A conspiração escarlate escrita por Drafter


Capítulo 18
Quinze horas


Notas iniciais do capítulo

Depois de dois capítulos tensos, um capítulo um pouquinho mais light, pra aliviar, hehe! Espero que gostem! =D



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Koenma saiu da sala em um gesto tempestuoso, batendo a porta como uma criança que tinha acabado de ser contrariada pelos pais. Encontrou Botan do lado de fora, ao lado de uma mulher alta, de rosto sisudo e vestes militares, que manteve a expressão séria mesmo diante da demonstração de raiva de Koenma. Ela o cumprimentou com um discreto aceno de cabeça e entrou no aposento que o filho do Rei Enma tinha acabado de deixar, fechando a porta com muito mais delicadeza.

— O que ela veio fazer aqui? — ele perguntou assim que ficou a sós com Botan no corredor.

— Trazer o relatório atualizado sobre a fuga da prisão.

Koenma olhou desconfiado para a porta fechada à sua frente. Sempre teve grande estima pela General Ayaka. Sua ascensão dentro do Esquadrão de Defesa era meteórica, e rendia elogios por todo o Mundo Espiritual. Em pouco tempo, ela alcançou a segunda patente mais alta da corporação, e seu desempenho continuava impecável e profissional. Sempre achou que a General estaria acima de qualquer suspeita. Essa certeza, no entanto, começou lentamente a desmoronar.

Em sua última conversa com Liu, Koenma pediu a lista de membros que ele desconfiava que poderiam ter envolvimento no esquema de corrupção. O Comandante, com sua integridade característica, se recusou a fazer tal lista, temendo causar alguma injustiça a seus subordinados. Contudo, o nome de Ayaka acabou sendo mencionado incidentalmente, deixando Koenma com a pulga atrás da orelha. Quando pediu mais explicações, Liu se recusou a comentar e encerrou o assunto. Podia ser só paranóia sua, mas agora, toda vez que via a General, ele se pegava perguntando o que havia por trás daquela faceta perfeita.

— Como foi a reunião, sr. Koenma? — Botan perguntou, interrompendo os pensamentos do chefe.

— Terrível! — ele resmungou — Vamos, temos trabalho a fazer!

E saiu em uma marcha firme e apressada, fazendo Botan apertar o passo para segui-lo. Mesmo depois de horas de reunião, Koenma parecia disposto, e quem seria ela para contrariá-lo?

(...)

O ambiente parecia escuro a princípio, mas ela logo percebeu que o fato se devia mais à sua visão ainda embaçada do que à ausência de claridade. Piscou os olhos algumas vezes tentando adaptar a vista enquanto despertava seus outros sentidos para aquela nova situação. Estava deitada — foi a primeira coisa que reparou, ao notar que encarava o teto. O encosto era macio, e ela podia sentir seu corpo coberto para uma fina camada de lençol. Virou o rosto, e as bochechas tocaram o travesseiro, sentindo o algodão frio em comparação com a temperatura do seu corpo.

Olhou ao redor, confusa. Aquele lugar não lhe era estranho...

Sua atenção se voltou para o lado ao ouvir uma porta se abrindo. No segundo seguinte, um jovem de calça jeans, camisa de botão e longos cabelos vermelhos surgiu pela entrada do quarto, fechando a porta em seguida.

— Você acordou, que bom! Está se sentindo bem?— Kurama perguntou, virando a cadeira da escrivaninha para se sentar de frente para a menina.

Ela levantou a coluna devagar, apoiando as mãos no colchão e sentou na cama, ainda atordoada. Balançou a cabeça em sinal afirmativo, apesar da tontura passageira que sentiu ao se levantar. Finalmente entendeu onde estava. Estivera naquele mesmo quarto, naquela mesma cama apenas dois dias atrás. Tanta coisa havia acontecido desde então que o tempo decorrido parecia infinitamente maior.

— Você está com fome? — ele voltou a perguntar, percebendo a confusão no rosto da menina — Eu já estou preparando o jantar... 

A frase chamou a atenção de Kiki, e ela ficou se perguntando quanto tempo havia passado ali. Olhou pela janela tentando se orientar e viu que o sol já se preparava para anunciar o fim da tarde.

— Eu... Que horas são...? Eu preciso ir pra casa... — disse, girando o corpo pra fora da cama. O movimento brusco a fez se sentir tonta novamente.

— Cuidado! — ele inclinou o tronco para frente, se aproximando da menina e segurando seu ombro esquerdo com delicadeza — Você ainda está fraca. Fique para o jantar, você vai se sentir melhor depois que comer alguma coisa.

Ela concordou. Estava começando a tomar consciência de tudo ao seu redor e o estômago foi o primeiro a protestar. Segundo Kurama, estivera dormindo por mais de 15 horas e, considerando que mal tinha comido na noite anterior, já se iam quase um dia inteiro sem uma refeição decente. Sim, o pai talvez não fosse recebê-la muito feliz depois de ela ter passado não só a noite, como também todo o dia seguinte fora de casa, mas paciência. O estrago já estava feito, adiar mais algumas horas não ia fazer tanta diferença assim.

— Yusuke esteve aqui mais cedo — ele comentou — estava preocupado com você.

— Consciência pesada? — respondeu, sarcástica, arrancando uma risada do ruivo.

— Ele tem aquele jeito, mas é um bom amigo. Nunca atiraria em você.

— Sei...  Aquele cabeça-dura falou alguma coisa sobre o papo de desistir?

— Não — ele respondeu, ainda sorridente — nem quando eu perguntei. Mas já falei pra não levar isso a sério. Yusuke fala muitas coisas da boca pra fora. 

— E Botan, deu notícias?

— Nada... nem sinal o dia todo. Imagino que eles estejam querendo ser cautelosos depois de tudo que aconteceu.

Enquanto conversavam, seguiram juntos até a cozinha, onde alguns legumes jaziam espalhados pela bancada. Um wok já estava acomodado no fogão aquecido, com pequenas fatias de carne mergulhadas em um molho com um aroma forte que lembrava uma mistura de shoyo com saquê.

— Estou fazendo sukiyaki¹, você gosta?    

— Não sabia que você cozinhava! — ela disse, impressionada.

— Só o que aprendi na escola. Quer me ajudar com os legumes?

Kurama pegou uma tábua de bambu e a colocou na bancada, ao lado de outra que já se encontrava ali. Passou uma pequena faca de cozinha para a menina, indicando o que e como cortar. O espaço limitado os obrigava a ficarem lado a lado, seus ombros quase se tocando a cada movimento. 

— Foi bem maneiro aquilo que eu fiz ontem, heim? — Kiki falou, após alguns segundos de silêncio, sem esconder um sorriso no canto da boca.

— O que? Apagar daquele jeito em cima do telhado? 

Ela soltou um muxoxo irritada.

— Você sabe do que eu estou falando — resmungou.

— Foi bem irresponsável, isso sim. Pra não dizer infantil — ele respondeu, ignorando o olhar furioso com que ela o fuzilava — mas foi também bem impressionante sim, eu admito. Com um pouco mais de treino, você vai conseguir manter seu nível de energia elevado por muito mais tempo. Mas isso requer dedicação, não é da noite para o dia — Ele levou a tábua com os legumes cortados para o fogão, jogando os pedaços no wok — Por isso, da próxima vez, me dê ouvidos quando eu pedir pra você parar. Você podia ter morrido.

— Besteira! — ela exclamou, passando para ele sua tábua de corte, com a nova leva de legumes — Eu estou me sentindo ótima!

— Depois de ter dormido por... quanto tempo mesmo? Ah sim, quinze horas seguidas. 

Ela fez uma careta, mostrando a língua para o rapaz.

— Estou falando sério! Não quero ter que ficar cuidando de você toda vez que achar que pode agir assim. Essa sua rebeldia tem consequências.

— Eu não lembro de ter pedido pra você cuidar de mim...

— Sabe — ele disse cruzando os braços e se colocando na frente dela — eu acho que devia ter deixado você sozinha naquele telhado para aprender a ser menos teimosa.

Apesar da bronca, Kurama mantinha um discreto sorriso provocante no rosto.

— E eu acho, sr. Sabe-Tudo — ela respondeu, o cutucando no peito com o dedo indicador e diminuindo a distância entre os dois ao dar um passo para a frente — que você fala demais.

O gesto fez com que Kurama descruzasse os braços. Ele não conseguiu evitar uma risada abafada e, inconscientemente, suas mãos tocaram tímidas a cintura da menina. Ela riu de volta, os cabelos despenteados caindo pelo rosto.

De repente, Kiki sentiu o coração acelerar. Ficaram parados assim por algum tempo, presos no olhar um do outro. Podiam ter sido segundos, podiam ter sido horas; não saberiam precisar.

— Tadaima!²

A saudação os fez pular de susto, os tirando do transe. A mãe de Kurama anunciava sua chegada em um tom alegre que vinha da sala de estar. Kiki deu um passo para trás, desajeitada, se desvencilhando das mãos de Kurama, que foi até a sala recepcionar a mãe.

Ela tentou disfarçar, indo até o wok e mexendo distraída o sukiyaki que cozinhava no fogão, mas a verdade é que estava completamente sem graça. O jantar, naturalmente, teria a presença de Shiori Minamino, detalhe que ela havia esquecido e que faria toda a diferença. Era péssima em conversar com pessoas desconhecidas e logo ficou imaginando o tipo de pergunta embaraçosa que a mãe de Kurama faria.

Começou a pensar em todas as desculpas possíveis para justificar uma saída repentina, mas já era tarde demais. Quando se deu conta, já estava se sentando à mesa com a Sra. Minamino, que tagarelava animada sobre como era bom ter uma amiga do filho no jantar, para variar.

(...)

Em algum lugar, longe dali, uma menina se espremia nas sombras. Estava machucada e faminta, mas determinada a seguir adiante. Se morresse no meio do caminho, pelo menos havia tentado. Qualquer coisa era melhor do que ficar ali.

Apesar da pouca idade, seus olhos já tinham visto horrores demais, e seu corpo, sentido dores que não deveria. O desespero era tão grande que ela ignorava até mesmo a ferida aberta na perna esquerda, que dificultava, mas não impedia, a caminhada.

Um único objetivo tomava conta dos seus pensamentos naquele momento: fugir para o mais longe possível. E depressa. Não tinha ideia do que faria se conseguisse, mas podia pensar nisso depois.

Parou, tentando descobrir se era seguro continuar, mas a única coisa que ouvia eram os batimentos ritmados do próprio coração. Respirou fundo e saiu das sombras, numa manobra arriscada. O portão para a liberdade achava-se a poucos metros dali.


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Notas finais do capítulo

¹ — Sukiyaki: Prato típico da culinária japonesa, que consiste em uma espécie de cozido composto de carnes e legumes (variações podem incluir tofu, macarrão e cogumelos).

E algumas escolas japonesas oferecem aulas de culinárias para os alunos, mesmo para os meninos!

² — Tadaima: Expressão japonesa utilizada quando alguém retorna à casa.