Mercado Negro, e também um bom anfitrião, apesar das suas péssimas maneiras. Venha comigo.

A postura de Yusuke indicava que ele estava prestes a iniciar uma luta a qualquer momento, mas isso não intimidou Grego, que continuou andando a passos vagarosos pelo corredor, até entrar em uma sala à esquerda.

A galeria ficou vazia e silenciosa mais uma vez. O rapaz hesitou, incerto sobre se deveria acompanhar o demônio. Acabou seguindo sua intuição e caminhou com cuidado até a porta por onde Grego/Bozukan tinha acabado de passar. Achou que aquilo estava óbvio demais para ser uma armadilha.

Encontrou Grego de costas, de frente para um conjunto de telas. O demônio torceu ligeiramente o pescoço para o lado ao perceber a chegada de Yusuke.

— Veja — disse, apertando um botão no painel logo abaixo dos televisores.

As telas se acenderam, mostrando em cada uma, imagens diferentes do Mundo dos Humanos. A única coisa em comum era a presença de crianças.

O garoto olhou intrigado para os vídeos na sua frente.

— O que você pretende me mostrando tudo isso? — perguntou irritado.

— Apenas veja.

Yusuke voltou sua atenção para uma das telas em particular, que mostrava um garoto pequeno brincando. Um adulto entrou no campo de visão e ambos pareceram trocar algumas palavras. As imagens não tinham áudio, mas ele entendeu onde aquilo iria parar.

Logo, a criança estava chorando, enquanto apanhava do adulto enfurecido que aparentemente ignorava a dor que estava causando. Yusuke virou os olhos para a televisão ao lado, e uma cena similar acontecia, dessa vez em um ambiente escolar, onde uma menina era punida na frente da sala de aula. Em outra imagem, crianças abandonadas vagavam em meio a uma pilha de lixo, os corpos magros e imundos.

E as cenas se repetiam em cada tela, exibindo abusos verbais, físicos e até sexuais, o que deixou o rapaz nauseado. De repente, se lembrou da própria infância, um episódio que ele achou que já tivesse esquecido. Nele, seu pai agredia fortemente sua mãe. Quando o pequeno Yusuke tentava intervir, era também apanhado no ataque de fúria do pai. Por um segundo, aquela memória o deixou quase asfixiado, sufocado pelas sensações ruins que vieram à tona.

— Percebe? Crianças sofrem nas mãos dos humanos desde o início dos tempos. Elas não estão mais seguras no Ningenkai do que aqui — Grego falou, acordando Yusuke das próprias lembranças.

— Você tem razão... — ele respondeu, soturno — o mundo está cheio de parasitas.

Olhou para aquele mosaico de imagens mais uma vez, e de repente, socou a tela do centro, fazendo com que ela se apagasse.

A energia demoníaca de Yusuke encheu a sala, e ele se virou para Grego, que permanecia inalterado.

— Eu não posso acabar com todos eles... mas posso começar acabando com você, e tenho certeza de que isso vai ser um bom começo.


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