A conspiração escarlate escrita por Drafter


Capítulo 15
Quebra-cabeças




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Botan passara as últimas semanas tentando em vão falar com Koenma. O chefe estava sempre indisponível ou ausente e, nas raras vezes em que conseguiu encontrá-lo, era rapidamente dispensada com alguma desculpa genérica. Por isso, foi com surpresa que recebeu o recado para que o encontrasse no Mundo dos Humanos naquela manhã. Alegou vagamente uma súbita vontade de alguma comida terrena qualquer e a convidou para acompanhá-lo. Koenma tinha lá suas manias, mas a deusa não engoliu aquela história e começou a se preocupar seriamente com a situação.

— O que está acontecendo afinal? — ela enfim perguntou, quando se viram sentados à mesa da lanchonete, o burburinho típico de adolescentes preenchendo o silêncio entre eles.

Koenma não respondeu de imediato, tentando repassar na cabeça o turbilhão de informações que recebeu nos últimos dias, algumas difíceis demais de aceitar. Olhou fundo nos olhos de Botan: sabia que, dos subordinados que mantinha no Reikai, ela era uma das poucas em que podia confiar plenamente.

— O Comandante Liu me procurou alguns dias atrás... — ele começou, cauteloso.

Ela prendeu a respiração.

— É sobre aquele caso, não é?

Koenma acenou discretamente a cabeça, em sinal de confirmação.

— A boa notícia é que ele está do nosso lado e forneceu informações valiosas.

— E a má... ?

Ele suspirou, abaixando a cabeça para o copo de suco na sua frente.

— A má é que as coisas são piores do que pensávamos...

Botan olhou apreensiva para o chefe, percebendo o semblante cansado que ele não conseguia esconder. Não o via assim havia centenas de anos e se perguntou o que poderia te-lo deixado tão abatido.

— Vamos precisar de Yusuke. Você consegue reunir todos ainda hoje? — ele indagou, interrompendo os pensamentos da guia espiritual.

— Ah! Yusuke! — ela exclamou, se dando conta de que ainda não havia colocado Koenma a par dos últimos acontecimentos. Aproveitou para relatar o ataque misterioso ao jovem, bem como a existência de Kiki, suas lembranças e os cartões enigmáticos. O príncipe do Reikai ouviu com atenção, e na sua mente as peças se juntaram, dando vida a um quebra-cabeça que ele preferia que estivesse errado.

(...)

A tarde já se arrastava para a metade. Depois de ter recolhido os cacos de vidro do chão — lembranças desagradáveis da noite anterior — Kiki preparou um pacote de macarrão instantâneo e devorou ainda de pé, apoiada na bancada da cozinha. Largou de qualquer jeito a louça suja na pia e apalpou os bolsos, certificando-se de que os cigarros e o isqueiro estavam consigo antes de sair de casa.

Caminhou fingindo estar distraída, apesar de saber exatamente aonde aquelas ruas levariam. Em determinado ponto, parou casualmente na calçada, se escorando em um poste. Olhou com o canto de olho para o outro lado da rua e viu ao longe um prédio largo, com três andares de janelas enfileiradas. Naquela distância, a placa afixada na parede indicando o nome do edifício estava ilegível, mas ela não precisava ler para saber que se tratava da Escola Secundária Meiou.

Sem desviar o olhar, tirou o maço do bolso, sacando um cigarro. Prendeu-o entre os dedos, enquanto usava a outra mão para tatear a calça em direção ao isqueiro.

— Esperando alguém?

O susto a fez deixar cair o objeto de plástico que tinha acabado de pegar. O dono da voz estava a um metro de distância, as mãos no bolso do uniforme e o rosto exibindo uma expressão divertida.

— Eu... ah... não — ela se atrapalhou — Estava só passando por aqui.

— Que coincidência. Bem no horário de saída da escola — Kurama respondeu, indicando com a cabeça o prédio do outro lado da rua.

— Ah, é aqui que você estuda, é? — ela retrucou, tentando aparentar surpresa.

O ruivo deu uma risada abafada.

— Você já foi mais convincente... 

Kiki ignorou o comentário, e fingiu não escutar enquanto procurava com os olhos o isqueiro caído no chão. Kurama localizou o objeto primeiro e o apanhou, chegando mais perto da menina. Acionou o isqueiro e ela imediatamente levou o cigarro à boca, enquanto ele aproximava a chama.

— Você devia parar com isso. Seu treino renderia muito mais.

Ela deu de ombros. 

— Falando nisso, quer treinar mais cedo hoje? — Kiki perguntou, enquanto caminhavam lado a lado pela calçada, se afastando da escola. Durante a semana os treinos aconteciam no final do dia, em um horário que garantisse não atrapalhar os estudos.

— Não posso te treinar hoje —  respondeu — tenho um compromisso.

— Compromisso? Com quem?

Kurama deu uma risadinha.

— Está com ciúmes?

— Não seja ridículo! — Kiki vociferou, envergonhada — Perguntei por perguntar!

— Se é assim, não preciso responder, não é?

— Engraçadinho... — ela murmurou entre os dentes.

— Como está o machucado? 

— Doendo um pouco, mas nada de mais... Eu não sei o que me deu para ir ontem na sua casa daquele jeito... Quero dizer, foi só um corte à toa.

— Bem, mas que bom que você foi... — disse, em meio a uma troca de olhares furtiva que a fez sorrir.

Ele parou de caminhar quando chegaram na esquina de uma avenida larga.

— Eu preciso ir agora. Avisarei quando pudermos retomar os treinos. Nesse meio tempo, se cuide.

— Espera um pouco! Você está escondendo alguma coisa de mim? 

— Só estou enrolado com alguns trabalhos escolares — Kurama respondeu de maneira descontraída — Não se preocupe. Nos falamos depois.

O sinal de pedestres acendeu um verde forte indicando a permissão da travessia, e Kurama atravessou a avenida, deixando a menina para trás.

(...)

Ele localizou facilmente o prédio abandonado investigado por Yusuke e Kuwabara dias atrás. Sabia que encontraria o amigo ali dentro e subiu calmamente as escadas por meio dos entulhos, se dirigindo até o apartamento.

Kurama ignorou a sala de estar e seguiu direto para o quarto. Se deparou com Hiei em pé de frente para o espaço anteriormente ocupado por uma antiga escrivaninha quebrada. De braços cruzados, fitava a parede vazia.

— Continua vindo aqui?

Hiei passava todos os dias pelo apartamento e chegava a fitar a parede por várias horas na esperança de encontrar o que estava procurando. Sabia que aquele era o lugar onde Yusuke havia avistado o portal para o Makai e aquilo o deixava incomodado: o portal não estava mais ali.

— O portal foi fechado — ele reclamou — Acho que o problema de Koenma acabou.

— Eu não diria isso. Ele quer nos encontrar ainda hoje.

— Hum. Divirtam-se — disse virando de costas, prestes a sair.

— Engraçado, achei que você gostaria de saber o novo endereço do portal...

Hiei parou.

— Do que você está falando?

— A passagem para o Makai não foi fechada, apenas mudou de lugar.

— Onde?

— É o que estou indo descobrir.

As coisas andavam quietas nas últimas semanas. Quietas demais, na opinião de Kurama. Não havia mais sinal de movimentação nem no apartamento abandonado, nem na mansão onde Hiei encontrara a pasta com os documentos — e eles haviam feito questão de checar os dois lugares dezenas de vezes. Aquilo não podia ser um bom sinal.

Por isso, foi com muita atenção que havia recebido o recado de Botan na hora do almoço, ainda na escola. Disse que falaria com Yusuke e Kuwabara também, mas pediu ajuda do amigo para localizar Hiei. Pelo tom de voz dela, sabia que as coisas estavam ficando sérias — e exatamente por isso havia escondido a verdade de Kiki. A garota tinha potencial e era dedicada, mas ainda estava longe de poder enfrentar ameaças reais e um confronto com seres do Mundo dos Demônios seria muito arriscado. Sabia que ela não ficaria feliz quando descobrisse, mas podia lidar com isso depois. Afinal, ele também sabia que certas decisões simplesmente precisavam ser tomadas.

(...)

Kiki ficou ligeiramente desapontada pelo cancelamento do treino. Kurama não era o primeiro cara que ela tinha beijado, mas foi o primeiro que ela sentiu vontade de ver no dia seguinte, e isso a incomodava. Geralmente, seus relacionamentos eram efêmeros como a noite, e compromisso era uma palavra que não existia em seu vocabulário. Justamente por isso, não entendia porque havia ficado chateada com a dispensa do garoto e acabou se irritando consigo mesma.

Tentou não dar muita bola para o assunto enquanto andava a esmo pela rua. Parou em frente a uma loja de doces pensando em afanar alguns chicletes, quando ouviu alguém chamando seu nome.

— Akira? — ela se virou surpresa para o rapaz alto e loiro a sua frente e o reconheceu na mesma hora. Não o via há quase um ano, mas o cabelo cuidadosamente penteado e o terno cinza de sempre eram inconfundíveis — O que está fazendo aqui?

— Negócios, como sempre — ele respondeu. Apesar de não morar na cidade, conhecia bem o lugar. Seu emprego em um escritório de advocacia lhe obrigava a realizar viagens frequentes a trabalho e aquele tinha sido um destino comum alguns anos atrás. Ele fez parte da vida de Kiki por mais de um ano, a encontrando quase sempre que precisava ir até a cidade — e você, o que tem feito?

— Nada de mais... dei uma sossegada depois que você sumiu — disse, se referindo às festas que costumava frequentar no passado, a maioria promovida pelo próprio Akira.

O rapaz então esticou o braço, abrindo a porta da loja atrás dela. Com um gesto, a convidou a entrar e seguiu atrás da menina, achando graça. "Você ainda gosta dessas porcarias?", ela ouviu enquanto passeava pelas prateleiras de balas e chocolates.

Trocaram mais algumas palavras e seguiram para o caixa, ele se oferecendo para pagar as guloseimas escolhidas e ela aproveitando a generosidade dele para encher a mão com alguns doces extras. 

— Escuta, Kiki... Está livre esta noite? 

Ela cruzou os braços, defensiva.

— Do que é que você está falando?

— O que foi? — ele riu — Só fazer uma farra, como antigamente. O que me diz? Vou reunir um pessoal essa noite, e você é minha convidada de honra.

Ela manteve os braços cruzados enquanto pensava na proposta, mas não aguentou sustentar o semblante sério por muito tempo.

— Você não presta.... — respondeu, se desmanchando em uma gargalhada.

Ela tinha ótimos motivos para aceitar o convite. Se tinha uma coisa que Akira sabia fazer, era dar uma festa. Ela não sabia muitos detalhes sobre o trabalho dele, apenas que tinha clientes poderosos e ricos o suficiente para justificar as várias viagens que ele realizava pelo país. Por isso, dinheiro nunca tinha sido problema, e ele fazia questão de ostentar, oferecendo bebidas caras, drogas e outros agrados aos seus convidados. E que diabos, ela tinha o direito de se divertir um pouco, não tinha? Além do mais, aquela podia ser a chance de tirar a limpo uma história que a intrigava: no seu último encontro com Akira, em circunstâncias nada agradáveis, ele deixara um cartão idêntico ao encontrado na casa onde se deu a tragédia com sua mãe, e mais recentemente, ao do homem do bar. Talvez pudesse ter uma oportunidade de arrancar alguma informação nova enquanto os treinos com Kurama estavam interrompidos.

Foi aí que se lembrou do acordo com o ruivo. "Você não deve agir por conta própria", ele teria dito. Sinceramente, ele achava que ela obedeceria?


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